domingo, 11 de dezembro de 2016

O que vi em São Paulo





Coisa de três meses sofri um acidente atípico e até patético.

Cerca de um mês antes, havia adquirido um tecido de chamalote numa feira de antiguidades.

No fim de Agosto percebi que alguns de meus livros de uso ordinário estavam com as capinhas bastante mortificadas e decidi dar um trato neles. A ideia era cobri-los com o tecido de chamalote e depois passar uma espessa camada de cola ou verniz.

Para tanto a noite de vinte e oito de Agosto, após ter me acomodado ao leito, principiei a cortar os pedaços do chamalote até o sono vir. A verdade é que eu e Morfeu não nos damos lá muito bem e que só consigo pegar no sono pelas altas madrugadas... e como a briga com a insônia é sempre inglória e perdida optei por adiantar o trabalho de restauração das capas dos livros. E não sei como adormeci cortando-os em meio aos retalhinhos, e pelas altas da madrugadas suguei ou melhor engoli um dos pedacinhos, que me veio ter a garganta.

O tanto quanto posso declarar é que acordei com aquele maldito fragmento de papel preso a garganta e que aquilo foi um drama... Pelo menos acordei, o que não teria se dado caso o aspirasse e fosse ter aos pulmões, do que resultaria, muito provavelmente a morte certa.

No entanto tendo cinquenta contra cinquenta porcento de chances, tive sorte e cá estou... Pelo simples fato do chamalote ter ido pela garganta e não pelas vias respiratórias.

No entanto o maldito fragmento de pano lá ficou preso, e eu, a um tempo sentindo-me bastante incomodado e a outro com receio dos procedimentos a serem adotados pelos médicos no P Socorro optei por ficar em casa ingerindo tudo quanto recomendado era pela experiencialidade popular: Pão, farinha, batata, bolacha, vinagre, suco de limão, etc

Até que transcorreram uns três dias e fui, apesar da irritação, sentindo que o dito cujo ou havia decido ou se achava muito bem preso a gargante e certamente desfazendo-se. Ao cabo desses três dias fui ao médico da família que concluiu ter o pano decido sem maiores problemas embora a garganta estivesse bastante irritada.

No entanto como tinha de 'pagar meus pecados' devo ter cruzado, lá no consultório, com alguém bastante resfriado e como não houvesse tomado a vacina neste ano o resultado foi catastrófico: Contraí uma baita gripe, um verdadeiro gripão após ao qual sucederam-se amigdalite, otite, bronquite, etc tudo quanto tinha direito, pelo espaço de mês e pouco. Tive de pendurar as chuteiras até meados de Outubro quando comecei a recuperar-me... Entrementes o excesso de medicamentos havia acabado com meu estomago (tinha já histórico de gastrite moderada e refluxo) passando a enfrentar refluxos e pirogastralgia contínuos... Fiquei nervoso, estressado, aflito e disto resultou ligeiro aumento da pressão arterial até então controlada... E por fim, qual golpe de misericórdia desferido pelo organismo em colapso, manifestou-se terrivelmente a insônia elevando - por primeira vez na vida - minha taxa de glicose...

Cerca de 15 de Outubro estava a passar por momentos bastante delicados tendo de controlar a pressão e a diabetes (que jamais tivera) e, portanto de controlar a crime de insônia, deflagrada, muito provavelmente, pelas toneladas de medicamentos que havia tomado... Sendo assim não tive outra chance além de marcar consulta com o psiquiatra, o qual só veio a atender-me a 03 de Novembro. Apesar de ter sido atendido pelo convênio médico - como funcionário público de duas instâncias tenho dois convênios - o atendimento foi relativamente breve devido ao colapso do SUS em minha cidade. Do que resultou um aumento da clientela particular e conveniada e digamos, ligeira queda de qualidade no atendimento, que tornou-se mais rápido...

Para resumir receitou-me o dito clínico um hipnótico bastante severo cujos efeitos colaterais resultavam visão dupla, chiado, tonturas, dor de cabeça, lentidão, etc Durante uns quinze dias mais ou menos, senti tudo e até sofri alguns acidentes...

Verti sobre mim mesmo uma caneca com chá fervendo ficando com o abdomem parcialmente queimado, quase cai e rolei de uma escadaria, por pouco não fui atropelado, fiquei com a coluna alterada e enfim, coisa de cinco dias, tropecei - sonolento - e fraturei o dedinho mindinho do pé, que hora acha-se imobilizado... Foi uma verdadeira saga.

Pior é que este fármaco mexia com as vias respiratórias, que haviam sido massacradas após a ingestão do pano...

Até o clínico geral descobri-lo já havia caído na Aminofilina e no Berotec... E a pressão piorado ainda mais. Em meados de Novembro fui obrigado a retomar o uso dos diuréticos para controlar a pressão e portanto a ir ao sanitário mais frequentemente e a não poucas vezes subir e descer escadas com prejuízo da coluna que como disse já estava moída...

Durante todo este tempo, como funcionário público que sou, estive licenciado e sujeito a periciamento médico nos termos da lei.

E como já estivesse afastado do serviço estadual por mais de dois meses lá fui convocado, há coisa de uma semana, para apresentar-me ao DPME (Departamento de Perícias Médicas do Estado) no Glicério ou Várzea do Carmo, ali junto a Avenida do Estado a R Prefeito Passos. A perícia estava marcada para as sete horas da manhã. Cheguei pelas sete e quinze e, ao contrário do que imaginava, fui muito bem atendido pelo perito de plantão e não tenho mesmo do que me queixar. Aproveitei a oportunidade para apresentar algumas súplicas ou reconsiderações e quando deixei o local ainda eram 8:30 da manhã.

Como estava medicado, havia saído demasiado cedo da Baixada e pago vinte e cindo reais de passagem, achei que devia aproveitar um pouco a 'viajem' para conhecer melhor os monumentos históricos de nossa metrópole, em especial as antigas igrejas maravilhosamente descritas na obra de Leonardo Arroyo. Sendo assim dirigi-me até a Capela da providência, sujas torres havia visto da passarela, mas estava fechada...

Foi quando avistei o belo edifício da Igreja Nossa Senhora da Paz e determinei atravessar o viaduto.

E atravessando-o topei com uma simpática feirinha organizada pelos catadores de papelão e pessoas de rua. Cada qual negociando suas coisas na mais perfeita paz e harmonia.

Como sou apaixonado por livros, em especial por livros antigos e antiguidades, lá fui eu bisbilhotar de 'barraquinha' em barraquinha onde garimpei algumas preciosidades e aproveitei para ouvir os negociantes e jogar conversa fora.

Após ter arrematado o que queria - um livrinho de 1817 inclusive - e pagar uma bagatela, despedi dos carrinheiros promentendo voltar antes do Natal pra comprar mais alguma coisinha. Foi quando eles esboçaram um sorriso e disseram: Provavelmente quando o amigo voltar o João Dolar já nos terá removido daqui, ele considera que somos todos ladrões e malfeitores e odeia-nos a não pode mais...

Até então não me havia lembrado dessa coisa. Refiro-me do joão dolár... Uma espécie de amnésia havia bloqueado minha memória e em já nem me recordava das últimas eleições e da vitória desses sujeito.

Passo após passo fui subindo a ladeira e aproximando-se daquela igreja belíssima chamada Nossa Senhora da Paz. Lamentavelmente ainda era muito cheio quando lá cheguei e a igreja estava fechada. O adro no entanto estava literalmente tomado por pessoas de origem africana das quais aproximei-me com o objetivo de perguntar sobre o horário em que as portas da igreja seriam abertas. Foi quando tive mais uma surpresa, a maior parte ou totalidade daquelas pessoas falavam francês. Eram os emigrados haitianos... Troquei com eles algumas poucas palavras em francês perguntando-lhes sobre o horário em que a igreja abriria e fui-me embora. Ao perceber que eram haitianos minha vontade foi observar melhor seus modos, interroga-los, etc mas não quis constrange-los ou quiçá parecer hostil ou suspeitoso, afinal sabemos que os imigrantes devido as situações de discriminação a que estão expostos acham-se inseguros.


http://www.a12.com/noticias/detalhes/paroquia-nossa-senhora-da-paz-acolhe-haitianos-em-sp-editando-falta-entrevista






Ao menos pude observar que a pastoral daquela igreja empenha-se em facilitar ao máximo as coisas para eles, inclusive em termos de assistência social, alimentação, ocupação, etc Pelo que foi bastante gratificante para mim constata-lo.

No entanto não era só isso...


Pois após haver dado um pulinho na capelinha de S Luzia





onde acha-se o painel votivo de Nossa Senhora da Cabeça




e chegado ao Largo de Nossa Senhora do Carmo, no termo da tradicional R do Carmo






topei com os Carmelitas fornecendo lanches e refrescos a população pobre. Passei por ele dirigi-me ao interior daquele que reputo ser um dos antigos templos mais belos da capital, o Convento do Carmo, onde vim a conhecer a servente da igreja, uma senhora muito simpática e acolhedora chamada Isabel. Ao fim da conversa, que versou sobre as pinturas de Fr Jesuíno - uma das coisas mais belas que há para se ver em S Paulo - e a assistência prestada aos mais necessitados, fui presenteado com uma bela publicação intitulada 'Carmo, patrimônio da História, arte e fé'.






Dali segui em demanda da igreja de Nossa Senhora da Boa morte 




com seus característicos degraus de pedra... Tornei a subir a R do Carmo passando pelo antigo prédio do Diário de S Paulo - ora sede de uma organização protestante - cuja metade esquerda fora lamentavelmente demolida e segui até a praça da Sé onde surpreendentemente deparei com os franciscanos e a Toca de Assis prestando assistência a outras tantas hostes de sem teto e carrinheiros, tudo observado de longe pela polícia militar. 

Foi neste momento mesmo, estando diante da majestosa catedral da Sé, que refleti e disse para mim mesmo: Apesar de seu estado calamitoso ainda há vida espiritual na Igreja romana e uma vida rica e bela. Enquanto o protestantismo jaz eternamente paralisado nos domínios da teoria, engessado pelo fetichismo, adormecido nos braços débeis da fé, entorpecido por uma mórbida contemplação de si mesmo, etc a igreja romana, em que pesem seus vícios e defeitos, não só atua como mostrasse solidária. 

Após passar por tantas igrejas onde o povo simples rezava em atitude de recolhimento enquanto do lado de fora, os mais devotos serviam os pobres e ministravam o amor concreto de Deus aos menos favorecidos de nossos irmãos, fui levado a concluir: Aqui há Cristianismo e Cristianismo vivo porquanto Deus é amor e não qualquer outra coisa.

Apesar de não pertencer mais a comunhão romana (todo sabem que sou Católico Ortodoxo) aquela visão em termos de serviço fraterno foi como uma brise leve a refrigerar-me o coração angustiado por testemunhar tanta indiferença e mesmo crueldade por parte dos cristãos nominais...

Passei por um 'Cristão' predestinado ou remido que diante da Sé distribuía seus folhetos e gritava a respeito do Diabo, do inferno, da perdição, etc Desviei meus olhos dele e pousei-os sobre os filhos de S Francisco que ali estavam serenamente distribuindo alimentos, cortando cabelos, limpando feridas e enquanto o sucessor remoto de Lutero estendia-me um folheto (o qual evidentemente sequer toquei) as palavras do Evangelho soaram-me aos ouvidos: Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, estive nu e me cobristes... O QUE FIZESTES A MEUS IRMÃOS MAIS PEQUENINOS FOI A MIM MESMO QUE O FIZESTE... Haviam ali na praça da Sé dois Evangelhos rivalizando, mas eu sabia qual era o Evangelho verdadeiro - Este povo me honra com as palavras e a boca mas seus corações estão apartados de mim, considerei ainda; e por fim: Não é aquele que diz Senhor Senhor que entrará no Reino do Céu, mas quem executa a vontade...

Enquanto cogitava a respeito de tudo isto havia já cortado a praça João Mendes e entrado na Igreja de S Gonçalo da qual, após ter feito ligeira prece, parti em demanda do Largo de S Francisco, termo final de minha peregrinação, pois já eram cerca de 11 horas e devia chegar a casa em S Vicente pelas 13. Ali pude contemplar outras tantas pinturas maravilhosas, colírio para os olhos e sobretudo para a alma e adquirir, a porta da igreja, um delicioso pão recheado com frutas passas...

Como estava com pressa limitei-me a atravessa a colunata externa da Faculdade de Direto e a trocar umas poucas palavras com o porteiro... Caso tivesse a tarde livre iria certamente ao Museu do Fórum, ao Líceu de artes e ofícios, a Casa da marquesa se Santos, etc, etc, etc Bem como as Igrejas de S Bento, S Benedito, Rosário, S Efigênia, etc O fato é que minha veneranda e preocupada mãe esperava-me para o almoço e então tive de despedir-me de minha querida S Paulo e de regressar a este triste exílio ou vale de lágrimas que é para mim este abafado litoral...

Senti no entanto ter encontrado uma S Paulo muito mais humana e acolhedora para com seus filhos mais necessitados. Uma S Paulo mais sensível e fraterna. Uma S Paulo em que parte do 'Catolicismo' ou da igreja romana reencontrou o caminho do Cristianismo que é o amor ou o serviço concreto tendo em vista minorar os sofrimentos alheios. 

Igrejas Cristãs, mas do que locais de culto devem ser exatamente isto: locais ou santuários de atividade e serviço social. É o que podemos chamar de prece ou missa contínua, pela qual servindo oramos sem cessar e mantemos nossa comunicação com o Pai das Luzes. Já o Dr Alexis Carrel costumava dizer: Não adianta rezar devotamente pela manhã e viver ao cabo do dia como um bárbaro.

Não existe essa coisa de 'Missa est' A verdadeira Missa, a Missa eterna jamais termina, permanece sempre dentro de nós levando-nos a fazer o bem sem olhar a quem.

Resta acrescentar que não creio nem em visões, nem em revelações individuais, nem em místicos ou misticismos. Mesmo quando ainda era membro atuante da igreja romana, não acreditava nessas bobagens (no dizer do piedoso Arthur Weigall) Meu catolicismo, ainda romano, havia descartado há muito tempo as tolices de Fátima ou mesmo Lourdes e se concentrado na Tradição patrística e na doutrina social e também na escolástica... Pelo que Tereza D Avilla não faz sentido algum para mim, exceto quando corajosamente (face aos inquisidores) que Deus deve ser amado e servido pelo que é - ou seja enquanto Deus mesmo - e não pelo temor de supostos castigos... 

Tereza D Avilla me parece ter sido uma mulher inteligente e até fascinante, mas não creio de modo algum em suas supostas experiências místicas ou comunicações ou em qualquer outra. Tudo isto permanece nos domínios da subjetividade e mesmo se houvesse algo de verdade, estaria no acesso do individuo apenas. A comunidade Cristã deve viver daquilo que é comum: A palavra de Cristo registrada nos Evangelhos e a tradição primitiva e apostólica.

No entanto, e penso que é aqui que o Cristão se distingue do sectário e do fanático, o fato de não crer em Tereza D Avilla ou na mística espanhola, ou na mística carmelitana (com seu culto supersticioso ao escapulário - Arthur Weigall, intelectual Católico) não me impede de modo algum de apreciar a beleza das pinturas do Convento do Carmo ou de atribuir-lhes um sentido espiritual bastante rico. Não preciso crer na veracidade de uma cena pintada para comungar de sua perfeição estética e cuido que o sentido da beleza tenha valor em si mesmo exprimindo um dos múltiplos aspectos do Uno.

Não posso compreender como alguém se exaspere face a beleza e menos ainda que postule sua destruição.

O fato de não crer na temática da pintura não me torna insensível a seus traços delicados, a suas cores, a harmonia dos tons, etc

Por isso sempre disse e digo-o mesmo que um dia viesse a romper com a Ortodoxia jamais deixaria de apreciar a beleza das ícones, do ritual, da música sacra, da arquitetura religiosa, etc Não preciso crer para sensibilizar-me diante da arte ou da beleza, aqui basta sentir. É outra categoria, distinta, de sentimento e de vivência...

Daqui há uma semana lá estarei de novo para ser periciado... 

Uma vez que meu dedinho mindinho esta quebrado e imobilizado rsrsrsrs

Mas nem por isso, após a perícia, deixarei de ir me arrastando e com todo cuidado visitar mais algumas igrejas e monumentos da grande S Paulo. Espaços em que entrarei em contado com o que há de mais nobre em nossa humana condição: o exercício da fraternidade e a presença da Beleza, pois como dizia o literato russo: "A beleza, a beleza, ela salvará o mundo."


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