sexta-feira, 2 de agosto de 2019

As empregadas na literatura clássica.

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Há no mínimo duas Nastasyas na obras de Mestre Dosto.

Uma casa-se com Mishkin e leva já sobrenome: Pilippovna. A outra, de 'Crime e castigo' não passa de uma criada sem sobrenome, a que chamam simplesmente Nastasya.

Ao contrário da primeira a segunda não é personagem de primeiro escalão nas crônicas de Rodion, mas personagem de segundo plano, o que não é suficiente para tirar-lhe o encanto, ao menos quando serve chá ao atribulado hóspede esfaimado...

Esta Nastasya como tantas Marias ou Creuzas espalhadas pelo Brasil e mesmo pelo mundo, não tem sobrenome, talvez por pertencer a grande massa dos que servem e produzem. Os marxistas costumam classificar tais pessoas como Lupem e as elites a trata-las com desprezo e até mesmo negar-lhes os mais elementares direitos, e há pouco vociferaram quando o Estado brasileiro concedeu-lhes um amparo bastante sumário.

Apesar de estar a margem da obra clássica, Nastasya não deixa de ser interessante, já por ser pintada por Dostoevsky com a acuidade psicológica que lhe é própria ou singular. E a partir do que narra muito resta a imaginar-se. O mestre russo é tão fascinante que narra ou fala justamente quando omite ou silencia. É consumado em sua arte...

E ficamos nós a perguntar-se sobre um possível amor platônico cultivado pela serviçal. Cujo objeto seria o conturbado Rodion...

Amaria Nastasya e por isso apagar-se-ia face a um amor problemático ou impossível? Permanecendo sempre ali como fiel escudeira ou anjo tutelar? A exemplo das esposas de Carlyle, de Lord Beaconsfield ou da fiel Carolina, esposa de mestre Machado???

Intuo uma certa devoção por parte de Nastasya face ao rebento de Pulchéria Românovicht, associada a diversas virtudes como a compaixão, a discrição, a praticidade... enfim tudo quanto aponta para uma sabedoria divina. No entanto com ela ficamos no 'umbral' e 'Crime e castigo' não é obra que se concentre na vida da apagada serviçal...

Passemos assim a outro clássico calhamaço onde topamos com outras tantas empregadas ou serviçais, assim o 'Vento levou' de M Mitchell (1936) obra focada na figura de Scarlett O'hara e que dispensa maiores atenções. Tá certo, temos também Rhett Butler, Ashley, Melanie, etc Scarlett todavia, como Rodion e Maria Rafferty, ocupa o âmago da trama, constituindo o personagem central. E é uma 'filhinha de papai', granfina ou patricinha, como diríamos hoje... Uma garotinha extremamente mimada pelo pai, fazendeiro de ascendência irlandesa.

As empregadas ou serviçais pertencem a este círculo, pois são, por assim dizer 'amas' de Scarlett. Prissy é a mais jovem e caricata, ao menos no Filme. Doutra lavra é a Mammy, a qual, superando Nastasya consegue em certos momentos da narrativa ameaçar a primazia de Scarlett. No filme a 'rivalidade' acirrou-se ainda mais e podemos dizer que a personagem encarnada por Hattie McDaniel faz jus ao Oscar que ganhou. Mammy encanta e seduz porque representa um tipo que segundo o insuspeito Silvio Romero, aqui e lá, soube vencer as adversidades e conquistar espaço a mercê dos dotes do coração, assim a 'mãe negra', entre nós representada na literatura pela igualmente marcante Mamãe Zabel, quiçá calcada na Mammy de Mitchell, mas muito bem aclimatada a nosso Brasil.

Apesar de toda esta riqueza, como dissemos, Mammy não é a personagem central da narrativa e tampouco uma obra consagrada a figura de uma empregada doméstica. E temos de esperar mais um pouco - seis anos - para apreciar o surgimento de semelhante joia, obra prima da Sra Davenport (Marcia). Aqui temos por personagem central - ou se alguém o desejar por heroína - não apenas uma empregada (O que ao tempo era já um desafio) mas uma irlandesa e católica. A antítese dos White Men's. A inversão do padrão socialmente aceito: Macho, inglês e protestante além é claro de rico...
Maria Rafferty não é nada disto, é mulher, quase menina, e mais tudo quanto dissemos, o que em Pittsburgh torna-a sumamente indesejável.

No entanto ao contrário da pragmática e estouvada Scarlett, Maria Rafferty esta bem mais próxima da mãe daquela personagem, isto tendo em vista os sólidos princípios, já Éticos, já morais, os quais cristalizavam a virtude ao tempo. Maria Raffery personifica-os e com o coração transbordante de doçura conquista a todos, inclusive ao Patriarca calvinista Scott, o qual, numa cena magnífica, triunfa de seus preconceitos e diz a Paulo, seu filho querido: Casarás tu com Maria Rafferty!

Maria Rafferty nos faz pensar na parábola do bom samaritano. Pois eram os samaritanos tão detestados pelos hebreus do tempo de Jesus quanto os irlandeses do século XIX, desprezados pelos ingleses e seus descendentes norte americanos. Maria Rafferty aqui personifica a 'boa samaritana' pois é justamente ela quem irá assistir e aliviar os derradeiros instantes da igualmente bondosa sra Scott, Clarice...

Alias, retornando a cena anterior, em que o Patriarca Scott, opta por afrontar todos os tabus e preconceitos impostos por aquela sociedade em nome da felicidade do filho, temos, já o disse, outra cena memorável e pintada com habilidade. Por meio desta cena nos dá a sra Davenport uma aula ou lição de humanismo querendo dizer que os homens sabem ser superiores a suas crenças e ideologias. Guilherme Scott é  um calvinista devoto e como tal costuma guiar-se pelos costumes, não pelos sentimentos, os quais deveriam ser imolados tendo em vista a dignidade da família. O que nos conduz a toda uma vida de convenções ou de aparências, nas qual a moral social esmaga o sentimento e o espírito. Maria Rafferty no entanto faz com que naquele coração de pedra dura passe a bater um coração de carne, cheio de amor e doçura, e posto para o objeto digno: A Felicidade do filho, pela qual ele opta face as ditas convenções, revelando-se como uma pai na plena acepção da palavra, um pai digno deste nome.

No mais as observações em termos de religiosidade - naquele recorte N Americano - não destoam, pelo contrário aproximam-se bastante as que encontramos em diversas obras: 'O fim do mundo' e 'Pamela e Satã' de Beal Sinclair, o já citado 'E o vento levou', 'Anthony Adverse'... que é o contraste entre a severidade - não poucas vezes forçada e aparente - ou a total incredulidade vigente entre os protestantes (Particularmente entre os calvinistas com seu moralismo afetado) e a sensibilidade, doçura, sinceridade, piedade e equilíbrio dos Católicos... Em todas estas obras damos com referências positivas ou elogiosas a fé Católica e com personagens marcantes oriundos deste credo então distorcido e marginalizado pela crítica protestante. Digam o que disserem é este aspecto sobremodo interessante já a Psicologia já a Sociologia religiosa.

O foco no entanto é este: No 'Vale da decisão' temos, quiçá pela primeira vez uma empregada fazendo o papel de personagem principal de uma trama, o que por si só aponta para o avanço dos costumes, em torno da mulher, do fanatismo religioso, do preconceito racial/cultural, do trabalho, etc Sob todos estes aspectos e muitos outros é a obra da sra Davenport recomendável. E não se assustem com a dimensão: Pouco mais de setecentas páginas, apesar dos erros do tradutor (As atuais edições de 'Crime e castigo' sofrem do mesmo mal), mas de um conteúdo delicioso, propício a ser 'devorado'.

Ademais Mobby Dick, Imãos Karamazov, Crime e castigo, E o vento levou, Anthony Adverse, Poço de solidão, como O vale da decisão e Mobby Dick não apenas merecem ser lidos, é um pecado imperdoável não le-los. Vençam a primeira impressão e obterão a devida recompensa.

Profo Domingos Pardal Braz, de Santos - SP


sexta-feira, 17 de maio de 2019

Ninguém é tão sacrílego quanto um pentecostal






ALERTA! Texto religioso. Se você não gosta de assuntos envolvendo teísmo, religião, a leitura à partir daqui é por sua conta e risco.

Uma  reflexão sobre sacrilégios

Geralmente os protestantes pentecostais, neopentecostais e também carismáticos que são  "católicos romanos " reclamam que os ateus são blasfemos e  sacrílegos, por fazerem chacota do Pai Eterno ou de Jesus, cito  como exemplo o Canal Porta dos Fundos que já  foi alvo de processo e de ataques dos autodenominados evangélicos.   Esses mesmos grupos de maus cristãos também reclamam que a esquerda é blasfema e cheia de ateus e não  respeitam o "Estado laico cristão ".

Minha experiência tem me ensinado que não existe grupo de pessoas mais blasfemo e sacrílego  do que o grupo que se autodenomina evangélico. Por que escrevo isso? Vê essa foto? Pois é,  ela dá as boas vindas aos clientes que limpam os pés na palavra DEUS, palavra essa que denomina um ser que é autoexistente, motor imóvel, o CRIADOR, o Ser Supremo, enfim (mesmo quem não crê tem que lidar com esses conceitos e admitir ao menos como hipótese numa discussão). A mensagem do tapete é: "Deus acima de tudo e de todos". Parece até  o slogan do presidente idiota que desgoverna este país. Deus acima de tudo e de todos, mas o nome divino está no tapete, debaixo de todos os pés que entram e saem dessa panquecaria. Deus está ali para ser pisado, pode ser que muitos calçados estejam sujos com merda e eis Deus ali servindo de tapete e ficando sob a sujeira e a merda. Quem precisa da esquerda "blasfema", do Fábio Porchat, do Gregório Duvivier quando se tem as autodenominadas igrejas evangélicas, seus líderes e fiéis que falam, escrevem os maiores absurdos e cometem todo tipo de ações sacrílegas?

Alguém poderia perguntar: como você sabe que esse tapete foi feito, comprado e é usado por evangélicos? Pergunta justa e razoável.  Respondo que sei por meio da indução. Indução é um método de raciocínio  que parte do particular para o geral e é  usado como metodologia das ciências físicas e biológicas. Exemplo: Se a praia A tem areia e mar, a praia B também tem, C idem, D igualmente  e assim sucessivamente, segue-se que a praia Z que eu não conferi, mas pelos dados que tenho concluo ter ela areia e mar. Todos os absurdos que tenho visto vejo apenas nas igrejas pentecostais e neopentecostais  e em menor número  nas igrejas históricas.

Como eu sei não se tratar de um cristão ortodoxo ou de um greco-católico ou de um católico romano tradicionalista? Simples. A orientação que é  dada a esses grupos cristãos  é  que se um livro deteriorado com orações, com textos que se referem a Deus sejam queimados, justamente para que não aconteçam sacrilégios com tais textos. O mesmo deve ser feito com ícones impressos em papéis, pintados em madeira, se estiverem  num estado irrecuperável devem ser destruídos para evitar que sejam profanados os objetos sagrados. Isso porque esse grupo de cristãos tem noção do sagrado. Um cristão ortodoxo ou um greco-católico ou ainda um católico romano tradicionalista jamais faria uma aberração dessas, jamais exporia  o nome de Deus ao ridículo, jamais tomaria em vão o nome do Ser Supremo como ordena o segundo mandamento da lei mosaica.

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P.S.: O pé  que aparece sobre o tapete é  o meu pé.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Dialogando com Russel Kirk - Ideologia, Conservadorismo, Reacionarismo: Definições e fontes

Após ter lido os assim chamados conservadores Católicos, cuja mentalidade conheço, as afinidades reconheço, certo realismo aplaudo... achei por bem ler os outros conservadores, a começar pelo 'esplêndido' Burke - cuja obra ainda não li apreciando apenas alguns resumos de Nisbet, A Weber e outros... Fui quando mudei de ideia e a Burke antepus os principais teóricos conservadores da modernidade, assim John Gray, Scruton, R Kirk, etc Ludovici é controvertido... Ao ler a anatomia de Gray dei conta do espírito - 'Ceticismo, irracionalismo, relativismo e subjetivismo.' e se isto não é ideologia não sei que seja! E no entanto este Gray escreve bastante bem, é fartamente bem informado, um interlocutor primoroso e erudito. Muito aprendi com ele sobre John Stuart Mill - de cujo liberalismo político, em termos de princípios, comungo - Isaiah Berlim e outros.

Acabo de ler o primeiro artigo de Kirk, o qual é dado por muitos como Católico e assim acatado. Claro que tenho de critica-lo sob o ponto de vista do Catolicismo, o qual possui uma Ética encarnada, e assim uma doutrina social bastante exata. Por isso antes de ler o dito artigo examinei o 'índice onomástico' ( Í Remissivo p 474) da Política da prudência 2014. Se Kirk foi de fato Católico é para espantar seu desprezo pelos autores autenticamente Católicos - Crane Brinton, Hugues, A Weber... dentre outros, alistam mais referências Católicas do que ele... Nem sequer uma menção a Leão XIII. Total ausência dos Antigos Padres, dos escolásticos - como Aquino - dos prolíficos salmanticenses - assim Suarez - e obviamente dos Católicos sociais... Afinal tudo aqui inspira ideais e princípios que parte do Sagrado, aos quais o sr Kirk fará uma série de apelações artificiosas e inconsistentes.


Tenta ele, não sei se sinceramente, desvincular-se do que seja ideologia, ao menos das naturalistas ou imanentes, mas, a primeira vista, parece que abdica de todo Ideal ou de ideias firmes e exatas identificando-as com sonhos, fantasias e imaginações... as quais opõem a experiência das formas tradicionais testadas pelo tempo, supondo-as superiores. Parece-me que há aqui um travo de positivismo ou o que seria ainda pior, de ceticismo e irracionalismo. Faz lembrar ainda - e reporto-me também a Gray e outros - aquele 'tradicionalismo' 'Católico' de Bonald, Bautain, Ubaghs, Lammenais, etc que renovando petições a Agostinho, restringia a capacidade do nosso aparato racional. E Agostinho esta na base de tudo isto - de todo ceticismo ulterior - de Occkhan, de Lutero, de Montaigne, de Kant, etc - por ter bebido nas fontes do maniqueísmo. São tradições protestantes que ora se encontram, complementam e reforçam, inda que secularizadas por um Hume ou um Kant.

Mas antes que me esqueça deixem-me apresentar-me. Não sou conservador porque não aprecio o termo relativo e indefinido 'conservador'. Sou daqueles paradoxais 'revolucionários reacionários' descritos por Nisbet ou daqueles que querem mudar radicalmente a sociedade atual ou contemporânea, ocidental, americanizante e americanizada, tomando por base não um futuro hipotético, fantasioso e imaginário, mas o passado, inda que não seja necessariamente tradicional. Pois também as tradições, como tudo que é humano. deve ser criticada, seja por parte da fé, da razão ou da ética, que é um tipo ideal. Gosto portanto de apresentar-me como um reacionário, aos modos lúcidos de um N Berdiaeff, o qual me parece muito mais prudente e profundo do que Burke, ao apresentar a Revolução francesa e todas as outras que a ela se seguiram como efeitos de um processo social degenerativo por assim dizer crônico e fatal, o qual devemos evitar a longo prazo ou sofrer pacientemente, mantendo-se numa justa neutralidade.

Aqui o gênio russo ou latino depurado daquele idealismo alemão assumido por não poucos ingleses e N americanos, o qual pressupunha, leviana ou ingenuamente serem as Revoluções  causadas pelo poder extraordinário de algum ou de alguns indivíduos desordeiros. Enquanto refletem sempre, seríssimos problemas sociais, captados e explorados por tais inteligências. Doutro modo, numa Sociedade bem constituída e sadia os esforços de tais inteligencias seriam totalmente inócuos. As sementes da Revolução só germinam em solo propício, no bojo de.sérias patologias sociais. Eis o que Berdiaeff percebeu.

Então Revoluções pedem contra revoluções antecipadas, ou profilaxia. Podem ser evitadas por meios de sábias reformas, jamais debeladas a posteriori e as contra revoluções caturras, suscitadas por tradicionalistas ou conservadores impenitentes sempre estarão fadadas ao fracasso e a ruína. Há coisas que merecem ser conservadas indefinidamente. Não tudo...

Vejam Burke, fala, fala e fala... escreve, escreve e escreve contra a malsinada Revolução francesa. A qual deseja bloquear ou paralisar utopicamente. Ora nós que ainda respiramos os ares sãos da contra reforma e da medievalidade pura e sem mistura, incontaminada... sabemos que o buraco é bem mais embaixo que a Rev francesa já havia sido posta em marcha pelo liberalismo econômico ou fisiocraticismo, bem como pela o nova ordem absolutista, a qual em comunhão com a burguesia, havia iniciado a dissolução da ordem precedente. Que dizer então da reforma?

Mesmo sem endossar as teses radicais de Gaxotte e do Pe Delassus temos de declarar que ao menos quanto os métodos jacobinos ou violentos, todas as Revs ulteriores reportam a Reforma protestante. Nem é menos verdade que da subversão da ordem espiritual vigente, os campônios anabatistas do Sul da Alemanha deduziram certas reformas ou transformações sociais, incoerentemente descartadas por Martinho Lutero. A petição no entanto ali ficou... Enquanto a curiosa reforma cai nos braços do estado vindo, em todas as partes a fomentar o absolutismo e o capitalismo. Desde então, ficou a antiga Sociedade - das comunidades - inexoravelmente condenada a uma morte lenta. Desgastaram-na-a, tanto na França quanto na Inglaterra o absolutismo centralizador e o mercado em ascenção. Destarte, quando desabou a rev francesa havia apenas uma espécie de casca ou de aparência do passado, envolvendo entidades mortas ou moribundas. A Rev francesa limitou-se a empurrar um cadáver a sepultura ou a derrubar uma palhoça  desprovida de fundamentos. O trabalho de demolição já havia sido feito por três fatores organicamente relacionados e conjugados: A reforma, o absolutismo/nacionalismo e o capitalismo emergente.

Sendo assim, se nos devemos situar antes dessa Reforma, conservar o que? O protestantismo? Os nacionalismos? O Capitalismo? Este caos de culturas de morte? A troco de que?

Observe-se então, quanto ao conservadorismo, o mesmo que Kirk aplica a Ideologia. É um vocábulo ambiguo, relativo e insuficiente... Pois o objeto da conservação deve ser sempre situado no tempo e no espaço? Que modelo social você deseja conservar? O atual ou o de hoje? Então esta vinculado aqueles fenômenos que levaram a Rev Francesa que você condena: Protestantismo, Absolutismo/nacionalismo e Capitalismo... Se é isto que quer conservar como deplorar a Rev francesa e fugir a uma Rev comunista ou anarquista? Acha que pode brincar com tais forças ou parar levianamente o fluxo? Os girondinos tentaram e falharam...

Na atual sociedade degenerada, fruto do protestantismo, do nacionalismo e do capitalismo em comunhão com o ateísmo, o fanatismo, o ceticismo, o relativismo, o subjetivismo, etc não vejo nada muito digno de ser conservado e legado a posteridade. Somos decadência ou fim, como suspeitavam Spengler, Huizinga, Toynbee, etc mas temos em nossa experiencialidade história, anti corpos e vacinas.

Temos de varrer este mundo pela base e retroceder a Reforma com seu veneno individualista. Temos de retroceder o nacionalismo totalitário e o capitalismo acima de tudo. E não nos podemos enganar. Então temos de ser anti conservadores, temos de ser reacionários. Mesmo quando afirmamos o liberalismo político ou o progressismo em matéria de costumes e sexualidade, reporta-mo-nos a Grécia ou ao Evangelho e nossas fontes do futuro estão lá no passado.

Por isso não podemos caminha com Kirk e com suas ideologias subjacentes.

Antes de tudo a primeira delas - O prudencialismo, enquanto simples pragmatismo derivado da tradição ou do que chamamos senso comum. Em oposição a uma reflexão ou planejamento racional... Kirk ao escudar-se no pragmatismo de James, toma por protetor um filho do ceticismo, assim duas ideologias nada saudáveis. Como Gray e todos os outros ele desconfia do aparato racional... Como Hayek aproxima-se de Kant ou mesmo de Hume... Atira-se a corrente do irracionalismo e só enxerga um concorrente digno: A religião... Não o Catolicismo, encarnado e na posse de um certo sentido imanente. Por via de Agostinho talvez nosso homem encontra o luteranismo, relacionando a salvação com a graça, mas omitindo as obras, conforme já assinalado com propriedade por Maritain e Mellawace numa perspectiva social. Chega assim a Plotino e a um falso Cristianismo, desvinculado do mundo material e sensível e que só se realiza no céu ou no além. Como o espírito descarnado do protestantismo, Kirk e seus guias, seguem na contra mão da encarnação ou de uma fé ética, que inspira as relações sociais e penetra a atividade política.

Kirk não deseja transformações, que correspondam a uma categoria ideal, que nos possibilite a criticar o real ou o existente e buscar transforma-lo. Conforma-se com o mundo real ou existente e destarte retoma a postura dos céticos como Pirro ou dos positivistas pós Litreé... O mundo deve ser aceito tal qual nos foi dado, conservado e não eticamente aprimorado. Do ponto de vista Católico temos um supremo absurdo. Pois. Em certo sentido, não draconiano ou jacobino, foi o Cristianismo primitivo uma colossal revolução face a uma cultura antiga e tradicional, escravista acima de tudo, mas também machista, infanticida e desumana. O humanismo divino com que o Catolicismo reforçara o socratismo fora para muitos uma novidade preocupante e os pensadores neo platônicos dos primeiros séculos não cessavam de denunciar essa preocupação 'patológica' com o próximo, este sentido social, este culto concreto ao amor e a justiça.

No entanto os vícios do paganismo reverteram. De modo que o Catolicismo Ortodoxo jamais encerrou sua missão a um tempo ética e social em torno de ideias ou conceitos essenciais como a fraternidade, a justiça e a liberdade, os quais encara como princípios éticos inegociáveis.

Digo mais e digo honestamente a Kirk e seus seguidores - Se o Catolicismo a um tempo conformou-se com as mazelas deste mundo, traiu a si mesmo e deixou de consumar sua missão social é absolutamente natural que outros a tenham assumido, inda que não fosse com a mesma pureza. Quem abrir os Evangelhos e le-lo tornar-se-a reformador do mundo, seja aos modos de um Marx ou de um Bakhunin, aos modos de um Kropotkin ou de um Tolstoi. Podemos e devemos criticar certos métodos apenas se buscamos fazer algo.
Por isso não posso compreender o derrotismo ou comodismo de um T S Elliot. A da-lo por epifenômeno psicológico não posso de modo algum da-lo por Católico. O Católico tem sim esperança para este mundo, posto que foi materialmente assumido pelo Verbo através do mistério da Encarnação. E tem sobretudo tem firme esperança neste homem corrigido, santificado e aperfeiçoado por uma graça capacitante.Nossa noção de graça não é a de Lutero, graça formal, exterior e frágil, mas de uma graça que vivifica o coração e torna poderosa a boa vontade. Sequer nos é dado sofrer e chorar com Bernanos, mas lutar e combater com S Basílio, Camilo, João de Deus, Cotolengo, Ozanam, Meignam, De Munn, Keteller, S Weil, Mother Jones, etc com toda esta constelação de heróis ignorada por T S Elliot ou Kirk, os quais não se conformaram com a realidade dada ou pré fabricada.

Onde há opressão, crueldade, injustiça, maldade, intolerância, etc há algo a ser feito. Há trabalho para o Cristão engajado, filho da Ética ou do Evangelho. Dado que o agostinianismo triunfante ou o protestantismo por muito tempo aluiu este ideal Cristão de combate, desviando o Catolicismo defensivo para os domínios da verdade puramente intelectual ou do além, produziu as condições necessárias para que a realidade social se tornasse ainda mais distante dos ideais sagrados. O que suscitou, a falta ou insuficiência de uma reação autenticamente Cristã, uma reação Naturalista, resíduo de uma Ética Crista desfigurada ou naturalizada e
associada a métodos violentos e virulentos. Kirk parece admirar-se ou melindrar-se desta reação secularizada, mas inspirada numa ética Cristã. E em tempo algum se pergunta a respeito de ideais e princípios éticos, no acesso da via racional ou metafísica.

Social ou culturalmente a fé foi sucedida pela razão ou pela metafísica e esta enfim - após Kant - foi sucedida pelo empirismo cientificista pela percepção enfim, até chegarmos ao nihilismo i é a fase em que fé, razão e ciência foram simultaneamente descartadas, devendo o homem, mais do que nunca conformar-se com o dado ou o prosaico. Durante todo este curso os homens situara a fonte da ética no que tinham por estável e os que admitiam, com Sócrates, Platão e Aristóteles, o poder da razão, fizeram dela um padrão de Ética, a um tempo naturalista e a outro essencialista. Gray teve de admitir que o 'erro' ou a busca pela unidade principiará não com a Revelação Cristã ou com a fé, mas com a racionalidade helênica, o que já havia sido enunciado por Alfred Weber. Não se trata apenas de uma secularização do Cristianismo - claro que esta se faz presente em grande número de casos - mas também de nossa herança grega ou clássica. Nietzsche não estava errado ao relacionar Jesus com Sócrates, tampouco Ayn Rand.

Diante disto é perfeitamente compreensível que após a crise da fé e decadência do padrão revelado, tenha a Ética ocidental mergulhado em suas raízes mais remotas i é racionais. Daqui, procede Kirk, procede um sectarismo de fundo místico ou religioso. Também, diremos nós, da Filosofia ou da Ética gregas surgiram diversas escolas rivais, e polêmicas, e debates e discussões sem fim. Mas alguns, a partir de Sorel, tem apelado conscientemente a violência, mesmo a virulência e a crueldade. No entanto existem diversas formas de violência e de crueldade que não fazem verter sangue e estão presentes em todos os tipos de sociedade. A Revolução deles sofre abusos? Que instituição divina ou humana não os sofre. Aspiram transforma a História por outros meios que a educação/formação... Bem isto remonta a Reforma que quase todos aplaudem, bem como a Revolução inglesa, que não foi feita com flores. Ademais por que raios  teria o bom Burke aplaudido a Rev Inglesa, levada a cabo por Burgueses contra o episcopado anglicano - denodado defensor das tradições - e vaiado a francesa??? Teria aquela sido feita com flores?

Enfim Kirk parece não perceber que apelar a tradição é ideologia, como o pragmatismo, o ceticismo, o o conformismo, o positivismo... Quer conciliações fáceis, porque lhe faltam princípios sólidos fornecidos pela razão ou mesmo pela fé. Parece confundir propositadamente convicções e discordância com sectarismo. Afeta-o que alguns tentem reformar ou aprimorar as formas sociais através do político??? Terão de ser alteradas por remota inspiração religiosa ou pela educação... Mas se fogem a reformações episódicas como haverão de conjurar os movimentos radicais? O ocultando os problemas ou fingindo que não existem? Feliz o doente que reconhece seu estado e corre ao médico... A pior farsa é a de uma sociedade imutável e fixa. Nem mesmo o antigo Egito ou a antiga China vivenciaram semelhante estado de coisas. Há coisas que devam ser conservadas? Certamente há, ao menos na esfera dos princípios e valores de que emanam os direitos essenciais da pessoa, assim a liberdade, a dignidade e a justiça... Há um progressivismo iconoclasta e indesejável, filho do mesmo relativismo oco? Como nega-lo?

Adotemos portanto, em todos estes nichos, uma via média inspirada numa Ética religiosa ou na Ética essencial da pessoa - inda que naturalmente deduzida - e busquemos aplica-la recorrendo ao elemento comum da razão. Este posicionamento nos conduzirá a um são liberalismo político, a afirmação dos direitos fundamentais da pessoa e a busca pela justiça nos domínios sociais. Ora, nenhuma destas perspectivas: liberdade, policracia, afirmação de direitos, o culto da justiça, a busca por uma paz digna nos afastará de nosso passado mas nos reconciliará em parte com a Idade Média mas sobretudo com a tradição divina i é com a antiguidade Cristã. Destarte não nos alinharemos com Comunistas ou Capitalistas, nem mesmos com os Conservadores ou Anarquistas, mas daremos com soluções próprias, com soluções Católicas, o que Kirk jamais encontrou ou foi capaz de formular, beliscando em prato protestante e devorando migalhas.

Os católicos, inspirados, não determinados ou dominados, por elementos de uma fé revelada e fecundada pelo elemento natural da razão, construirão suas soluções, não se alinharão e nem sempre serão instrumentos manipulados pelo liberalismo econômico, pelo conservadorismo acrítico ou pelo comunismo. Temos de ter visão própria. E de criar cultura própria ou de resgata-la, encarando nosso passado multi secular.

Eis o que tenho a dizer sobre Russel Kirk - Não lhe faltam ideologias subjacentes, as quais nada teem de Católicas, e ele, como tantos outros parece flertar com elementos de origem protestante e assimilar certa dose de veneno americanista.


sábado, 16 de fevereiro de 2019

Dinâmicas da História ocidental - Protestantismo, Absolutismo, Estatismo e Capitalismo...

É do ser humano buscar a paz e evitar o conflito ou a desordem, e, durante muito tempo, foi a pluralidade sinônimo de desordem ou conflito. Tolerância era algo que não se pensava e que não fazia mínimo sentido.

Apenas podemos imaginar aqueles tempos primitivos em que os deuses 'masculinos' e ferozes combatiam uns contra os outros, tal e qual seus devotos ou suas criaturas - Clã contra clã, aldeia contra aldeia, tribo contra tribo...

Hobbes explorou exaustivamente o estado feroz do homem primitivo e a condição belicosa das primitivas sociedades, instigadas pela fúria religiosa e a descoberta da América, ao menos quanto ao México e circuncaribe sugere semelhante configuração.

Caso Gimbutas esteja certa - e em parte ao menos parece estar - foi apenas após o advento da agricultura que certas culturas matriarcais, vinculadas ao culto da deusa mãe i é da mãe terra, idealizaram o que se poderia talvez chamar de primitiva cultura da paz. Ademais não lhes faltavam subsídios alimentares ou reservas... saliento aqui a presença de dois elementos relacionados com a cultura da paz, um ideal e um material: O configuração do culto em torno de uma figura maternal e a suficiência alimentar.

Nem por isto a paz consolidou-se. Posto que os povos nômades das estepes e desertos, machistas e adoradores de deuses belicosos, não tardaram a assaltar as culturas agrícolas e assim os primeiros centros urbanos. Em pouco tempo o conflito entre citadinos e nômades assumiu enormes proporções e em quase todos os lugares, declara Khaldun, os nômades belicosos venceram os povos das cidades, destruiram-nas ou instaram-se nelas. E instalados nelas lançaram cidades contra cidades...

Poucas sociedades, alias afortunadas, conheceram o que ora chamamos paz ou estabilidade, achando-se como que a salvo dos conflitos que assolavam o mundo. Uma delas foi o antigo Egito. Herdeiro de uma remota tradição matriarcal e beneficiado por suas fronteiras naturais, mal fora unificado por Menés, pacificou-se o Egito, conformando-se com as ditas fronteiras, disto resultando um multi secular estado de paz associado ao progresso material e espiritual. cf Kurt Lange

Foi na Mesopotâmia que Sargão I de Acad, após ter conquistado as cidades estado do Sul - Shumer - e unificado o pais, idealizou, por vez primeira um Império multi nacional associado a pirataria. Ele mesmo declarou ter conquistado todas as terras existentes desde o Mar inferior ao Mar superior e é certo que seus exércitos ou hordas chegaram as praias do Mediterrâneo. Tampouco o Egito ignorava a existência de tais terras enquanto edificava suas monumentais pirâmides. Sargão, como disse, não era asiânico ou sumério, vindo do Sul, mas sêmita, vindo do Norte, filho de uma cultura oriunda dos desertos, preponderantemente machista e adoradora de deuses guerreiros. Foi esta cultura que predominou ao Norte, na montanhosa Assíria e que a tornou tão diversa da Babilônia situada mais ao Sul.

Sargão jamais disfarçou sua ideologia - se é que assim podemos chama-la - oportunista ou prática (da pilhagem) e tampouco, creio eu, seu neto Naram Sin, o qual considerava-se deus vivente sobre a terra. Em algum tempo posterior no entanto, o primitivo imperialismo refinou-se, convertendo-se em veículo de uma sonhada unidade, que seria vínculo de uma paz eterna. No entanto para que a dita paz se concretizasse era necessário suportar as guerras de conquista, e sofre-las, o que nos faz lembrar a ditadura do proletariado na teoria marxista, i é o inferno que deve preceder o paraíso... Paradoxalmente o ideal da Unidade ou do Império foi que acendrou os conflitos e alimentou as guerras.

A partir desta perspectiva nacional ou imperialista as cidades estados sempre foram encaradas como um estádio ou fase, jamais como algo definitivo ou perfeito. Para os imperialistas de todas as épocas o sistema das cidades estado sempre foi visto como algo confuso ou caótico tendo em vista seus pequenos conflitos, que de fato eram contínuos. Já nos tempos do citado Sargão não só alguns acadianos, mas até mesmo alguns sumérios, devem ter visto as coisas por este ângulo e acreditado que a unificação imperialista extinguiria as guerras e consolidaria a paz.

Tanto as cidades estado gregas, quanto as da antiga Etrúria e as da Itália medieval, não deixaram de produzir a mesma impressão, não apenas quanto a seus inimigos externos, inseridos noutras culturas, mas certamente entre alguns de seus próprios habitantes. Em todas cidades estado da antiga Grécia e da Itália medieval houve um grupo maior ou menor de Imperialistas, seduzidos pelo ideal de uma unidade política universal, cujo fim último seria a extinção de todas as guerras e a instauração de uma paz perpétua.

Sem que os feudos equivalessem a cidades, não deixavam por isso de - ao menos segundo o costume - de constituírem uma instância social autônoma. Já em Portugal e Espanha damos com os municípios, cujas origens, romanas ou árabes, ainda são exaustivamente discutidas, e que gozavam de larga autonomia. Havia ainda a Igreja representada pelo poder episcopal, fundamento da economia religiosa; as universidades, as corporações, as guildas, as ordens religiosas, etc Uma constelação de coletivos ou comunidades que subsistiam a par do poder político, considerado por muitos como insipiente.

A partir do protestantismo - incapaz de afirmar-se como autoridade religiosa supra pessoal e objetiva - de um capitalismo tolhido em suas ambições e de um unitarismo político centralizador, o quadro acima descrito era, como já dissemos caótico, confuso e até alarmante. Posto que entre tantas comunidades ou grupos sociais era o conflito uma constante e pequenos conflitos estouravam a todo instante entre feudo e feudo, cidade e cidade, diocese e diocese, etc Nem era o ideal da 'comunitas comonitorum' perfeito, nem a todos agradava...

Durante a alta idade Média, quando o militarismo dos senhores e cavaleiros constituía o único ou principal objeto daquelas comunidades, constituiu-se um quadro realmente pavoroso, que resolveu-se apenas por meio das Cruzadas. As Cruzadas no entanto, por diversos fatores, propiciaram outras formas de ser e de existir, através de sucessivos Renascimentos, no quadro da própria Idade Média, deles resultando o que chamamos de baixa Idade Média, momento em que floresceu a constelação acima descrita e em que os conflitos conheceram significativa atenuação. Em que pese os ensaios, incipientes, de unificação e centralização nacional, a partir daqui promotores de outras tantas guerras. Estas no entanto eram justificadas com apelar-se a unidade nacional ou imperial enquanto vínculo da paz.

Enquanto frutos de uma conjuntura específica - a luta entre o Império e o Papado - Maquiavel acreditava que as cidades estado italianas não teriam como manter-se a partir do momento em que uma das partes saísse vitoriosa. E por isso, voltando-se contra a autonomia daquelas repúblicas, endossava uma unificação política em termos de Itália, a qual servisse de contra peso ao Império e ao Papado... Político sagaz, ele não podia crer que meras cidades estados, rivais umas das outras, fossem capaz de resistir as pressões exercidas por um inimigo externo unificado. A partir deste princípio realista, a ser considerado ainda hoje, ele recomendou uma unificação a qualquer preço, sem considerações de postulados éticos.

Quanto ao resto da Europa outro era o fator em fermentação, e estava inserido em cada estado após o Renascimento econômico. Pois as comunidades medievais amparadas pela cultura ou pelo costume não correspondia as expectativas em torno das mudanças a serem implementadas no que concerne a produção. Tampouco facilitavam as operações financeiras... Além disto havia a instância eclesiástica, 'proprietária' da moral ou da ética. Sejamos claros - A coesão comunitária presente na I média e paradoxalmente associada a multiplicidade das formas sociais não facilitava as coisas para o capitalismo emergente... Tinha de ser debelada e não apenas debelada mas satanizada para sempre. Para os que sonhavam com transações econômicas lucrativas, unidade e centralização política e um controle ético fragilizado a Idade Média só podia ser trevas.

Tinha a Idade Média Cristã dois grandes adversários, os quais estão na gênese da modernidade: O ethos econômico ou economicista e a centralização política em torno do estado nação. Mas eles, por si sós, enquanto simples interesses prosaicos, não tinham como legitimar-se. Face ao poder da Igreja e do universo cultural por ela surtido não tinham o economicismo e o estatismo emergentes como abrir quaisquer brechas naquela constelação. Precisavam aquele tempo de uma instância ou poder espiritual que desse início a grande revolução e justificasse suas aspirações. Por isso se diz e afirma, com absoluta exatidão, que ao fim da Idade Média e nos primórdios da Idade moderna a revolução tinha de ser religioso. E foi.

A religião ou um setor adaptado da religião tinha de facilitar as coisas para o estado e o mercado emergentes e por isto, ainda hoje, em 2019, deve o estado centralizado e economicista ser grato a esta forma religiosa e beijar-lhe os pés. Salvo devido a atuação de algumas almas sinceras e honestas o Estado totalitário e a ditadura do Mercado nada temem por parte do protestantismo, justamente por ser ele, uma de suas fontes.

A partir da primeira grande Revolução moderna, inclusive com marcado recurso a força, as coisas deslancharam bastante rapidamente. Pois dirão os dois Weber, o romanismo - em parte continuação do Catolicismo Ortodoxo - sendo tradicional, conferia aquela sociedade um ritmo de transformação bastante lento, o qual jamais viria a ultrapassar o ritmo interno da Grécia, de Roma ou de Bizâncio, a menos que, por intermédio de uma nova religião ou de um novo padrão de Cristianismo - não tradicional - algum princípio dinâmico, fosse injetado naquele corpo social. O protestantismo foi que injetou, primeiramente no organismo religioso - alma daquela sociedade - este elemento dinâmico, caracterizado pelo subjetivismo e pelo individualismo.

Onde quer que o protestantismo tenha sido introduzido a eliminação do poder religioso - representado pela hierarquia papista - culminou numa transferência de poder para o estado secular, o qual, assumindo a esfera daquele, torna-se total, centralizado e absoluto. Na medida em que os Bispos cedem espaço a pastores protestantes, que são funcionários públicos remunerados, a unificação nacional ou regional converte-se num caminho sem volta. Desde que a Igreja Católica fragmentou-se e que - no cenário protestante - as pessoas foram, muito rapidamente, perdendo a fé na religião, o vínculo da unidade - acompanhado por certo misticismo que virá a converter-se numa religiosidade nacionalista - vai sendo mais e mais transferido para o estado político centralizado, e consolidando a centralização.

Este processo de acumulo de poder por parte do Estado foi tão rápido que Henrique VIII - de carona na Reforma - e seu filho Eduardo governaram como senhores absolutos, não menos que Maria, Isabel e Tiago. Mesmo num pais papista quanto a França, onde a oposição feudal, por oportunismo político, congraçou-se com o calvinismo, ao cabo de um século teremos um Luis XIV, o qual segundo a expressão cunhada por De Figgis 'Jamais teria existido sem Lutero.'. Desde que manifestaram-se os estragos sociais advindos da Reforma protestante, os católicos perplexos, metendo os pés pelas mãos, passaram a desconfiar de todos os tipos ou formas de variações, mesmo profanas ou seculares, precipitando-se, da multiplicidade de formas sociais para precipitarem-se no abismo monolítico da unidade. Fortaleceram assim o movimento iniciado pelo protestantismo, como endossam ainda hoje o capitalismo... Sempre buscando contrapesos face ao protestantismo...

Importa saber que esta consolidação de um estado unitário, centralizado e absoluto não foi o fim de tudo. Ora, esta unificação, justificada pelo protestantismo ou desencadeada por ele, foi financiada as expensas da burguesia. Foi ela - apud Huberman 'História da riqueza do homem' - que emprestou ou doou consideráveis somas aos príncipes ou senhores mais poderosos de modo a que unificassem seus domínios suprimindo as aduanas feudais, municipais ou citadinas. Além disto, o poder político central unificava pesos e medidas, estabelecia um padrão monetário e simplesmente declarava nulas as tradições que porventura limitassem a atividade econômica. Por isso, durante algum tempo, o interesse do monarca e da burguesia foi o mesmo, e caminharam juntos.

Durante todo este tempo, em que o capitalismo apenas afirmava-se e ensaiava seus primeiros passos, buscavam os monarcas subordina-lo ou controla-lo por meio do monopólio régios e dos impostos, quiçá imaginando que sempre seria assim. No entanto, já em 1628, a burguesia inglesa, senhora do parlamento, ousou dizer não a seu monarca, disto resultando grave conflito e o envio do soberano ao cadafalso. No momento em que a burguesia em franca expansão prescindiu do apoio do Estado absoluto, passando a encara-lo como um prejuízo, os fisiocratas e seus sucessores, partindo do modelo científico, físico newtoniano, elaboraram uma teoria que dispensava o adjutório do poder político, lançando os fundamentos do liberalismo clássico. Um dos sinceros fautores desta fé ingênua foi Adam Smith... Em momento algum o elemento humano, que envolve as relações econômicas, foi considerado. Tanto o irracionalismo, quanto o voluntarismo e o erro, sempre presentes na ação humana, foram desconsiderados pelos adeptos desta teoria. Sendo aprioristicamente eliminado o tema da indeterminação, posteriormente retomado - numa falsa perspectiva - pelo kantiano Hayek.

Concomitantemente a este movimento rumo ao economicismo liberal - que afirmasse concretamente a partir de 1830 - houve, desde a rebelião dos camponeses em 1528, um clamor por liberdade da parte do povo ou da gente comum... O qual não podia deixar de crescer na mesma proporção desde que os burgueses principiaram a acometer o estado absoluto. Já na Revolução inglesa estes elementos populares constituem uma poderosa facção, assim chamada niveladora. Na Revolução francesa, por vez primeira, uma facção moderadamente popular chega ao poder com Robespierre e, após sua queda,. torna a conspirara com Gracco Babeuff. Até 1800 puderam os revolucionários de segunda classe ou das classes baixas, ser manipulados e burlados pelos burgueses, aos quais se haviam unido com o objetivo de eliminar os senhores absolutos, da mesma forma como estes haviam debelado as comunidades ancestrais. Após 1800 e ao cabo de todo século XIX os deserdados - ao menos quanto ao método filhos da reforma - se esforçarão para levar a Revolução - seja a de 1528, a de 1628 ou a de 1789 - a seus termos finais...

Importa saber que a cabo deste projeto, que era eliminar as comunidades tradicionais postas entre o individuo isolado e o poder político central e todo poderoso, e eliminando-as reduzir as situações de conflito jamais veio a concretizar-se. Eliminou-se a mediação da igreja antiga, eliminaram-se os privilégios das universidades, mosteiros, municípios, corporações, etc mas não os conflitos ou as guerras, as quais de limitadas e concomitantes - como na velha ordem - passaram a ser colossais, duradouras e totais, inda que periódicas. A ponto de abalarem o continente como um todo, como a guerra dos trinta anos, a própria revolução francesa ou as duas grandes guerras mundiais. Jamais os pequenos conflitos, generalizados durante a alta Idade Média, haviam posto em risco a existência da civilização ou mesmo da espécie a exemplo das conflagrações totais dos últimos séculos e se Pinker tem razão quando declara que a modernidade alcançou a redução do número de conflitos, na medida em que os pequenos domínios de outrora converteram-se em macro estados, ignora ou finge ignorar que os conflitos da modernidade foram muito mais amplos desastrosos ou avassaladores.

O fato de que - a partir dos 1700 - as nações europeias passaram a temer umas as outras ou de que a fórmula da Inglaterra como fiel da balança funcionou durante longo tempo não bastou para evitar a guerra Anglo francesa ou as guerras napoleônicas, juntamente com a Revolução francesa, prenuncio de algo muito pior - 1914 e 1939! Por outro lado, desde 1945 não cessaram os EUA de produzir ou de gerenciar outros tantos terríveis conflitos em torno do globo. Por fim nem o Estado absoluto ou o Império e tampouco o deus Mercado bridaram-nos com aquela Era de ouro com que sonhavam já os antigos sumérios... Vangloriam-se capciosamente de terem reduzido o número das guerras - que a religião e as pequenas comunidades conflitantes multiplicavam... Para brindarem-nos com guerras ainda mais desastrosas. Posso dizer enfim que o macro estado e o mercado engaram-nos sordidamente. Temos assim de retornar - criticamente - a nossas tradições sociais, anteriores a grande revolução protestante.

A suprema vergonha é que parte dos intelectuais 'católicos' ainda não tenha feito isto e buscado soluções Católicas na Tradição social da Igreja, mas ido beber nos poços salobros não somente de Marx mas acima de tudo dos liberais economicistas, poluindo-se com suas teorias materialistas e naturalistas. E pouco vale atirar pedras aos marxizantes da parte do erro capitalista. Esta mais do que na hora dos Cristãos Católicos desvincularem-se não apenas do Marxismo mas antes de tudo do Capitalismo, que é uma ideologia alimentada pelo protestantismo a partir de sus rebelião.

Fontes - Robert Nisbet 'Os filósofos sociais' e
              Alfred Weber 'História social da cultura'