terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Paulo Freire, o positivismo, o catolicismo e a neutralidade do ensino





Como tenho acompanhado de perto a recente polêmica suscitada pelos liberais e conservadores em torno dos pressupostos pedagógicos enunciados por Paulo Freire a respeito do dogma positivista da neutralidade do ensino e, simultaneamente repassado algumas leituras como o 'Manual de Pedagogia Moderna' de Everardo Backheuser (Globo 1941), o "Tratado de Pedagogia" de Mons Pedro Anísio (Civilização Brasileira 1935) e os compêndio do 'Tio Baldo' e de Amaral Fontoura dentre outros; aproveitei a oportunidade para escrevinhar algumas coisinhas.

Segue um fragmento de nossa reflexão:

De tudo quanto expusemos até aqui a respeito da objetividade material e da instrução formal, extraem os positivistas seu derradeiro dogma, o do ensino neutro, imparcial ou não ideológico e expurgado de todo conteúdo subjetivo ou individual.

Segundo declaram a Instrução técnico científica ministrada por eles tem por único fim e objetivo levar o educando a conhecer a realidade externa a si sendo por isso mesmo comum e isento. Afinal, não se trata aqui de julgar a realidade externa a partir que qualquer conteúdo interno de consciência ou de determinar arbitrariamente o que ela deveria vir a ser, mas apenas de perceber, registrar, descrever e compreender.

Por isso que o ensino positivista, sendo descritivo nada tem ou pode ter de crítico. Trata-se dum ensino comodista, cuja tônica não é questionar. Ao aluno resta a solução de inserir-se na realidade externa, de adaptar-se, acomodar-se e não de altera-la, isto sequer vem ao caso...

Assim o positivismo abdica de formar o homem todo ou de falar a sua vontade e da-se por satisfeito com o informar ou encher o intelecto.

Como já dissemos sua tônica é instruir e não educar.

E como em tese todos deverão receber as mesmas informações ou conteúdos determinados pelo currículo temos um ensino sem contaminação ideológico/subjetiva ou como dizem neutro.

Aqui como sempre contempla-nos o positivismo com um aluvião de palavras bonitas e propostas atraentes e, no entanto tudo isto não passa de pura falácia.

E para demonstra-lo basta-nos tomar o caminho do velho Sócrates (com seu 'Só sei que nada sei') e considerar que o tempo que gastarmos em qualquer estabelecimento de Ensino jamais será suficiente para informar-nos a respeito de tudo quanto se pode e deve aprender sobre o mundo. Mesmo que permanecessemos matriculados por um século numa escola de período integral não conseguiríamos obter a soma de informações necessárias a vida e ainda ficaria faltando muita, mas muita coisa.

O leitor certamente esta já a xingar-me por estar discursando sobre o obvio.

No entanto faço questão de assentar a existência de mais informações face ao tempo de que dispomos para adquiri-las para determinar que, diante disto, uma das tarefas do ensino formal ou informal, diz respeito a selecionar as informações ou fatos que serão ensinados aos educandos. Uma vez que não se pode nem cogita ensinar tudo faz-se mister escolher e é justamente aqui que a suposta neutralidade do ensino vai pelo ralo abaixo.

Consideremos no entanto, antes de tudo, as instâncias de escolha ou seleção de conteúdos: O currículo elaborado a nível nacional, o PPP elaborado em nossas UEs e o Plano de Ensino confeccionado por cada docente no início do ano letivo. Imaginemos assim um conteúdo que passa por no mínimo três peneiras sucessivas e uma mais fina do que a outra. E no fim temos apenas alguns resíduos, recortes ou fragmentos da realidade...

Agora cuidará você leitor inteligente que cada uma destas múltiplas seleções realizadas por homens e mulheres de carne e osso e vinculados a esta ou aquela instituição carece de intencionalidade ou de conotações ideológicas???

Seria o caso de tais pessoas ou organizações alienarem-se de seus próprios princípios e valores???

O que desejo salientar é que o aluno terá de aprender o que foi selecionado por outros com base em suas próprias crenças, opiniões, gostos, princípios e valores, consciente ou inconscientemente afirmados. É como já dissemos conteúdo parcial, fragmentado, recortado e este recorte não pode deixar de corresponder a determinada intencionalidade.

Não há como fugir a este dilema: Para instruir faz-se mistes escolher e para escolher partirá de seus princípios e valores, de um ideal de educação e de homem implantado em si. Diante de uma multidão de fatos o 'educador' haverá de selecionar alguns apenas e estes serão aqueles que melhor corresponderem a lição que pretenda inculcar segundo o critério da relevância. Os demais conteúdos ou lições permanecerão na penumbra ou receberão menos atenção pelo simples fato do professor encara-las como menos importantes. Ora este juízo sobre a importância dos fatos é sempre subjetivo e ideológico.

Quando você julga os conteúdos e decide o que haverá de ensinar a alguém e consequentemente o que este alguém irá aprender e saber apela ao critério da relevância e jamais poderá demonstrar que aquilo que é relevante para si é objetivamente relevante para todos.

É objetivamente relevante para o Mercado, mas não para a literatura, a estética, a religião, etc

Supor que nossos interesses correspondem ao interesse geral parece ser um erro fatal.

Eis porque o ato de decidir sobre o que haverá de ser aprendido pelos outros, enquanto ato eminentemente subjetivo e até arbitrário contamina a tão decantada neutralidade positivista. Mesmo quando tais conteúdos são amplamente discutidos por uma sociedade numa perspectiva democrática (o que ainda é raro) não podemos dizer que contemplam todas as necessidades e interesses ou que possuem um valor mais extenso que o daquela sociedade. Tanto pior quando realizada por um poder político arbitrário que aspira produzir determinado tipo de homem segundo suas necessidades e dispondo-se a oprimir a pessoa humana.

É evidente que todas estas iniciativas tenderão a afetar objetividade e neutralidade. No entanto elas supõem direção, ideal, projeto, tipo, etc Intencionalidade, princípios, valores e subjetividade.

Passemos agora da doutrina ao exemplo.

Para tanto tome-se um exemplar qualquer desses compêndios e publicações escolares inspiradas pelo ideário positivista e vejamos com que nos deparamos nelas.

Nada além de sucessivos sermões ou catequeses a respeito do papel exponencial e remidor da ciência, da fé no progresso da civilização moderna e enfim no amor abstrato a humanidade, a pátria e ao trabalho ou Mercado. A isto é que chamam neutralidade ou isenção... Uma reprodução ou decalque perfeito do ideal de sociedade positivista vigente na última quadra do século XIX.

Reforça-se aqui, mais uma vez, o que já havíamos dito: A obstinação em narrar ou descrever apenas e a marcada recusa em criticar, opor ou questionar não passa ela mesma de ideologia destinada a contemplar as exigências de um poder que aspira perpetuar-se ou a cimentar as pretensões conservadoras de certos setores da Sociedade. Por favor contemple apenas mas não toque em nada! Tais as exortações do positivismo.

Nada mais refinadamente ideológico do que esta afetação de neutralidade por um sistema que folga permanecer impassível face a miséria, a dor e aos sofrimentos humanos. Como no caso do antigo estoicismo acha-mo-nos diante duma imparcialidade criminosa ou duma omissão deplorável.

O positivismo, sejamos francos, com sua ciência abstrata e fria jamais se posta em favor do homem concreto e esta quase sempre pelo Mercado.

Passemos agora ao segundo exemplo não menos eloquente.

Temos um certo professor de História positivista, cientificista, liberal... e esta conta com cerca de sessenta horas aulas para gastar com a Idade Média. Diante disto ele toma o currículo ou o PPP e começa a dividir aquele mínimo saldo de aulas entre tão vasto conteúdo.

E como nosso mesmo Mestre que morre de amores pelo liberalismo econômico vive de ódio a Igreja romana opta por gastar no mínimo doze aulas (senão mais) dissertando minuciosamente sobre os horrores da Inquisição espanhola. Feito isto escolherá alguns outros temas do gênero: Cruzadas, bruxaria, peste negra, etc todos destinados a confirmar a velha ideia segundo a qual a Idade Média não passou duma Idade de trevas! Agora sobre a Civilização Cristã Bizantina, a teologia Escolástica, os feriados e dias santos em que o povo costumava descansar nada dirá, silenciando por completo.

Posteriormente, por falta de informação, nenhum daqueles alunos estará apto para questionar o jargão liberal segundo o qual o fim de semana ou repouso dominical teria sido gentilmente concedido aos trabalhadores modernos pelos bondosos patrões no decorres do século XIX. Tampouco quando interpelados pelos comunistas serão capazes de estabelecer que o primeiro modelo efetivo de serviço social em escala verdadeiramente ampla foi implementado pelo Império Cristão bizantino.

Pois nosso Mestre selecionador de fatos não considerou importante a abordagem de tais temas.

Diante disto com que propriedade se afirma ser a seleção de conteúdos neutra ou imparcial???

Se eu julgo e determino o que você deve perceber, saber, ver ou aprender os critérios são certamente meus e não seus e portanto ditados por meus gostos, inclinações, disposições, princípios e valores, o que basta para lançar fora a tal neutralidade. Consciente ou inconscientemente todos temos um ideal bem definido de homem (h positivista, h liberal, h individualista, h fascista, h nazista, h anarquista, h teocrático, etc) e de sociedade.

Então é bom que assumamos sem termos nosso ideal humanista de homem e justicionista de sociedade em oposição a todos os outros e implante-mo-lo no terreno da ética ou da lei natural




EDUCAR SEM MEDO!


Tecidas as considerações acima resta-nos admitir sem maiores rodeios o caráter normativo da Ciência pedagógica posto para um ideal bem definido de homem, o homem Ético, o homem humanizado, humanitário e humano.
Assumamos intrepidamente o ônus de educar ou de conduzir o menino ou o jovem a virtude, de moldar-lhe o caráter e de corrigir-lhe a vontade encaminhando-a para o bem, para o dever, para a identificação e a alteridade.

Educar é dirigir para um determinado fim, é guiar, é orientar. Educação supõem sempre uma diretividade. É plano, é projeto, é meta intencionalmente elaborada.

Meta sublime que visa a passagem da potência para o ato, o desenvolvimento das capacidades, a aquisição de habilidades, o exercitamento das qualidades, a realização das aspirações, a percepção de um sentido para a vida e enfim a conquista da felicidade. Pois é impossível que o homem em posse da virtude ou do bem seja infeliz.

Trata-se dum projeto de homem total e de educação integral que considera o corpo físico enquanto objeto de uma educação física e cuidados especiais, o intelecto ou a mente a ser treinada por meio da lógica e enfim da vontade a ser direcionada para o bem na mais larga escala possível. Assim teremos as idealidades da Beleza, da Verdade e do Bem incorporadas pelo menino, o jovem, o adulto e desenvolvidas até o fim da existência.

Segundo este projeto conteúdo algum é posto de lado. Pois todas as partes são nobres e todas as áreas precisam ser preenchidas e cultivadas, e estimuladas sob pena de mutilarmos o ser. Procedimental, Teórico/conceitual e Atitudinal associam-se num conjunto equilibrado para formar um todo perfeito e constituir uma personalidade completa e fascinante. Fugimos assim ao vício do intelectualismo artificioso que toca apenas a memória e a verbalização. E ao ensino mecânico ou adestramento.

Lutemos por resgatar a dignidade tantas vezes negada (pelo maniqueismo e puritanismo) do corpo humano e por integra-la a educação sem no entanto cairmos no extremo oposto abandonando a formação da vontade e relegando-a a ação individual extra escolar. Pelo contrário façamos da escola um santuário vivo da Ética e das aula de Filosofia um nicho para a discussão de tais problemas.

Por fim implica este projeto de homem um projeto de Sociedade, pois estão interligados. Do ponto de vista da ética humanista não podemos compreender a Sociedade senão como um organismo colaborativo regido pelos imperativos da alteridade, da solidariedade, da fraternidade, da igualdade, da liberdade, da justiça, da tolerância e da paz; o que nos remete no mínimo a um estado de bem esta social ou de social democracia. Eu não temeria falar em socialismo, trabalhismo, solidarismo, personalismo, desde que as pessoas mal intencionadas não compreendessem comunismo ou 'socialismo' totalitário.

O ideal no entanto é de justiça, bem comum, integração social, apoio mútuo; como já preconizavam Sócrates, Platão e Aristóteles. Não de rivalidade, concorrência, mercado; voltado para necessidades humanas e não financeiras. Claro que a Sociedade que preconizamos tende a restaurar o primado do SER sobre o TER e a fugir desta nêmesis materialista economicista.

Nem podería haver ideal verdadeiramente humanista de homem artificialmente justaposto a uma estrutura social capitalista. Isto sequer se discute. Portanto nosso ideal de homem e sociedade é a um tempo antigo e a outro novo e de nosso baú tiramos coisas novas e velhos para tudo corrigir e consertar.

Por fim gostaria de me dirigir aos professores e mestres que me acompanharam até aqui e dizer que aprendam cada vez mais a educar com a vida, por meio do exemplo, pois são os exemplos que arrebatam a juventude. Palavras comovem mas somente os exemplos arrebatam e promovem a imitação e a assimilação efetivas. Tornem-se assim modelos para seus alunos.

Só seremos educadores eficientes na medida em que soubermos que nosso trato pessoal é tão importante quanto os conteúdos curriculares e pedagógicos. Nossa ação só será fecunda e permanente na medida em que criarmos laços de afeto e carinho, em que amarmos e respeitarmos os nossos alunos. A partir daí o aluno transferirá a carga afetiva para os conteúdos e será levado a esforçar-se mais para assimila-lo. Foi Wallon quem fez esta constatação.

Não, não nos acomodemos nem deixemos de os conteúdos específicos de nossas disciplinas, não. Os alunos como ressalta Saviani precisam desses conteúdos para seguir em frente e conquistar um espaço. Conteúdos são instrumentos de emancipação, pois no mundo atual saber é poder e estar bem informado faz toda diferença. No entanto antes de tudo e acima de tudo ensinemos nossos meninos e meninas a bem viver, porque bem viver é o segredo da felicidade e mais vale um pedreiro infeliz do que um empresário amargurado (Domênico de Massi).

Com este ensaio dou razão a Paulo Freire e registro que muito antes dele o Pe Pedro Anísio (opus cit) em suas polêmicas contra liberais e positivistas já assentava o caráter intencional, diretivo e não neutro da educação. Desmontando com sucesso o espantalho da neutralidade que agora as nulidades do tempo querem ressuscitar.

Boa tarde queridos e queridas porque a proposta utópica de uma escola sem ideologia já é ela mesmo ideológica!!!



Profo Domingos Pardal Braz, de São Vicente SP

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