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quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O S T F e a questão do Ensino religioso nas escolas públicas.

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Manifesto é que não cabe a um Estado Laico, ministrar aulas de religião em suas instituições públicas de Ensino e nossos ancestrais estavam perfeitamente cônscios disto. O estado democrático é laico ou neutro por definição face tanto ao problema metafísico quanto ao problema religioso.

Quanto ao problema metafísico, como Aristotélico/Socrático tenho sérias dúvidas e isto pelo simples fato de aceitar com absoluta naturalidade a capacidade do aparato racional.

Sei perfeitamente que esta aceitação acarretaria objeções quanto a isenção do Estado democrático em matéria de crenças religiosas.

O fato é que nestes tempos o padrão da racionalidade já não é admitido pela totalidade dos cidadãos e já não se faz presente em todas as esferas do poder político ou da administração pública. Há cidadãos relativistas, subjetivistas, positivistas, cientificistas, etc

E nem podemos criar um Congresso filosófico ou concílio ecumênico com o objetivo de resolver a situação. A menos que se chegue a uma acordo por via da persuasão, prevalecerá a divisão. O Estado político no entanto não pode esperar por este hipotético acordo em matéria de conhecimento ou de epistemologia, logo, tem de considerar a divisão como fato consumando e na prática estabelecer uma governação que agrade a todos. Ora o único meio de agradar a todos, face a uma situação de dissidência insolúvel é a adoção do princípio da neutralidade.

Adota-se portanto, segundo a fórmula de Locke, uma solução de neutralidade ou isenção tanto no plano da metafísica quanto no plano da fé religiosa. No sentido de custo benefício, como veremos é a solução, de longe, mais vantajosa para todos.

Quanto a metafísica é este Estado agnóstico, e portanto, de modo algum ateu, como costumam alegar os religiosos desonestos e ressentidos.

Agnóstico porque reconhece a si mesmo como incapaz de julgar a questão da existência ou não de Deus. Recusando-se tanto a afirma-la - na perspectiva do teísmo - quanto a nega-la.

Tal Estado não resolve a questão pela negativa. Abdica no sentido de resolve-la, alegando que não faz parte de sua esfera, a esfera das coisas comuns.

Tampouco temos aqui um estado anti religioso no sentido em que negue a existência do fenômeno religioso o lhe dê combate.

É irreligioso no sentido de que não se julga apto para interferir a favor de determinada religião - e em detrimento de todas as outras - ou para julgar a questão religiosa, atribuindo-a ao juízo privado de cada cidadão.

Sendo assim não é religioso nem anti religioso, mas neutro ou isento.

Já o Estado confessional é aquele que revindica para si o direito de julgar a controvérsia religiosa, posicionando-se unilateralmente em favor de determinada fé, e não poucas vezes proscrevendo ou proibindo o exercício das demais.

A questão aqui, em termos práticos é decidir a respeito de qual deles será mais estável na mesma medida em que resguarda os direitos essenciais da pessoa humana.

Aparentemente o estado confessional uniforme apresenta uma maior estabilidade em todos os sentidos. Pois na medida em que se elimina a crítica religiosa, tende-se a eliminar toda crítica e a dominar o indivíduo por completo. Onde prolifera a fé religiosa, controla-la ainda é a melhor maneira de controlar o próprio homem.

Mesmo porque poucos sentimentos são tão arraigados no homem quanto o sentimento religioso.

De modo que este controle, da fé religiosa, só se pode dar e efetivar de maneira dramática i é sob a forma do terror. Aqui a inquisição, ali a Murtad ou a Djzia.

Um Estado ou uma Sociedade hábil no sentido de estabelecer a unidade religiosa será certamente uma sociedade repressora, desumana e sangrenta.

Aqui o preço a ser pago pela estabilidade social é demasiado caro.

O sistema laicista nem sempre funciona perfeitamente pelo simples fato de em determinadas situações, certas religiões de caráter teocrático, fundamentalista ou fanático, aspirarem pelo controle do Estado ou chegar as vias de fato com elementos de outras fés.

Aqui o risco do conflito e da violência é sempre real, pois a convivência pacífica entre pessoas que pensam ou creem diferentemente ainda não é sinceramente aceita por todos.

Cabe a este tipo de estado gerenciar tais conflitos por meio da lei ou reprimi-los da maneira mais dura. Criando um espírito ou produzindo - aos poucos - uma cultura de liberdade e respeito mútuo.

Já foi dito e com razão que a lei é incapaz de alterar drasticamente esta ou aquela dinâmica social ou de opor-se a cultura tradicional e arraigada.

Sem sombra de dúvida o Estado laico ou a lei, não produz de imediato uma sociedade laicista ou uma cultura em torno do laicismo consciente.

É todo um aparato legal que se sobrepõem a uma cultura muitas vezes infensa.

O que se espera é que o ato de acionar-se repetidamente a lei e sua aplicação rigorosa acabe por reprimir a cultura confessional ou sectária e a produzir, a longo prazo, uma padrão diferente de cultura.

A própria tendência a longo prazo é esta, chegando as próprias instituições religiosa predominantes a conformar-se com a lei e em seguida a abraçar o novo padrão de cultura.

Estabilizando-se a situação e sucedendo-se a paz. A menos que outra ideologia sectarista se apresente e aspire pela dominação.

As vezes a afirmação da cultura laicista supõem um trabalho de esclarecimento e uma luta intelectual de longo prazo ou uma guerra continua.

Pelo que se vê não temos um sistema perfeito, assim como algo dado, pronto e acabado.

Por outro lado, no contexto de um Estado fraco, a promoção de uma determinada fé em detrimento das demais, tende a ser até mais danoso do que sua promoção por um estado forte a autoritário. Na medida em que as principais religiões podem assumir o controle e a situação desandar numa guerra religiosa. Desde muito tempo as guerras religiosas tem sido incomuns no contexto Ocidental. A última no entanto, a Guerra dos Trinta anos, é considerada por alguns como equivalendo a primeira grande guerra mundial e tudo quando podemos dizer é que foi verdadeiramente pavorosa.

Novas guerras religiosas, no estilo da guerra dos trinta anos, poderiam superar em carnificina, qualquer tipo de repressão institucionalizada num determinado Estado confessional.

Por isso a principal obrigação de uma democracia laica ou laicista é jamais interferir diretamente na dinâmica religiosa, jamais arbitrar, jamais julgar, jamais favorecer a qualquer um dos credos ou religiões existentes e não apenas manter mas promover por todos os meios possíveis uma situação institucional de absoluta igualdade. É dever do Estado laico abster-se no sentido de envolver-se em qualquer controvérsia religiosa e de manter sua estrutura impermeável a qualquer tipo de controle credal. Uma vez que assumiu uma orientação laicista e promoveu relativa igualdade entre os partidos religiosos deverá permanecer neutro ou isento, custe o que custar.

O que não se pode é brincar com o laicismo ou como se diz afetar laicismo. É como brincar com fogo. Elaborar um discurso em torno da laicidade para em seguida favorecer determinada fé, pode ser o caminho para sérios distúrbios sociais, mesmo entre um povo pacífico e pacato.

Eis porque temos de questionar, e muito seriamente, a viabilidade de que o Ensino religioso venha a ser ministrado pelos estabelecimentos públicos de ensino, especialmente numa perspectiva credal ou dirigida.

Concedamos que a simples ideia de que o Estado laico autorize a inserção de um conteúdo religioso genérico no currículo já é, em si mesma, problemática.

Que dizer então - Como tem sido dito no próprio STF!!! - a respeito de um Ensino religioso dirigido ou credal? Em que pesem todos os sofismas editados a guiza de democracia, cultura, etc

Antes de tudo devemos considerar que a arbitragem em termos de matéria religiosa não cabe nem ao estado, nem ao fórum, nem a escola, ou a qualquer setor público, político ou administrativo mas a consciência de cada individuo. É assunto que pertence a esfera privada da existência.

E não lhe cabe julga-lo ou arbitra-lo nem mesmo numa perspectiva democrática.

Não é questão de democracia mas de princípios, de valores e de educação, e como tal adstrito apenas ao tribunal da consciência. Transferi-lo a esfera pública das coisas comuns é profanar a consciência e cimentar a opressão.

Autorizar o monopólio de uma determinada fé ou religiosidade num contesto igualitário é sabotar esta igualdade e portanto outorgar a uma instância pública qualquer, seja ela o bairro, a escola, a 'província', a nação, o direito de julgar uma questão que como vimos pertence exclusivamente ao cidadão e isto equivale a uma usurpação, na medida em que todos os cidadãos são contribuintes e pagam impostos, merecendo a proteção do Estado ma mesma medida.

Religião alguma pode ser beneficia pelo Estado em detrimento das demais sem que lhe seja conferido um status, inadmissível de superioridade, incompatível com o caráter neutro ou isento do estado laico.

Dar as outras religiões por inferiores e alija-las quando ao uso deste espaço que é público implica ultrajar seus profitentes para os quais são tão sagradas como qualquer outra. Isto fere os princípios sagrados da justiça.

Permitir que uma religião determinada tome posse do espaço que é público com o sentido de 'canonizar' o seu discurso, implica autoriza-la a fazer proselitismo tirando vantagem da coisa pública, a qual é mantida com os recursos tomados a cidadãos pertencentes as mais diversas confissões religiosas os quais certamente se sentirão menosprezados e ultrajados. É estabelecer regime de exceção ou privilégio incompatível com o caráter isonômico das instituições democráticas.

Não é de modo algum promover a igualdade ou a tolerância como supõem algum invertendo a lógica das coisas até o ridículo mas sancionar a desigualdade e alimentar a intolerância, vício cujos perniciosos efeitos detectamos já em nosso redor, corroendo as bases do estado democrático de direito e da civilização. Não se estimula a compreensão mútua, o respeito e o mútuo entendimento concedendo privilégios imorais, mas promovendo a igualdade.

A tolerância é valorizada ou estimulada quando os valores que pertencem a esfera privada da consciência lhe são atribuídos e quanto o Estado ou o grupo social abstém-se de intrometer-se neles, introduzindo 'favores' que acarretam a desigualdade. Qualquer tratamento desigual deste favor coloca em perigo o equilíbrio social tendendo a ser tão perigoso quanto a uma bomba.

A simples ideia de que todas as ideias devam ser examinadas e discutidas na Escola sob a égide das instituições democráticas implica uma abordagem ampla, profunda, genérica e igual e não uma abordagem fechada, dirigida, credal ou confessional. O ideal seria o aluno poder comparar suas crenças com as demais de modo a tomar consciência da diversidade religiosa e assumir uma perspectiva de tolerância civil no plano da convivência. Nem se trata aqui de imaginar que todas as doutrinas religiosas ou fés sejam boas na mesma medida, como pretendem os relativistas, mas apenas e tão somente de conviver em paz a harmônia com os profitentes das mais diversas fés, partindo do suposto que sejam livres e que lhes assista o direito de optar neste sentido.

Por outro lado a apresentação unilateral de uma única fé na escola pública bem poderia suscitar no aluno a ideia de que sua fé é superior, no plano civil inclusive... com todas as funestas consequências embutidas neste padrão de pensamento.

Conceder o privilégio ou monopólio espiritual a esta ou aquela doutrina nas escolas públicas não tendem a converte-las como deveria ser feito, numa instituição harmoniosa e pacífica, regida pelo princípio do respeito mútuo, mas num campo de guerra inundado pelo rancor. Em pouco tempo os próprios alunos, a exemplo do 'doutrinador' - e isto já está acontecendo em algumas escolas públicas neste momento!!! - vão assumir eles mesmos (mormente durante os intervalos) o encargo proselitista, distribuindo livros, revistas e panfletos de teor religioso, pregando em alta voz, cantando ou mesmo exorcizando e hostilizando os dissidentes e opositores. Que os alunos afetem a profetas, pastores ou doutrinadores no cenário de uma escola pública é absolutamente monstruoso. Que convertam o recreio ou o intervalo em palco de batalhas religiosas que degeneram em agressões e violência é o cúmulo da aberração. E no entanto tal já pode ser constatado em nossas escolas públicas 'de visu' e é epifenômeno ou consequência dessas aulas religiosas confessionalistas ou melhor proselitistas autorizadas pela lei.

Que um professor público penetre o recinto da escola portando uma Bíblia, um Corão ou uma Tripitaca, etc e visando impor seus pontos de vista a qualquer minoria que deles não comungue ou mesmo a qualquer cidadão livre, é da-lo por inferior no plano civil, injustiça-lo e oprimi-lo. Pois ele tem o direito de não querer ouvir semelhante discurso doutrinador, sem que deva ser obrigado a abandonar a sala de aula ou dela sair. Afinal o espaço escolar é tão seu quanto de todos os demais.

Totalmente outra seria a situação, caso girasse em torno de princípios de natureza científica, cuja constatação parte da percepção ou da experiência, que são elementos comuns a todos os homens. A fé no entanto por não ser imediatamente perceptível como os fatos de natureza científica e suscitar controvérsias pertence a outra categoria de elementos, os quais pertencem como já dissemos a esfera privada da consciência. Quem age independentemente quando a fé, julga-se livre. Já aquele que pretenda questionar seriamente a fidelidade dos próprios sentidos ou da razão bem faria em procurar um analista.

Nem poderia a laicidade, como querem alguns epistemólogos, deixar de ser laicista; como não pode o socialismo deixar de ser socialista, o positivismo deixar de ser positivista, o federalismo deixar de ser federalista, etc

Laicidade supõem laicismo, que é a separação entre a esfera público/policita e a esfera privada da crença religiosa, passando todas as crenças a serem encaradas como iguais e assim tratadas em vista do direito, de modo a garantir a plena satisfação de todos os profitentes religiosos enquanto cidadãos e membros da república, evitando situações de rivalidade, abuso e conflito. Como já fizemos observar implica esta posição por parte do Estado em negar-se a penetrar o cipoal da esfera religiosa disposto a julgar o conteúdo dos livros ou a oficializar alguma interpretação (e são milhões). Quem não percebe que esta posição é de longe a mais prudente quando há sérios mecanismos de controle destinados a punir os fanáticos e sectários mais exaltados caso pretendam 'assaltar' o estado e estabelecer uma ordem teocrática?

Claro que este tipo de estado deve levar bastante a sério seu próprio caráter estando sempre pronto para refrear todos os abusos e punir com máximo rigor quaisquer crimes que envolvam a prática da religião ou que sejam por ela inspirados. Brincar de laicismo ou fazer jogo duplo seria a pior das opções e por isso precisamos sim assumir radicalmente nossa laicidade na perspectiva de um laicismo consciente e pugnar por uma igualdade absoluta das diversas fés face a estrutura política seja militar, educativa, hospitalar, etc

Não é possível que em pleno ano de 2017, i é quase cento e trinta anos após a proclamação da república e a desvinculação do estado quanto a igreja antiga - a qual por sinal decorreu em termos pacíficos - seja ele cooptado por formas religiosas ainda mais controladoras e virulentas em nome de interesses econômicos. Não é possível que toda uma sociedade venha a assistir pacificamente o desmantelamento de um Estado laico, o que implica a negação da dignidade da maior parte dos cidadãos, que são dissidentes religiosos face a certas minorias ambiciosas. Como aceitar ser cidadão de segunda classe em termos de fé e crença, no setor da consciência, quando já se o é no setor da da economia por obra da miséria???

Permitir que as escolas se convertam em sucursais de seitas religiosas e as salas de aula em púlpitos só virá a aumentar ainda mais o estado de confusão em que se encontra nossa sociedade potenciando outros tantos conflitos que deveríamos apaziguar e conduzindo este pais a anomia, ao caos, a dissolução. A escola, enquanto instituição educativa e formativa, deve ser mantida a qualquer preço, incontaminada face as pretensões do sectarismo religioso ou as injunções do fanatismo sob pena de sabotarmos ainda mais o fundamento pétreo da democracia que é a laicidade. A consciência formada a aqui deverá ser o quanto possível aberta, crítica, reflexiva e tolerante; jamais fechada numa mórbida complacência de si mesma, arrogante e agressiva. Só podemos estimular a boa convivência e o respeito fomentando a igualdade e fomentar a igualdade a partir de uma abordagem igualitária. Sancionar uma abordagem discriminatória e preconceituosa na escola pública, uma alimente a ideia de superioridade religiosa é e será sempre uma atitude leviada e irresponsável por parte do poder público além de ser essencialmente iníqua e sempre questionável é claro.

Dirigimos todas estas reflexões ao STF Brasileiro, fundamentados em nossa experiência professoral como educador público e como pesquisador social. Solicitando que os ilmos srs ministros pesem todas as evidências e abracem a solução mais prudente e ponderada face a tão grave problema, pelo simples fato de tocar a própria liberdade religiosa.



DIA 20 DE SETEMBRO, daqui a uma semana, o STF - FINALMENTE - julgará a questão sobre o ensino confessional de determinada religião na Escola Pública. Cumpre a todo cidadão acompanhar, pressionar e ficar atento pois trata-se de uma questão essencial no plano da cidadania e da cultura.

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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

República Bizantina? Um diálogo em torno da obra de Anthony Kaldellis

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Conhecida entre nós ocidentais - Em especial lusófonos e mais especialmente ainda entre nós brasileiros, sempre muito pouco preocupados com nossa herança cultural antiga, oriunda do outro lado do Mar Oceano - a pobreza quase miserável em torno de estudos bizantinos.

Devido a toda uma convergência de preconceitos transmitidos pelo materialismo hodierno, pelo iluminismo, pelo protestantismo, pelo papado, pelas pretensões acalentadas pelo sacro império romano germânico e por sei lá mas o que, habitua-mo-nos a repetir clamorosas asneiras sobre a multifacetada cultura bizantina. E de tal modo habitua-mo-nos a repeti-las que até cremos nelas.

E no entanto trata-se de uma mal querença que remonta aos tempos do 'falso imperador' ou do imperador de mentirinha Carlos Magno. Desde os tempos dos carolíngios aprendemos falar mal dos 'romenos', dos rumanios, dos romanos do Oriente, dos greculos ou greguinhos; enfim dos bizantinos. Em seguida adicionaram-se outros tantos conteúdos culturais acima discriminados. Mormente após o cisma de 1054 - quando o Ocidente passou a fabricar seus próprios cristianismos, assim o papismo, assim os protestantismos, rompendo com a Unidade Católica Ortodoxa - os gregos, rebeldes e cismáticos passaram a ser odiados ainda mais.

Sintomático que os primeiros protestantes a terem tomado contato com a cultura bizantina, já em seus estertores finais, não hesitaram a descrever os gregos insolentes como mil vezes piores dos que os papistas...

Já para os empiristas e cientificistas, e positivistas os bizantinos não passavam de uns degenerados e poltrões cujas vidas consistiam unicamente em discutir sobre questões gramaticais, poéticas, filosóficas e teológicas, dispendendo todo seu tempo e energias. Assim era a sabedoria bizantinesca sinônimo de sabedoria ociosa e inútil.

No entanto este tão pouco conhecido e mal falado contesto foi responsável por ter viabilizado em larga escala o primeiro serviço de promoção humana e social de que temos notícia. No entanto não é a respeito dele que pretendemos discorrer neste artigo.

Mas sobre a tese demolidora, iconoclástica e revolucionária de Anthony Kaldellis. (Apud Kaldellis 'The bizantine republic - People and power in new Rome'.

Optamos por apresentar esta síntese, a guiza de complemento a respeito de tudo quanto escrevemos sobre as fontes da democracia medieval, de modo a obter uma visão global ou totalizante numa perspectiva Cristã.

Afinal de contas porque raios o espírito e algumas formas democráticas teriam se conservado apenas no Ocidente barbarizado e não no Oriente Bizantino?

Lançando para bem longe de nossas vistas todas aquelas velhas lições em torno da autocracia bizantina e de seus imperadores despóticos, vulgarizadas não apenas por nossos livros didáticos mas até mesmo pelos 'bizantinistas' ocidentais, o homem nos oferece outra perspectiva tanto mais lúcida quanto realista.

Então, vamos a Kaldellis?

Segundo Kaldellis ao invés de ser autocrática, despótica, tirânica, etc a 'República' - e o autor emprega o termo república na antiga acepção em que não se confunde ou identifica com democracia e que reposta a administração comum (pública) e quiçá ao bem comum de Aristóteles - Bizantina realizará sabiamente o programa político por ele atribuído a Dion Cássio, mas que na verdade remonta a Políbio. Referi-mo-nos a ideia de república mista em cuja forma entrariam elementos da monarquia, da aristocracia e da democracia. Isto porque em suas formas 'puras' ou absolutas as três formas em questão estariam postas para uma degeneração inevitável. Assim da monarquia pura adviria a tirania, a qual sucederia a aristocracia pura. Esta degeneraria oligarquia, a qual sucederia a democracia pura e desta a anarquia (diríamos hoje anomia) a qual certamente conduziria os espíritos a monarquia, fechando-se o ciclo e repetindo-se infinitamente. Diante disto, qual a solução mais viável?

Uma vez que as formas puras são essencialmente passíveis de corrupção é necessário que o legislador misture ou associe equilibradamente as três formas.

Impõem-se aqui uma conclusão até certo ponto insólita: A solução para o problema político não se encontra na conturbada Grécia mas no Lácio, junto as sete colinas e é Roma quem no-la oferece. Não Atenas mas Roma! Pois enquanto os pensadores barbudos da Hélade haviam encastelado em posições sectárias e radicais, os habilidosos e sensatos romanos haviam concebido um modelo misto e funcional que não era nem monárquico, nem aristocrático e nem democrático mas as três 'coisas' simultaneamente.

Assim o cliente dos Scipiões, benignamente acolhido pelo 'povo romano' não hesita apresentar a República romana como modelo de síntese e equilíbrio políticos.

De fato todos os adversários da democracia direta, pura, absoluta ou popular do federalista Norte Americano Madison aos monarquistas constitucionais e parlamentaristas são em maior ou menor medida tributários de Políbio seja por via de Dion Cássio ou não.

É justamente em termos de monarquia constitucional que Kaldellis parece enxergar o império Bizantino. Analisando as fórmulas rituais de entronização e de deposição (empregadas durante as rebeliões) em torno das clássicas expressões "Axios" e "Anaxios" (assimiladas durante o ritual de consagração episcopal ortodoxo inclusive) o mínimo que se pode concluir é que os cidadãos bizantinos discordavam quanto as pretensões absolutistas de seus governantes atribuindo a si mesmos a faculdade da designação ou transmissão de poder e inclusive uma faculdade de suspensão ou de dedignação.

Portanto, ideologicamente falando, nem todos os elementos daquela sociedade assentiam mecanicamente as pretensões absolutistas e autocráticas expressas pela coroa. Havendo entre os cidadãos bizantinos um 'sentimento' divergente.

Dando seguimento a isto passa Kaldellis as estatísticas demonstrando que durante seus quase mil anos de História, O Império Bizantino conheceu uma rebelião a cada cinco anos. O que nos levaria a cerca de 200 rebeliões!!! Eram os imperadores menos estáveis no gozo do poder do que qualquer parlamentar reeleito no contesto das democracias contemporâneas. Pelo que as trocas ou alternâncias de poder eram sucessivas e continuas. Assim se haviam imperadores que como Justiniano retiveram o poder por alguma décadas outros houveram que detiveram o poder por alguns dias ou mesmo algumas horas apenas! De modo geral temos dez ou mesmo nove anos de governo para cada um deles!

O número impressionante de rebeliões e a instabilidade do titular imperial de modo algum se explica caso admitamos que toda aquela sociedade encarasse o Imperador como um representante de deus ou como alguém comissionado por ele. Admitida como premissa que tal concepção estivesse generalizada naquela Sociedade, o vultoso número de sedições levadas a cabo pelos súditos com relativo sucesso tornar-se-iam enigmáticas e a História ganharia mais um 'mistério' ocioso.

Outro aspecto que temos de considerar é que apenas muito raramente foram tais rebeliões reprimidas com máximo rigor, a exemplo da sedição de Nika, quando Justiniano mandou Belisário massacrar os rebelados presos no estádio. Via de regra os todo poderosos imperadores acovardavam-se e negociavam com os sediciosos. Outra atitude atípica numa realidade autocrática de que temos exemplo na 'Noite de S Bartolomeu' e no 'Outubro vermelho'... Reis conscientes de sua autoridade divina e poderes não negociam, supliciam.

Nem podemos ignorar que mesmo após o advento da reforma protestante, as decapitações de Maria Stuart, Carlos I e ainda de Luis XVI e Maria Antonieta foram impactantes, chocando grande parte da população europeia. A propósito de Carlos I consta que quando sua cabeça foi separada do corpo a multidão gemeu como um só homem exarando um grito aterrador. Não poucos embeberam lenços em seu 'sangue azul' como já haviam feito quando M Stuart fora executada, e guardaram aqueles lenços como 'sinais dos tempos' ou como amuletos.

No imaginário europeu ocidental dos séculos XVI, XVII e XVIII a simples ideia de depor um rei ungido soava como essencialmente pecaminosa, pelo simples fato de teóricos como Tiago I, Hobbes, Bodin e Bossuet dentre outros terem forjado a doutrina do absolutismo, corrente já a gerações. Porque aquela sociedade estava imbuída de sentido absolutista tal gênero de execuções era por assim dizer insólito ou aterrador.

Já no Império Bizantino os reis não era apenas depostos aos gritos de 'anaxios' ou 'desenterrem seus ossos' mas mutilados pela plebe enfurecida, tendo suas orelhas e narizes cortados e olhos vazados, quando não eram eternamente sepultados em mosteiros como Prinkipo, e davam-se por felizes. Diante disto como dar por estabelecido que tais pessoas encaravam os Imperadores como pessoas escolhidas por deus?

Todos estes problemas assaz conhecidos tem sido sucessivamente 'ignorados' pelos bizantinistas tradicionais completamente cegados pelo espectro do cesaro papismo e da autocracia.

Os críticos de Kaldellis tem se dado por satisfeitos com o replicar que inexiste qualquer testemunho escrito ou evidência documental em torno de uma Constituição Bizantina de caráter misto que admitisse a par da forma monárquica elementos democráticos ou mesmo aristocráticos. Como se pudesse a realidade ser dobrada por documentos... Porque se não haviam registros oficiais ou pactos haviam certamente costumes e costumes gregos, e cultura helênica ancestral.

Não penso que em qualquer momento o Imperador tenha sequer cogitado em reconhecer tais costumes ou em oficializar tal tipo de cultura, mas que ela estava ali presente fomentando sucessivas rebeliões e produzindo instabilidade estava. Comparado com os padrões de governo anteriores, seja o assírio ou o romano, foi o governo bizantino infinitamente mais maleável e mais humano. No entanto, nem por isso gozou de mais estabilidade do que os cruéis impérios que o precederam e conheceu por assim dizer a turbulência. Agora a que se deveu isto?

Chegados até onde chegamos acreditamos estar capacitados para responder a esta pergunta asseverando que apesar da forma monárquica, de modo algum imposta pelo Catolicismo, mas legada pelo Império romano, o setor Oriental ou grego do Império jamais rompeu por completo com as tradições democráticas legadas pela Hélade. As formas haviam sido atenuadas ou negadas desde Alexandre e ao cabo do Império romano ocidental, o espírito democrático no entanto permaneceu vivo naquelas consciências e naquela cultura levando parte daquela Sociedade a questionar um modelo cada vez mais estreito de monarquia e a conflitar com ele.

Então o que temos em bizâncio é um eterno estado de tensão em torno de dois polos equidistantes: Uma estrutura monárquica de tendências absolutistas legada pelo Império romano, sobreposta a uma Sociedade cuja consciência ao menos em parte sentia nostalgia de suas liberdades políticas ou do liberalismo ancestral. Desta acomodação ou justaposição muito mal acabada resultaram as centenas de sedições e rebeliões bem como o esgotamento e o fim daquela Sociedade. Eram elementos díspares, que ao cabo de alguns séculos, haviam de desagregar-se.

Assim a conclusão a que chegamos é que o espírito democrático e algumas formas democráticas jamais desapareceram por completo do contesto cultural europeu, resistindo inclusive as invasões árabe e teutônica e a sucessivas conflagrações até reafirmarem-se na Europa Ocidental do século XIII e serem engolidos pela maré absolutista do século XVI. O que nos aponta para uma solução de continuidade, embora nem sempre consciente. Esses ideais e formas podem ter saído da consciência mais jamais foram eliminados totalmente no plano da cultura. Assim alimentados pelo Cristianismo e suas instituições tornaram a florescer por algum tempo e depois a declinar... Assim a democracia não foi totalmente extraída por eruditos e teólogos modernos aos livros antigos. Antes corresponde a um espírito vital jamais removido de nossas mentes desde os tempos de Clistenes.