sábado, 24 de dezembro de 2016

O 'Novo mundo' que Freud devassou...





Muito, muito antes de Freud já se falava na existência de um inconsciente ou de um setor da nossa mente inacessível a esfera da consciência.

Rousseau e Nietzsche já haviam postulado sua existência e discorrido a respeito dela.

Tal e qual aqueles astrônomos que já falavam sobre a lua antes da Apolo XI e como aqueles que hoje falam sobre Marte.

Mas era tudo muito obscuro e misterioso e aquele terreno jamais fora explorado.

Há quem hoje duvide da ida do homem há lua e há certamente quem duvide da vontade inconsciente.

Grosso modo a respeito do inconsciente podemos admitir que homem algum foi lá, pois para tanto teria de entrar na mente do outro, o que sabemos ser impossível.

Não, nós não vemos o inconsciente como não vemos o ar. Tampouco a maioria de nós já esteve na China ou na Índia. No entanto quando testemunhamos os efeitos produzidos pelo vento deduzimos a existência do ar e quanto vemos chineses ou indianos constatamos a existência daqueles lugares.

As memórias do inconsciente ou memórias inconscientes é que vieram até nós quer por meio de delírios febris, quer por meio da assim chamada hipnose ou hétero sugestão.

Foi por esta brecha ou porta aberta no final do século XVIII que tais resíduos chegaram até nós e puderam ser estudados.

O que nos reporta ao Abade de Faria, a F A Mesmer, ao Marquês de Puységur, a Du Potet e finalmente ao grande Liébault.

Um dos casos mais famosos dizia respeito a um ancião de origem polonesa que morava nos EUA e que aos 93 anos de idade durante o delírio febril provocado por um resfriado, tornou a falar polonês. Sucede no entanto que nosso homem havia saído da Polônia com três ou quatro anos de idade e deixado de falar polonês antes dos cinco. Pelo que havia se esquecido por completo da lingua materna e deixado de emprega-la há cerca de 88 anos!!! O que nos levaria a supor que havia o esquecimento havia sido total e que toda e qualquer memória neste sentido tivesse desaparecido.
No entanto o polonês la estava arquivado na memória inconsciente do ancião e não apenas como forma a ser repetida, mas como estrutura dinâmica!!!

Ao cabo de quase um século ou até mais milhares e milhares de casos semelhantes foram registrados e arquivados após terem sido observados pelos médicos.

O que levou J M Charcot e Bernheim a admitirem a existência de uma vida inconsciente, a qual por vezes aflora no domínio da consciência como a ponta de gigantesco Iceberg aflora sobre as águas do mar...

No entanto não se tratava apenas de memória ou arquivo mas de vida inconsciente na acepção mesma do termo.

Pois postas em sono hipnótico não poucas vezes as pessoas surpreendiam seus analistas sustentando ideias, gostos, opiniões, etc que não ousavam suster publicamente ou que até mesmo conscientemente reprovavam... Como se por trás do Eu consciente habitasse um outro Eu. Como se fossemos seres fragmentados e cindidos em duas partes conflitantes, a externa e a interna.

Posteriormente, após o fenômeno de múltipla personalidade ( Transtorno de dissolução da personalidade) ter sido exaustivamente analisado pela Dra Wilbur (caso Sybill) a doutrina da vida inconsciente tornou-se ainda mais sólida e absolutamente demonstrada.

Ao tempo de Charcot no entanto, não havia que estivesse disposto a postular semelhante tese a respeito da personalidade humana - i é que estivesse cindida em diversos departamentos conflitantes - e esta pessoa audaz teve de vir de Viena, capital do Império Austro húngaro.

Tratava-se do judeu Sigmund Freud, fisiologista visitante.

Ali na Salpetrière pode ele constatar que postas sob sono hipnótico as pacientes hipnotizadas tornavam-se normais. Da mesma maneira sob hipnose podiam as pessoas normais reproduzir os sintomas da histeria...

Constatação trivial posto que há décadas eram os sintomas de diversas enfermidades incuráveis e mortais - em especial a dor - suprimidos por meio da hipnose. Cancerosos morriam esvaindo em sangue ou de obstrução mas sem dor ou sofrimento. Assim a hipnose substituia o éter e a morfina com larga vantagem. Prisioneiros condenados a morte haviam morrido por terem sido induzidos a crer que suas veias haviam sido cortadas e que todo sangue do corpo estava a escorrer... e morreram sem sofrer quaisquer danos.

Havia muito, mas muito material.

Faltava no entanto personalidade suficientemente audaz para ligar os fatos e tirar as constatações por sinal revolucionárias. Até que o Dr Freud bateu a porta daquele afamado Instituto no final dos anos 80 (século XIX). E quanto de lá saiu já não pretendia dissecar corpos e examinar tecidos mas explorar o terreno inexplorado da mente humana.

E tinha a brecha, a porta ou a chave, como queiram.

Tinha a ferramenta necessária e esta era a hipnose.

Hipnotizou por quase dez anos ou mais e consequentemente extraiu não apenas memórias arquivadas mas volição inconsciente, disposições, gostos, crenças, ideias, etc Lançadas pela memória inconsciente no mais profundo dos abismos, o inconsciente. Lá ao cabo de exaustivas pesquisas deu com a outra face a moeda, nossa personalidade rival ou banida, o inconsciente.

Diante disto formulou sua teoria dinâmica da mente e segundo a qual achava-se ela cindida no mínimo em duas áreas, esferas ou compartimentos: o Consciente ou Ego e o Inconsciente (primeiramente Id e posteriormente super Ego).

Observando tudo isto do século XXI parece até prosaico.

No entanto até 1900 era o homem concebido como uma Unidade coesa e perfeita. Quiçá os anormais tivesse suas personalidades divididas e em estado de tensão ou choque, não as pessoas normais!

Desde o tempo dos antigos gregos o tipo de homem racional, cuja vontade era comandada ou dominada pela reta razão ou pelo intelecto era bastante caro ao menos para as pessoas mais instruídas e nem mesmo Agostinho, Lutero ou kant haviam logrado aniquilar este ideal de natureza humana organizada.

Pois o que aqueles não haviam logrado fazer executou-o S Freud ao demonstrar cabalmente que somos Caos e não Kosmos. Conflito, tensão, cisão e não unidade coesa e estável.

Dentro de nosso eu temos um outro eu em estado de guerra face aquele.

É a natureza do homem uma natureza fragmentada!

Num primeiro momento ninguém quis dar ouvidos a este judeu austríaco de barba andó e com o eterno charuto entre os lábios. No entanto, quando sua tese mostrou-se seriamente sustentável, muitos devem ter sentido ganas de lincha-lo ou que queima-lo vivo em praça pública tal e qual João Calvino havia feito com Miguel Servet trezentos e cinquenta anos antes!!! De fato passados trinta anos Freud chegou a ver suas obras serem queimadas pelo terceiro Reich! 'Antes, há cem ou duzentos, anos eu é que seria queimado no lugar delas; há progresso!' exclamou ele!

Ao tempo em que Freud elaborava suas teses sobre o inconsciente e o Ego, era a cultura européia dominado por um ideal de moralidade JUDAICO cristão altamente maniqueísta ou puritano, o qual implicava negação sistemática do corpo (com a decorrente condenação da nudez como pecaminosa e imoral) e da sexualidade. E sói como acontece no plano da cultura, mesmo aqueles que haviam perdido a fé ancestral e rompido com a religião ou a igreja conservavam vivo este padrão de moralidade e não ousavam contesta-lo. Sendo assim sexualidade era sinônimo de tabu. Todos certamente faziam sexo, mas não podiam admiti-lo publicamente, aceita-lo como algo normal, tecer comentários, etc pois era algo tido em conta de sujo ou indigno e não poucos rezavam antes e depois de terem tido relações, havendo inclusive quem confessasse e implorasse absolvição pelo pecado da concupiscência e da carne.

Isto para não falar em prazer ou orgasmo. Pois aquele tempo era o sexo encarado apenas como meio voltado para a procriação. E ninguém cogitava em separar uma coisa da outra sob pena de ser considerado devasso! Abordar a questão da satisfação sexual naquela época era certamente coisa de 'tarados', não de gente normal e decente. Toda gente honesta viva e morria como se o sexo jamais existira.

Era toda uma estrutura social, mecanismo ou sistema disposto para a mutilação, a negação e o recalque.

Desde pequenas as crianças eram ensinadas pelos pais, tutores, familiares, professores, lideres religiosos, etc que aqueles impulsos eram criminosos ou malévolos e que deviam ser banidos da vontade consciente, ao menos até a legalização do matrimônio. E mesmo após sua legalização deviam tais impulsos revestir-se de formas ortodoxas ou autorizadas pela boa moral (de origem religiosa ou JUDAICO cristã) para que fossem aceitáveis. Naquele tempo a opinião segundo a qual 'Entre quatro paredes tudo é permitido' tinha bem pouco acolhimento geral.

No entanto como a natureza é o que é e como só se pode agir segundo a lei da natureza não só os impulsos mas os desejos pecaminosos apareciam. Quando apareciam no entanto, já se havia cristalizado junto ao Id e ao Ego a instância policiadora ou repressora do super Ego, e remetidos ao inconsciente ou recalcados, para lá permanecerem enterrados ad aeternitatem!

E tal era a força dessa presença dos outros e de suas ideias em nós mesmos (super Ego) que muitas vezes nem nos dávamos conta daquilo que desejávamos, pois nem bem o desejo aflorava e o super Ego lançava-o nos abismos da inconsciência. Fazendo-nos pensar que éramos puros, imaculados e santos! Engano fatal pois a negação desses desejos e impulsos ditados pela natureza repercutia inevitavelmente sob a forma de enfermidade mental, neurose, alienação, angústia, histeria... A negação de nós mesmos em virtude dos preconceitos arraigados tornou aquela Sociedade doente!

Ao cabo de séculos produziu 'possessões', 'bruxas', dementes, loucos furiosos, melancólicos, suicidas, etc Parte dos quais era queimada viva por padres e pastores em nome do papa ou da Bíblia e parte dos quais era sepultada em mosteiros ou prisões e submetida a toda sorte de maus tratos. Não poucos canalizavam as energias e impulsos sexuais para os domínios da fé e convertiam-se em fanáticos, místicos, visionários, profetas, etc

É portanto em função de uma cultura específica dada no tempo e no espaço que o inconsciente dos europeus, ao fim do século décimo nono, estava povoado principalmente por uma energia de teor sexual. Evidentemente porque o setor da sexualidade humana é que fora satanizado, negativizado e menosprezado por aquela cultura puritana. Incidindo a repressão sobre qualquer outro setor da vida humana outro seria - e totalmente diferente - o teor da energia inconsciente.

O que quero dizer aqui ao encerrar este artigo é que a maior parte das enfermidades psiquicas que afetam a pobre humanidade ainda são provocadas pela negação dos impulsos e desejos sexuais inerentes a nossa condição humana. Em virtude do recalque, do aumento progressivo da tensão e duma fissura maior. Caso não haja válvula de escape ou alívio a personalidade de desfaz ou se desagrega por completo dando lugar a insanidade. Pois não é impunemente que se nega a natureza.

Ainda na esteira de Fliess e Freud cabe reconhecer o caráter bissexual da personalidade ao menos até o estado adulto ou como queiram o caráter não determinado da sexualidade humana em suas primeiras fases ou períodos e ainda durante largo tempo. Disse bissexual ou indeterminado não homossexual ou fixado num objeto igual a si. Há inclusive quem faça remontar esse aspecto da bissexualidade humana a infância, ao embrião, etc numa perspectiva biológica.

É a educação veículo da cultura que nos torna heterossexuais. Por meio da educação é que canalizamos o desejo consciente para determinado objeto. É a educação que nos orienta para uma forma sexual definida - a mulher para o homem e o homem para a mulher. Nós acreditamos e somos levados a acreditar e somos ensinados que a natureza determina esta escolha. No entanto ao que tudo leva a crer tal escolha é produto da cultura e da educação, então não escolhemos mas nos conformamos com uma identidade que nos é imposta ou dada.

Que seria de nós caso jamais tivéssemos ouvido as palavras mágicas: Você não pode gostar de homens ou você não pode gostar de mulher????

Naturalmente que enquanto o drama permanece latente em termos de relativa normalidade passa em branco e não temos com o que nos preocupar. No entanto quando a situação de conflito aflora ou se torna patente sob a forma de neurose, então é necessário por a mão na ferida. Isto no entanto dependerá da forma geral da personalidade e do próprio lugar da sexualidade naquela existência.

Ainda assim sou levado a questionar se algo que é natural precisa ser externamente inculcado por meio da educação com tanto empenho e esforço. Então vocês me dirão que a linguagem humana é igualmente natural e objeto de educação. A afirmação é contestável e discutível e já se disse muitas vezes que o aparato linguístico do homo sapiens é produto da cultura e por isso objeto de esforços educacionais. Sem os quais não vem a consumar-se ou a aflorar.

Por ora é o quanto tínhamos a dizer, a declarar e a propôr a reflexão do leitor!





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