quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O 'espírito' da democracia ou afirmação da objetividade moral

Topei na "Nova Idade Média" de Berdiaeff com uma crítica bastante acida ao formalismo democrático, parte da qual reproduzo:

"A Democracia reveste-se ela mesma de um carater puramente formalista, ela própria ignora sua essência e, nos limites do princípio que afirma não tem consistência alguma... A democracia é indiferente a direção e a essência da vontade do povo, não dispõe de critério algum... para definir o valor da vontade... A democracia permanecer indiferente ao bem e ao mal.... é indiferente pois perdeu a fé na verdade... A democracia é cética e filha de um século cético.... Ela não pode admitir que a vontade do povo possa dirigir-se para o mal; que a maioria possa ser pelo erro e pela mentira, e que a verdade e o bem possam subsistir no seio duma pequena minoria... ela tem fé e cre que a maioria sempre acerta."  231

Considero trágicas tais palavras, mas imensamente atuais, geniais e profundas. Especialmente para mim  que sou Policrata ou adepto da democracia direta.

Os democratas acima de todos devem ser honesto buscando compreender as limitações da democracia e estudar seus problemas. Críticas não deveriam apenas ser esperadas mas bem vindas.

Eu não tenho esta fé. No sentido de que a maioria acerta sempre.

Todavia no que diz respeito as coisas comuns e a esfera do político encaro a democracia como o sistema menos imperfeito ou mais seguro: todos enganam-se porém é muito mais facil que individuos isolados enganem-se e mais provável de que o coletivo acerte. Desde que haja ampla discussão!

Apesar disto a reflexão de Berdiaeff leva-me a duas conclusões:

  • Devemos traçar e muito bem os limites de nossa democracia estabelecendo o que lhe pertence e o que não lhe pertence para que não se torne 'totalizante' ou totalitária. Sim, pois uma democracia direta ou não também pode tornar-se totalitária, despótica e inadequada.
  • Devemos reconhecer que há algo acima das democracias ou para além delas. Para não criar um estatismo democrático.
Na idade média as coisas eram bem mais fáceis e comodas. Havia um papa e este papa pensavam por todos e arbitrava sobre todas as coisas; inclusive sobre política, constituindo uma espécie de árbitro superior. Era o meio porque a esfera da religião sobrepunha-se a esfera imanente do poder temporal. No antigo oriente ou no Leste este meio era o concílio ecumênico.

Mudaram os tempos. Concílios tornaram-se impossíveis de serem congregados e os papas romanos passaram a ser apresentados não só como faliveis mas como usurpadores do poder secular ou viciados. Hoje temos uma ONU, a qual continua sendo falivel... Assim se é certo que o Papa romano procedendo por cálculo exorbitou seus poderes não é menos certo que os homens buscaram nele e na fé que representava uma espécie de tribunal superior capaz de revisar os atos políticos necessariamente falíveis.

Após o papa os protestantes tomaram por árbitro um livro: a Bíblia. Aqui a situação tornou-se ainda mais calamitosa porquanto a Bíblia sendo um livro ou amontoado de papéis desprovidos de vida e razão, é sempre incapaz de interpretar a si mesma. Interpretaram-na os homens, cada qual a sua maneira. Fermentaram opiniões, hipóteses, palpites, crenças, credos em grande quantidade, uns em oposição aos outros. Diversos Cristianismos e diversas seitas... O protestantismo com suas variações ou divergências interpretativas falho miseravelmente, perdendo a religião sua primazia em termos de Ética.

Foi, como já dissemos noutros textos nossos, tal primado diretor, assumido pelo elemento comum da razão humana inaugurando-se o período do racionalismo ou das luzes. E toda uma Ética, destinada a direcionar as relações humanas - fossem sociais, políticas ou econômicas - foi elaborada. Uma Ética firmada na transcendência (Conceitos de lei natural e Legislador Supremo) mas já naturalista veio a luz. A unificação foi iniciada com relativo sucesso... antes de estar concretizada no entanto apareceram Hume e Kant este proclamando a morte da metafísica. 

Consolaram-se os doutos com a posse da ciência numa perspectiva nitidamente material ou materialista. Desde então o primado das relações humanas foi assumido pelo econômico (capitalismo e comunismo) ou pelo político e /ou étnico (fascismo, nazismo). Nada mais sobrepunha-se a máquina, ao mercado, ao estado ou ao parlamento convertendo-se tais instituições em deuses. Sem fé, papa, Evangelho ou a simples razão edificou-se uma ciência sem consciência! Até que a própria ciência e toda objetividade foi abatida pelos pós modernos. Restando apenas Estado, Nação e Mercado; fascismo, nazismo e capitalismo; e o pobre homem indo de uma a outra destas fúrias!

Após a falência da razão, o desaparecimento da Ética e o triunfo do ceticismo o econômico e o político converteram-se em 'tetos' da atividade humana. Teve como disse o escritor russo, a democracia de tornar-se meramente formal pelo simples fato de negar a existência de qualquer conteúdo objetivo exterior a si e, em certos contextos de regular por inteiro as vidas dos cidadãos. Invadindo os domínios questionáveis (???) do pessoal, o santuário do Ser.

Alias, quem poderia definir qualquer verdade objetiva exterior a atividade política do corpo social? O papa, o Evangelho, a razão, a ciência??? Após Hume, kant e os pos modermos a transcendência, a racionalidade ou a objetividade material unificadora foram substituídas por um vácuo. Nada restou acima do econômico e do político; do mercado, do parlamento ou da nação!

As pretensões do mercado, do parlamento e da nação tornaram-se abusivas e opressoras a ponto de desumanizar o homem. Apareceram as dinastias dos Stalines, dos Mussolinis, dos Hitleres, dos Bushes, etc Até mesmo as democracias cederam a tentação de ultrapassar a demarcação e legislar a respeito do que diz respeito apenas e tão somente a esfera partículas da personalidade e não ao espaço comum. Espremidas pelo liberalismo econômico algumas formas de liberalismo político ou democracia chegaram a ameaçar a matriz de todos os liberalismos: o liberalismo pessoal ou moral!

Quiçá não haviam lido ou compreendido as primeiras páginas do "Contrato social" onde esta muito bem escrito que certos direitos inerentes a pessoa humana não podem ser cancelados ou restritos nem mesmo pelo grupo social ou democraticamente. Mesmo que diretamente aprovada por todos os habitantes duma determinada Vila a confiscação de uma propriedade qualquer, fruto do trabalho de um de seus companheiros continuaria sendo um crime imperdoável. O máximo que a comunidade poderia fazer é indenizar o proprietário em questão se tal fosse de fato exigido pelo bem comum. Pois se tal não fosse rigorosamente exigido pelo bem comum, nem a título de indenização poderiam tomar posse de tal propriedade enquanto fruto do trabalho pessoal.

Tais os juízos que se fazem sobre a vida humana cujo valor é incalculável.

Mesmo quando aprovados diretamente por uma maioria.

Ocorre-me a condenação de Sócrates pelo Aeropago e a condenação de Jesus pelo Sinédrio: houve alguma discussão, houve voto, houve decisão da maioria e mesmo assim clamorosa injustiça! Por isso não creio na infalibilidade da maioria! Por isso não admito pena de morte exceto em caso de crises cometidos por fanáticos religiosos (uma vez que estes costumam assumir seus crimes e vangloriar-se deles).

Por isso precismos considerar o que esta fora e o que esta acima do político, mesmo sob sua forma democrática. Pois nem mesmo o grupo social tem o direito de regulamentar o comportamento pessoal ou o que esta fora do espaço comum ou da vida pública. A democracia não é nem pode ser totalizante e totalitária. Deve reconhecer seus próprios limites com absoluta precisão. Não pode fabricar autômatos como o fascismo ou a teocracia. Não pode legislar sobre todos os elementos da cultura.

A democracia para ser democracia deve conhecer as fronteiras da pessoa. Não os caprichos dos individuos que pretendam exercer domínio sobre o que é comum ou público. Mas os limites internos da pessoa.

Sob pretexto algum poderia a maioria democraticamente determinar que a totalidade dos cidadãos preferisse Coca Cola a Guaraná, que optasse pelo Verde ao invés do amarelo, que ouvisse gospel ao invés de rock, que comesse arroz no lugar de macarrão, que contraíssem matrimônio com fulano ou beltrano... pois são decisões que não dizem respeito algum a esfera comum do político mas as esfera particular da vontade pessoal. Em termos de preferências dietéticas, estéticas, sexuais, musicais, ideológicas (aqui até certo ponto) não cabe juízo político, mesmo sob a forma democrática. Alias seria essencialmente anti democrático pretender faze-lo.

Queremos dizer com isto que não existe liberdade social ou liberalismo político que possa sobrepor-se aos direitos da pessoa humana. Direito a vida, a conservação de sua integridade física, ao execício da liberdade alheia, a tolerância, a igualdade, a justiça, etc Bem pode o político estabelecer preconceitos como direito na forma da lei. Neste caso devemos preferir o bem e a justiça, mesmo quando fossem o machismo, o adultismo, a homofobia, o racismo, etc sancionados pela totalidade dos cidadãos da República. Neste caso deveríamos ficar com o que esta para além do político e da própria democracia: com a dignidade humana.

Implica reconhecer não só a forma democrática, que sempre poderia ser preenchida por qualquer coisa e reproduzir os erros da estatolatria nazista. Implica reconhecer a existência de um espaço Ético para além da democracia e do formalismo político. Implica reconhecer um espírito ou ideal de justiça que não pode ser tocado ou transtornado pelas mãos humanas.

Não podemos todavia chegar até aqui sem ressuscitar uma dama chamada razão. Elemento comum e unificador de todas as mentes. Não podemos nem queremos ressuscitar o papado. Não podemos mais tomar por critério o Evangelho profanado pelo livre exame. Não podemos tomar por guia as tradições particulares do Cristianismo Católico (em termos sociais). Uma Sociedade pluralista, laicista e democrática só poderia tomar por critério o elemento imanente e comum do raciocínio. O qual exercido em comum, mesmo sem chegar a ser infalível, será sempre seguro.

Levantamos a ponta do véu...

Para escapar aos monstros do capitalismo, do nazismo, do fascismo... da estatolatria... da teocracia... do formalismo político ou democrático temos de inserir ou insuflar um espírito dentro desta forma. Como um corpo sem alma não passa dum cadáver a democracia meramente formal, apartada do bem, da verdade e da beleza não passa duma casca. Receberá este espírito e viverá quando desprezar os profetas da modernidade e restaurar sua crença na capacidade da razão, elemento comum destinado a congregar a espécie humano em torno do mesmo ideal ético.

Recebendo este espírito de ideal ético converter-se-a a democracia formal num organismo vivo destinado a abarcar a sociedade humana como um todo. Mantida como simples formalismo desvinculado da cultura deixará de existir. Caso tal se suceda a civilização entrará em colapso e o mundo, mais uma vez, ver-se-a juncado de ruínas.

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