quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A expansão do individualismo.

Jamais o mundo antigo teve conhecimento do que ora conhecemos por individualismo. Essencialmente gregário assistiu a emersão da pessoa humana na Hélade e sua afirmação ou assimilação pelo Evangelho.

Este núcleo pessoal no entanto jamais perdeu seus vínculos com as demais pessoas e a consciência de pertencer a um grupo social. Adquiriu a pessoa humana um espaço com direitos e garantias, primeiramente morais, posteriormente legais, mas jamais negou pertencer a um contesto mais amplo e anterior a si ou a um contexto social.

O homem greco romano fosse pagão ou cristão, bem como o homem medieval jamais concebeu a si mesmo como uma átomo isolado e disperso. Jamais perdeu por completo a noção de espécie, de identidade, de unidade, de familiaridade... jamais pretendeu deixar de viver em comunhão para isolar-se ou encastelar-se numa torre de marfim.

Podia até acreditar que era melhor do que os outros. Porém jamais concebeu a possibilidade de viver completamente separado dos demais seres humanos. Este homem jamais deixou de reconhecer que mesmo sendo homem e tendo direitos achava-se inserido numa ordem maior do que si mesmo. Ele jamais permitiu que os vínculos sociais da solidariedade fossem rompidos por completo. Jamais tornou-se totalmente indiferente a seus semelhantes!

Este homem antigo ou medieval fosse pagão ou cristão jamais lograria compreender um Max Stirner ou uma Ayn Rand. Tornou-se pessoa, conquistou seu espaço, afirmou seus direitos, implementou sua liberdade mas jamais sacrificou por completo a noção de Polis, e quando a Polis deixou de existir substitui-a a Igreja numa dimensão Universal ou Católica reforçando ainda mais os laços de identidade e solidariedade.

Apesar disto houve uma ruptura dramática. Pois o individualismo ai esta, vivo e florescente em oposição a herança que nos foi legada pelos nobres e excelentes ancestrais! O escopo deste pequeno artigo é justamente esclarecer o amigo leitor sobre quando se deu tal ruptura e sobre quando este novo padrão cultural; individualista foi afirmando-se sucessivamente nos diversos domínios da sociedade e dos saberes, alargando suas fronteiras.

Queremos acompanhar a trajetória de sua expansão e palmilhar os caminhos por ele percorridos, deslindado as ideologias que o alimentaram.

Em certo sentido podemos atribuir a gênese do individualismo contemporâneo a teoria política aventada pelo publicista italiano N Maquiavel nas primeiras décadas do décimo sexto século. Antes dele ao menos teoricamente, a conduta do príncipe ou governante deveria estar voltada para o bem comum e fundamentada na Ética comum subministrada pela igreja romana. Agora Maquiavel propõem uma nova tese: a fruição e manutenção do poder em benefício próprio e não podemos deixar de ver nesta nova tese uma afirmação da vontade individual face a imperativos sociais ou comuns e um fundamento comum.

Curiosamente parece que o individualismo precedeu o liberalismo no campo da política. Pelo simples fato de compor-se com qualquer forma política. Pois a teoria maquiavélica gira em tornos dos fins e não dos meios... E o fim aqui é a posse do poder pelo individuo e a afirmação de dua vontade.

Nem cogita este individuo na igualdade democrática. A qual alias deve repugnar. Mas apenas a posse de um poder absoluto e arbitrário. E podemos já notar que a vontade deste individuo esta em oposição ao bem comum. Este individuo governa em proveito próprio, mantendo apenas cálculos e aparências.

Não se separa ou isola da Sociedade na plena acepção do termo. Mas coloca-se acima dela, num patamar superior e pretende domina-la tendo em vista suas necessidades. O vínculo aqui tornou-se fácil e artificial, mas as aparências como dissemos são mantidas, o discurso é mantido.

Maquiavel é velhaco, oportunista, demagógico mas não iconoclástico. Hipócrita mas não demolidor.

É conselheiro de reis, príncipes e nobres e sequer cogita, como Voltaire, em dirigir suas lições ao homem comum, ao homem simples, ao homem do povo.

Maquiavel tornou-se foco de intenso debate nos gabinetes dos intelectuais. Recebendo centenas de confutações. Justificou as decisões dos príncipes como 'razões de Estado'. Obscureceu o primado da ética ou da justiça. Mas, de modo geral nem criou nem podia criar cultura por ser um intelectual ou erudito.

Lutero foi quem removeu a máscara com que Maquiavel havia coberto o morto e conferindo-lhe uma conotação religiosa produziu de fato uma cultura INDIVIDUALISTA. Afinal no passado - e talvez ainda hoje - apenas a fé ou o discurso religioso era capaz de alterar a dinâmica da cultura produzindo novos paradigmas.

A antiguidade afirmou a salvação do homem na Polis em comunhão com sua raça, com sua família, com seu povo ou sua unidade cultural. O Catolicismo afirmou uma redenção eclesiástica ou seja no organismo vivo da Igreja em comunhão com os demais 'santos', em relação de caridade com os outros fiéis, num clima de solidariedade. Para salvar-se devia o Católico cultivar a virtude e abundar em boas obras, o que só podia ser realizado em contato com outros ou seja em comunhão. Era na convivência com a irmandade que a virtude eram exercitada.

Lutero no entanto, afirmando a salvação pela fé somente e eliminando a necessidade de obras - TANTO A PRIORI (como os Católicos) quando A POSTERIORI (como os calvinistas) - torna supérfluo o exercício da virtude e portanto o contato social. Consciente ou inconscientemente a reforma protestante afrouxou os laços sociais que prendiam os fiéis uns aos outros até construir um discurso completo em torno da salvação individual em oposição a salvação comunitária e solidária dos catolicismos.

Espiritualmente perde-se aqui a noção do outro. Pode ele incorrer na danação eterna e parar no quinto dos infernos desde que EU me salve. E bem posso estar feliz no paraíso enquanto meus pais, conjuges ou até filhos sejam atormentados pelas 'míticas' chamas da churrasqueira divina... A justiça obriga-nos a admitir que a construção desta teologia indiferente e egoísta, estava já em formação no seio da igreja romana. No entanto parte desta igreja ousou afirmar a salvação dos antigos mestres do paganismo ou mesmo dos heréticos de boa fé.

O protestantismo com sua fixação mórbida na graça divina e seu pouco caso pelas obras lançou a totalidade dos pagãos, heréticos e infiéis nas tais chamas, mostrando-se mais radical, quando devia mostra-se mais generoso para fazer-se digno do Evangelho daquele que disse: Perdoai setenta vezes sete vezes!

Desde então - do momento em que se afirmou a salvação individual - foram as obras de fato substituídas por outros meios mais 'refinados' como a oração. Sendo a salvação um negócio particular que se dá entre deus e a alma do individuo sem qualquer mediação humana, apenas o contato direto com esse deus por meio da prece faz sentido... O próximo sai de foco e a oração substitui as boas obras desconstruindo as relações humanas ou sociais.

Foi a reforma com sua busca individual por deus e o colóquio direto entre deus e seus eleitos por meio da prece, uma alienação ou afastamento progressivo do outro e consequentemente uma negação radical da tradição cristã e da consciência gregária tão viva e presente no Cristianismo nascente, quando todos tinham tudo em comum... e viviam em comunhão até mesmo de bens materiais!

Após a reforma protestante homens, famílias, bairros, regiões e nações inteiras afastam-se umas das outras para buscar a deus na solidão ou no deserto. Foi a sementeira dos nacionalismos ( a principio com suas igrejas ou cristianismos nacionais) mas também dos individualismos e do subjetivismo por obras e graça do livre exame, e do relativismo pela contrafação das verdades, dogmas ou credos editados por cada seita. Foi todo o aflorar de um novo mundo e duma nova cultura. Em que tudo quanto seja unificador foi desprezado: a comunhão, a tradição, a objetividade, a verdade... todas estas palavras perdem seus sentido.

Sem querer, pretendendo recuperar o espirito do Cristo e dos apóstolos, os reformadores evocam as sombras de Górgias e Protágoras. O qual não tardara a reencarnar-se num Hume e num Kant e a repudiar a existência da verdade e a objetividade do bem.

O homem tornou-se, por meio do livre exame, a medida da doutrina Cristã. Multidões de individuos converteram-se em papas ou profetas e afirmaram credos conflitantes constituindo seitas ou partidos. Até que em meio a tantas verdades ou versões da verdade o homem desesperou da verdade, como desesperou da razão. Mas permaneceu marcadamente individualista.

Pois do domínio da fé passou o individualismo muito facilmente ao domínio da economia. Afirmando o primado do individual sobre o coletivo. Em certo sentido o capitalismo não passa dum calvinismo secularizado onde a busca do individuo pelo lucro substitui a velha busca por deus e pela redenção. O homem passou a busca uma outra coisa, mas manteve a mesma atitude de isolamento e a mesma desconfiança face ao grupo social. O protestantismo comunicou ao liberalismo nascente o mesmo ressentimento que votará a igreja antiga sob a forma de um ressentimento contra a Sociedade.

Não é por simples acaso que Lutero era agostiniano. Não é por simples acaso de Adam Smith era calvinista. A ênfase do discurso economicista liberal sobre a ação dos indivíduos e o repúdio a todo e qualquer tipo de controle externo ou social é pura e simples reprodução secularizada da mesma relação existente entre as seitas reformadas e a Igreja Antiga. Com a busca da relação a sós com deus e o repúdio a qualquer tipo de controle doutrinal...

Alastrou-se o individualismo da teologia a economia.

Transbordará no século XVII Mandeville e enfim no século XIX primeiramente com Max Stirner e posteriormente com Nietszche ( TODOS PROTESTANTES em termos de cultura e formação) para os domínios da Filosofia. Assumindo-se como individualismo e sendo devidamente codificado. Foi neste momento que a cultura tomou plena consciência da cultura.

Resta-nos declarar que não cremos que o individualismo criasse cultura e suplantasse por completo nossa herança já clássica, já Católica em termos de 'socialismo' ou 'alteridade', e chegasse a afirmar-se no plano da economia, até assumir a forma de corrente filosófica sem o adjutório da religião ou os favores do protestantismo com sua doutrina de salvação individual pela fé somente. Foi desta crença essencialmente anti cristã que o individualismo os demais domínios do ser alastrando-se por ele subvertendo as estruturas da Sociedade até conduzir-nos a crise da civilização. Podemos dizer que após o recuo da fé protestante o individualismo continuou a avançar já secularizado... e podemos até dizer que avança ainda hoje, juntamente com o nacionalismo, o totalitarismo, a teocracia e outros tantos espectros saídos do abismo.

No próximo artigo teremos ocasião de ver como e em que terrenos o individualismo afirma-se no momento presente.










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