quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Mitos em torno da afirmação das liberdades da Sociedade Moderna

O objetivo deste artigo é analisar diversas hipóteses produzidas enquanto tentativas de compreender a afirmação ou ressurgimento das Liberdades no contesto das Sociedades moderna e contemporânea. A parte deste tema investigaremos também a gênese dos pensamentos irreligioso e laico.

Para tanto iniciaremos nossa abordagem apresentando as hipóteses ou teorias mais sugestivas:


  • Segundo diversos autores protestantes e liberais, os reformadores promoveram CONSCIENTEMENTE a retomada das liberdades merecendo serem tidos em conta de pioneiros nos campos dos liberalismos religioso, intelectual, político e pessoal.
  • Por outro lado, certo número de escritores papistas, tem atribuído aos mesmos reformadores o propósito CONSCIENTE de fragilizar a instituição Cristã e promover a incredulidade.
  • Outro grupo de teóricos tem buscado estabelecer relações mais amplas ou menos amplas entre a reforma protestante e as revoluções modernas. Alguns limitam-se a postular uma similaridade em termos de método, enquanto outros avançam sugerindo certas afinidades ideológicas.
  • Laurent, acompanhando Voltaire; sustenta que sem Reforma Protestante não haveria Revolução Francesa. Esclarece no entanto que esta jamais seria realizada pelos protestantes e sugere que o papel do protestantismo ou da disputa religiosa neste contesto foi produzir uma cultura religiosamente indiferente ou incrédula matriz da grande Revolução.
  • Van Loon e certo número de autores 'insuspeitos' sugerem que a Liberdade surgiu como um nicho ou espaço neutro devido a disputa travada entre a Igreja antiga e as novas facções, em torno do poder.
  • Inúmeras foram as ilações sugeridas em termos do livre exame, de sua secularização e da afirmação do relativismo, do subjetivismo e da incredulidade.

Cada uma dessas teses ou hipóteses é por si só muito interessante.

Estabelecer um estudo sistemático, minucioso e sobretudo comparativo auxiliara o estudioso a conhecer e reconhecer a complexidade do processo histórico e predisporá o mesmo a evitar tanto as generalizações infundadas quanto as fórmulas ocas usadas pelos panfletários com fins proselitistas.

1 - No que diz respeito as liberdades políticas é sempre bom frisar que cento e trinta anos antes da Reforma protestante o Bispo Genebrino, Adhemar Fabri publicou uma carta em que pela primeira vez, no contexto europeu, as liberdades políticas (forma republicana) são oficialmente reconhecidas.

Já a congregação da primeira assembléia cantonal ou landsgemeinde - de Uri - remonta a 1231. Quando não havia sombra de protestantismo na Europa. A bem da verdade os cantões papistas como Schwyz, Uri, Zug, Appenzell interior, Unterwalden é que conservaram as formas democráticas até o tempo do Sonderbund, quando foram atacados e  submetidos pelos cantões protestantes. Desde então, sob pressão dos cantões urbanos e protestantes, foram paulatinamente abrindo mão de suas liberdades democráticas, de suas tradições ancestrais e consequentemente as assembleias cantonais.

Segundo Van Paasen, João Calvino foi responsável por converter a República de Genebra no primeiro campo de concentração moderno. Stefan Zweig da-se por satisfeito com registrar que Calvino transformou a República dos genebrinos numa teocracia ou seja num regime totalitário de inspiração religiosa.

Donde concluímos que a na Suíça a reforma protestante foi responsável pela abolição das antigas liberdades políticas.

Quanto a Inglaterra, é sempre bom lembrar que a Carta Magna de direitos civis remonta igualmente a Idade Média papista, quando ainda não havia sombra de protestantismo e que o protestantismo foi implantado com o apoio do absolutismo sob Eduardo VI, o rei menino.

2 - A respeito da liberdade de consciência convém registrar jamais ter sido ela CONSCIENTEMENTE defendida por qualquer reformador!

Nem por Lutero, nem por Calvino, nem por Zwinglio ou por qualquer um outro.

Lutero amaldiçoou em diversas ocasiões aqueles que interpretavam as escrituras de maneira oposta a sua. Apelou repetidamente ao podre do braço secular com o intuito de intimidar os dissidentes, decretando que houvesse um só sermão apenas! Por fim, a semelhança de Maomé, mandou exterminar os desgraçados anabatistas.

"Além disso, os Anabatistas separam-se de igrejas e estabelecem um ministério e congregação próprios, que é também contrário à ordem de Deus. De tudo isso, se torna claro que as autoridades seculares estão compelidas a infligir punições corporais nos ofensores. Também quando é um caso de apenas defender alguns princípios espirituais, como o batismo de crianças, pecado original e separação desnecessária, e então, nós concluímos que os sectários teimosos devem ser postos à morte.  LUTERO in Janssen, X, 222-223; panfleto de 1536).

Melanchton, seu secretário, inclusive, assinou diversas sentenças de morte contra eles!

Lutero ficava satisfeito com a expulsão dos católicos. Melanchthon era favorável à imposição de penas corporais contra eles [. . .]" (Janssen, V, 290)

Calvino mandou supliciar Servet a fogo lento por ter cometido o 'crime' de negar que a doutrina da Trindade estivesse contida na Bíblia. Já seu púpilo Th Beza, descreveu a liberdade de consciência como sendo uma 'doutrina diabólica' e justificando exaustivamente a necessidade que exterminar todos os dissidentes religiosos.

A defesa mais habilidosa de perseguição durante o século 17 veio do presbiteriano escocês Samuel Rutherford (A Free Disputation Against Pretended Liberty Of Conscience, 1649).” (Chadwick, 403)

Outro inimigo declarado da liberdade de consciência foi o também calvinista Thomas Edwards, autor da Gangraena.

Já U Zwinglio decretou uma Fatwa contra todos os anabatistas de Zurich fazendo com que os infelizes fossem atirados aos rios com grades amarradas a seus corpos.Além disto “...chegou a declarar que o massacre dos bispos era necessário ao estabelecimento de um Evangelho puro. . . Em 4 de maio de 1528, ele escreveu: ‘Os bispos não desistirão de sua fraude... até um segundo Elias aparecer para fazer chover espadas sobre eles. . . É mais sábio arrancar for a um olho cego do que deixar o corpo todo corromper-se.’” (Janssen, V, 180; Zwingli's Works, VII, 174-184)

Além de a semelhança de um segundo Maomé morrer com a espada nas mãos no campo de batalha de Kappel, após ter invadido com suas hordas os cantões Católicos.

Se alguém ainda abriga o preconceito tradicional que os primeiros protestantes eram mais liberais, ele deve ser desenganado. Salvo por algumas palavras esplêndidas de Lutero, confinadas aos primeiros anos, quando ele era impotente, não há quase nada a ser encontrado entre os principais reformadores a favor da liberdade de consciência. Assim que eles detinham o poder de perseguir, eles perseguiam.” (Smith, Preserved (S), The Social Background of the Reformation, Pg. 177 - New York: Collier Books, 1962)

Por onde se concluí que jamais pretenderam sancionar a liberdade de consciência!

3 - Igualmente absurda a tese segundo a qual os reformadores protestantes fossem incrédulos ou pretendessem favorecer a incredulidade, quando - assinala com razão Laurent - colocavam a fé cega acima de tudo.

Ninguém mais crente do que aquele que é capaz de excluir a razão - Lutero - e apresenta-la como uma doida varrida.

Ninguém mais crente do que aqueles que excluem a liberdade e a colaboração humanas tudo atribuindo magicamente a graça (monergismo) a ponto de construírem dogmas monstruosos como a predestinação.

Nada mais crente do que acreditar na veracidade da Bíblia - digo antigo testamento - de capa a capa com todas as lendas e mitos judaicos.

Em tudo foi o protestantismo um excesso ou abuso: do livro, da graça, da fé... em tudo uma hipertrofia... uma apoteose da credulidade.

Neste sentido ousamos proclamar em alto e bom som a excelência do espírito Católico ou mesmo da igreja romana cuja teologia sempre reconheceu as capacidades da razão e da liberdade!

Buscando tudo atribuir diretamente a deus, o protestantismo estava mesmo destinado a converter-se em paladino do criacionismo.

Nem se pode imaginar nada mais oposto a incredulidade.



4 - Neste caso qual seria o elemento comum existente entre protestantismo, Revolução Francesa e por extensão a Revolução russa?

O único elemento comum entre a Revolução Protestante e as revoluções subsequentes encontra-se no nível da forma ou do método.

Uma vez que os reformadores foram os primeiros homens modernos a atacar violentamente - em termos físicos e materiais - seus adversários, no caso a igreja romana ou os Bispos Católicos, recorrendo a autoridade secular, as armas e a guerra aberta.

Historicamente a Reforma protestante constitui um marco. Pois foi nela que pela primeira vez uma categoria ou grupo de cidadãos (no caso os burgueses e citadinos) pegaram em armas com o objetivo de alterar as instituições sociais. Neste sentido, puramente externo ou formal, a Reforma é mãe de todas as revoluções modernas.


É por esse motivo que pastor algum tem o direito de condenar as Revoluções Francesa, Russa, Mexicana ou quaisquer outras manifestações sociais de violência porque sua querida reforma deu-se exatamente nos mesmos termos ou seja enquanto uma irrupção de violência sem precedentes!

Não foi ao redor de uma mesa apreciando finos licores e petiscos que a reforma foi decidida, mas em campos de batalha como Kappel... ao fragor das armas! 


E nem se pode negar que ainda no berço a maravilhosa reforma tombou no vício da igreja romana e no erro do islã, impondo o novo Evangelho a ferro e fogo!

Neste sentido negativo foi revolução e matriz de todas as revoluções subsequentes!

A filosofia ensinou-nos que todas as questões podiam e deviam ser resolvidas racionalmente. O Cristianismo antigo que quase todas as questões podiam e deviam ser resolvidas pacificamente.

A reforma além de ter sacrificado a razão e a liberdade, sacrificou também o dom da paz.



5 - Tudo quanto podemos dizer a respeito das liberdades modernas é que foram produto da rivalidade e luta travadas entre a igreja antiga e a igreja nova.

Assim o que Voltaire e Laurent declaram a respeito de Lutero e Calvino, dizendo que sem eles a Revolução Francesa teria sido impossível, podemos dizer igualmente a respeito do papado:

Caso o papado não tivesse resistido e feito oposição a reforma protestante revolução alguma teria sido possível.

A bem da verdade os nichos de incredulidade, laicismo e liberdade, surgiram apenas onde as forças das duas comunhões anularam-se uma a outra ou onde as diversas seitas protestantes estavam em luta pelo poder.

São dois os fatores que devemos levar em conta ao analisar a questão do surgimento das liberdades modernas:

  1. A fragilização da até então onipotente igreja romana
  2. A impossibilidade de qualquer seita protestante assumir seu lugar ou substituí-la numa dimensão continental

A bem da verdade o que os reformadores pretendiam não eram fragilizar a igreja romana, mas destruí-la por completo e ocupar seu espaço.

Concretizada tal aspiração teríamos a Bíblia no lugar o papa e uma inquisição bíblia implantada em larga escala a semelhança do que ocorreu na Genebra de Calvino, a nova Jerusalém dos reformados.

Eis o modelo de 'sociedade' ou república que os protestantes esperavam poder implantar na Europa como um todo, algo bem mais rigoroso e intransigente do que o modelo papista!

Em que pese o juízo de Laurent, tanto Montaigne quanto Rabelais não tardaram a perceber porque sendas pretendia a reforma guiar os povos, pelo que o último aproximou-se decididamente da igreja romana, cujos ensinamentos Montaigne jamais questionou.

Moralmente falando a reforma, com seu puritanismo de duvidoso talhe, tinha diante de si um modelo bem mais rígido, quase monacal ou ascético.

Cumpre indagar que espaço estaria reservado a liberdade num cenário destes???....

Não é da reforma que surgem nossas liberdades e sim da frustração do projeto social delineado pelos reformadores. Os quais não tiveram folego suficiente para ocupar como desejavam os espaços deixados pela igreja antiga.

Temiam sobremodo que as massas fizessem a eles o mesmo que eles haviam feito aos Bispos e rejeitassem de imediato qualquer tipo de instituição ou culto religioso. Pelo que tiveram de limitar ou nivelar suas pretensões.

Em suma a reforma jamais esteva altura da tarefa a que se propôs: substituir a igreja antiga ou por-se no lugar dela.

Assim em poucas gerações, aqueles que haviam trocado de religião, concluíram que bem podiam passar sem qualquer uma.

Ao fim de dois séculos ou século e meio parte dos protestantes chegou a conclusão de que a nova igreja era tão inutil quanto a antiga.

Já no plano político não tinha a igreja nova como suster suas pretensões autocráticas. Por mais que lhe sobrasse vontade não tinha poder para tanto.

A velha igreja como já dissemos saíra abalada desde o começo. Temia acima de tudo que qualquer rei ou príncipe imitasse os exemplos de Lutero ou Calvino... tendo de conter parte de suas exigências.
Este conflito entre as instituições religiosas modernas e a igreja antiga desgastou ambos os lados. Fazendo com que limitassem mais e mais suas pretensões.

Sem qualquer um dos lados não haveria Revolução Francesa.

A criação de uma sociedade 'Bíblica' em escala continental com a posse dum aparelho inquisitorial, bastaria para amedrontar príncipes e reis e atrasar por séculos a ulterior evolução política do Ocidente.

Assim se devemos a reforma a anulação do poder papal, devemos a igreja romana a anulação do novo poder que pretendia afirmar-se: o poder bíblico.

É a Sociedade moderna produto de duas forças religiosas que anularam-se mutuamente.


6 - E quanto a afirmação da incredulidade, deísmo, materialismo e ateísmo; colaboraram as duas comunhões: romana e protestante na mesma proporção?

Se em termos políticos e sociais podemos analisar com segurança o rumo das coisas e perseguir seus caminhos, o mesmo não se dá a nível de pensamentos e crenças. Aqui estamos diante de um fenômeno tanto mais complexo.

Pois nem todos os que aderiram aos pressupostos laicistas ou secularizantes, do século XVI ao século XX eram necessariamente irreligiosos. Assim se haviam anti clericais virulentos nos países 'católicos' também havia um grupo igualmente forte de 'católicos' modernistas, ou seja, em maior ou menos grau favoráveis a liberdade de consciência e a democracia. Alias este grupo só veio a ser penalizado em meados do século XIX, por Pio IX, o papa reacionário, inspirador do ideário integralista.

Até Pio IX os católicos democráticos, laicistas e ou socialistas sempre haviam feito parte da vida de igreja. A par dos anti clericais virulentos e dos legitimistas, uns e outros faziam parte de um cenário social bastante variado. Isto já nos séculos XVIII e XIX.

Pio IX foi o primeiro papa moderno a romper a barreira estabelecida desde os séculos XVI/XVII e a aspirar por um poder semelhante a dos grande papas da Idade Média. Antes dele os papas e mais ainda os Bispos estavam muito mais preocupados com a pureza da fé. De certo modo ele intensificou ainda mais o conflito existente entre a Igreja e o principado secular, na medida em que nutria pretensões aparentemente teocráticas.

Uma coisa porém é certa: tendo em vista a existência de dogmas muito bem definidos, a igreja romana jamais cogitou em negociar sua fé com quem quer que fosse. Impôs os limites de sua ortodoxia e lanço fora os que não se conformavam com eles. Tal a origem do partido anti clerical!

Implica admitir que a incredulidade jamais foi capaz de infiltrar-se profundamente na corpo da igreja antiga.

Já o mesmo não se dá com o protestantismo.

Em função do princípio do livre exame.

Santificado o princípio do livre exame, que é um princípio meramente formal e portanto vazio, fica impugnada a pretensão de uma verdade objetiva que transcenda os indivíduos.

É verdade que o protestantismo nascente associou ao método do livre exame, a doutrina mágico fetichista da inspiração direta do espírito santo, ainda hoje sustentada pelos pentecostais.

Bastante cedo porém, a diversidade de interpretações e seitas, fez com que os protestantes da Europa substituíssem a tal inspiração mágica do espírito santo pelo princípio natural da razão humana. Desde então ficou o livre examinismo naturalizado...

Convertendo-se a fé cristã em opinião individual.

Ou melhor em inúmeras opiniões uma vez que cada qual tem a sua...

Por volta do século XVIII era tal o número de interpretações que pouquíssimos protestantes cogitavam estar em posse da verdade.

Assim enquanto uns convencionaram que não havia verdade alguma outros convencionaram que todas as opiniões ou interpretações eram verdadeiras e; nem por isso, tais pessoas; sem fé, cogitavam em não ser protestantes. Transformando-se, ao cabo de três ou quatro séculos a igreja do fideísta Lutero num clube de incrédulos, deístas, materialista e até mesmo ateus.

Chegamos forçosamente a conclusão de que o princípio formal do protestantismo ou melhor sua naturalização culminou em tornar a comunidade protestante num repositório de incredulidade e irreligião. Sem que houvesse qualquer ruptura brusca ou mesmo negação do protestantismo devido a continuidade do método. Assim a instituição protestante, ao contrário da papista, não só acomodou-se as novas ideologias irreligiosas como chegou a promove-las ativamente. A ponto de seus teólogos conceberem a teologia da 'morte de Deus'. Nem preciso dizer que Nietszche foi filho de um dos principais doutores do luteranismo.

Além disto a própria proposta de exerce fé na Bíblia toda de capa a capa - ao menos após o século XVIII e a afirmação do padrão científico de pensamento - com seus mitos, fábulas e dogmas absurdos (antigo testamento) agravou ainda mais a situação, aumentando a crise da fé. Neste sentido a igreja romana e demais igrejas Católicas com seus trinta e poucos dogmas objetivamente definidos e por consequência limitados saiu-se e ainda hoje se sai muito melhor.

Eis a razão porque certo número de ateus e materialistas fanáticos nutrem franca simpatia pelo sistema protestante - em que pese o pentecostalismo e o criacionismo - e assestam suas baterias contra a igreja antiga, quiçá por esta ser ainda hoje mais resistente. 

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