sábado, 19 de setembro de 2015

O agostinianismo e a não realização do Cristianismo II - A barbarização do Ocidente e a afirmação do Agostinianismo

II - A barbarização do Ocidente e a afirmação do Agostinianismo


Antes de levarmos adiante a exposição iniciada no artigo anterior temos de fazer uma observação importante.

O amor a justiça obriga-nos a prestar um esclarecimento necessário.

Rigorosamente falando apenas o luteranismo reproduziu integral e fielmente os equívocos do Bispo de Hipona. Numa escala superior ao calvinismo. Pois enquanto este limitou a admitir a monstruosa e abominável doutrina da predestinação e a inutilidade do livre arbítrio antes da adesão a fé, o luteranismo manteve de pé a tese segundo a qual mesmo após sua adesão a fé o homem permanece sendo escravo do pecado.

Queremos dizer com isto que para Agostinho e Lutero a liberdade humana jamais é reabilitada, nem mesmo pela unidade de Jesus Cristo i é a graça. Portanto, mesmo após sua conversão, permanece o homem enfermo, fragilizado e espiritualmente débil, ou seja, sempre sujeito a pecar, a reincidir, a cair, a praticar o mal, a cometer crimes; dos quais é eximido tendo em vista o sangue de Cristo e a fé somente. Pois é sempre incapaz de corrigir-se, de romper definitivamente com o pecado, de abster-se, de deixar de pecar, de ser santo, de granjear a perfeição.

Para Lutero o Cristianismo não passa dum sistema 'puramente' espiritual ou mágico, cujo principal objetivo é oferecer o perdão e a salvação a um ser essencialmente mau. Perdão que é oferecido repetidamente e salvação voltada exclusivamente para a outra vida uma vez que o destino do Cristão neste mundo é continuar pecando e nisto sua vida não se distingue em nada da vida dos pagãos ou dos infiéis. A única coisa que o Cristão tem a mais do que os outros é uma fé meramente teórica na disposição de Jesus perdoa-lo sempre, pelo simples fato de ter morrido por ele.

Enquanto o Oriente grego sustentava unanimemente que o pecado limitou-se a fragilizar a condição humana e que após o retorno do homem ao sagrado, esta condição não só podia como devia ser superada ficando o homem completamente sarado e sua vontade livre plenamente restaurada. Agostinho foi quem primeiramente lançou o veneno da duvida e do comodismo nos corações e nas almas daquelas elites que de fato não desejam assumir integralmente as exigências da nova fé. Foi Agostinho que forneceu aos hipócritas oriundos do paganismo a justificativa teológica de que precisavam para declarar: Non possumus!

Não podemos cumprir com as exigências de santidade e perfeição contidas no Evangelho pois somos criaturas frágeis e imperfeitas, sempre incapazes de perseverar na prática do bem e da justiça.

Foi Agostinho quem primeira vez enunciou esta doutrina comodista em torno da salvação mágica e facil a qual até nossos dias apegam-se as massas decadentes. Após ele foi Lutero que enunciou em alto e bom som a salvação NO pecado (e não a salvação Ortodoxa DO pecado) atraindo multidões! E como diz Kierkegaard rebaixou o ideal até então heroico, produzindo um sistema indiferente e vulgar, voltado exclusivamente para o além túmulo. 

O calvinismo, sejamos justos, jamais esgotou o fundo da taça, antes reverteu um tiquinho a Ortodoxia, admitindo que após a conversão, os predestinados tinham a livre vontade restaurada, o que associado a disciplina da igreja era capaz de preserva-los duma vida essencialmente pecaminosa e de predispo-los a uma 'meia' santidade, com quedas ocasionais ou mesmo raras. Foi esta concepção que permitiu a Calvino retomar, em parte, o ideal eclesiástico demolido por Lutero e a criar uma anti igreja ou seja uma igreja protestante; visível, hierárquica e autoritária, com seus sínodos e presbíteros!

Os próprios luteranos com seu apego fanático a Lutero e a Agostinho e sua insistência mórbida a respeito da miséria e incapacidade humanas, não puderam encarar a seita rival como uma espécie de novo papado ou novo Catolicismo, embora os dogmas dela muito pouco tivessem de Ortodoxos. A atividade dos calvinistas no entanto rivalizava com a dos episcopais, na medida em que admitiam a reabilitação da livre vontade ou uma cura, ainda que limitava.

Até aqui o século XVI...

Tornemos agora a Sociedade Ocidental e Cristã do século V e procuremos descobrir porque vias conseguiu o agostinianismo afirmar-se e sustentar-se no seio duma igreja até então ORTODOXA, sintonizada com o Oriente e, consequentemente semi pelagiana.

Aos olhos de alguns ao menos, admitida nossa interpretação acerca do Agostinho e do agostinianismo estaríamos diante de um autêntico mistério. Pois teríamos no século IV uma igreja como já se disse semi pelagiana e como tal, plenamente consciente de sua capacidade e responsabilidade e, pelo final do seculo V ou começo do século VI uma igreja agostiniana, enfim quase luteranizada.

Penso que a opinião acima não expresse com exatidão e fidelidade o estado das coisas tal como se teria passado.

Pois nem os sentimentos de unidade em torno da Ortodoxia ou comunhão com a parcela da Cristandade Oriental achavam-se intactos no século IV, nem havia uma igreja agostiniana no século VI desta Era mas apenas no século XVI com o advento do luteranismo. Grosso modo podemos dizer que do século III ao XVI, ao cabo de uns 1300 anos houve como um estado de passagem ou transição da Ortodoxia Católica para a fé agostiniana. Importa saber que este processo só se concretizou no século XVI por ocasião da assim chamada reforma protestante, quando os pressupostos de Agostinho foram retomados, desenvolvidos e apresentados como dogmas de fé.

Quanto a seu caráter inclusive, podemos descrever este período ou fase de transição como um período de tensão ou conflito. Conflito entre os elementos tradicionais da fé ou a autêntica consciência Cristã, semi pelagiana e um agostinianismo cada vez mais insidioso ou vigoroso. Ao cabo do qual, ao menos em certo espaço, o agostinianismo veio a triunfar por completo. Decorrendo deste triunfo o total abandono da proposta autenticamente Cristã e evangélica embasada no mistério da Encarnação ou da criação de uma estrutura social ou cidade Católica.

Como podería o agostinianismo, que se apresentava incapaz de transformar o homem, propor-se a transformar a Sociedade dos homens? A princípio com Agostinho e depois com Lutero o ideal de uma Sociedade Evangélica encarnada neste mundo sai completamente de cena, sendo definitivamente transferido para as nuvens do céu ou o além túmulo. Assim o Cristianismo é postergado e deixa de acontecer cedendo passo não só a um ideal de Sociedade absolutamente naturalista, mas a um ideal materialista, logo economicista.

Na mesma medida em que o novo Cristianismo, cujas bases haviam sido lançadas por Agostinho, abdica de seu mais nobre e elevado ideal, é este mais e mais assumido pelo Capitalismo. E enquanto este vai se alastrando pela terra antes Cristã, o Cristão alienado vai buscando mais e mais o reino descarnado do espírito puro ou do platonismo. A terra fica entregue aos poderes diabólicos do mal e do inferno e a única esperança possível posta no imaterial e invisível, como se o Deus dos Cristãos a semelhança de Javé ou Allá jamais tivesse se encarnado e assumido o mundo material.

Claro que semelhante movimento não poderia ter se dado de um dia para o outro ou seja em um ou dois séculos.

Noutra conjuntura teria sido o agostinianismo nascente denunciado as autoridades eclesiásticas ou Bispos e condenado num Concilio ecumênico. Sucede no entanto que a novidade aflora em circunstâncias atípicas i é num cenário de confusão e anomia em que os bárbaros germânicos estavam invadindo e assolando o que restava do Império Romano no Ocidente, destruindo os meios de transporte e comunicação, incendiando escolas e bibliotecas, assassinando os próprios Bispos, e trazendo o caos ao mundo antigo.

E já não havia proximidade e contato entre Ocidente e Oriente os quais principiavam a separar-se culturalmente um do outro e a formar duas unidades, a princípio politicas e em seguida culturais.

O próprio Agostinho (da mesma forma que Jerônimo e os mais padres antigos) mostra-se perplexo diante de semelhante estado de coisas, a ponto de ensaiar uma interpretação sociológica: a 'Cidade de Deus'. E morre enquanto os vândalos, recém chegados da Hispânia, cercam sua cidade episcopal.

Grosso modo podemos dizer que a ruptura cultural fora iniciada século e meio antes quando o escritor Cristão Tertuliano - igualmente africano como Agostinho - abandona a lingua grega ( em que havia sido codificado o Evangelho) e passa a escrever em latim. De modo que no fim mesmo daquele século (III) Victorino de Poetabiae é o último escritor latino a empregar o grego. Meio século depois, nasce Agostinho e descuida completamente da lingua helênica, a ponto de não aprecia-la ou mesmo -segundo alguns - ignora-la por completo. Passados alguns século apenas um punhado de Bispos e doutores latinos compreendiam bem a lingua grega, sendo capazes de ler e compreender das obras dos teólogos orientais.

Já em meados do século IV é a vez da igreja romana abandonar o emprego do grego em sua liturgia substituindo-o igualmente pelo latim barbarizado. A igreja africana já havia se adiantado neste sentido e banido o grego de sua liturgia ainda no tempo em que Victorino escrevia suas últimas obras. Este alienar-se da lingua grega e consequentemente da teologia oriental esta na gênese do agostinianismo nascente.

Por outro lado as condições materiais e culturais do mundo ocidental ou latino no século VI, i é após as invasões teutônicas, não beneficiavam de modo algum o exercício e cultivo da alta teologia nos termos de um Gregório de Nissa... ou de um Teodoro de Mopsuestes. Havia uma massa de germânicos analfabetos que sequer sabiam soletrar o latim vulgar e barbarizado do século IV... e que criados e formados na mitologia pagã achavam-se mais chegados a mitologia judaica do antigo testamento do que dos mistérios Cristãos propriamente ditos ou da antropologia católica.

Como esperar que tais multidões de neófitos chegasse a compreender o alcance da controvérsia agostiniana ou assimilar os pressupostos do semi pelagianismo? Seria como espera-lo de nossos pentecostais ou dos muçulmanos. Lamentavelmente a teologia que estava no acesso daquelas mentes era a mais vulgar, a agostiniana, com seu conteúdo mágico ou fetichista.

A miséria, o analfabetismo, a incompreensão da tradição oriental, a diluição da consciência Cristã, o éthos cultural, tudo enfim pendia para o agostinianismo. Formidável aqui foi a resistência esboçada pelas diversas formas, assumidas ou não, de semi pelagianismo até Alberto Pighius em 1530...



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