quinta-feira, 4 de maio de 2017

O Svidrigailoff de crime e castigo


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Torquemada e João Calvino, ambos os dois, correspondem ao tipo ascético, que desconfia dos prazeres, alegrias e divertimentos comuns a esta nossa vida. Vida que para eles sabe a morte...

Da existência enxergam apenas a cruz. Sem perceber que uma boa dose de vinho com mirra é necessário para suporta-lhe o peso...

Coisa curiosa de ser ver. Como o asceta e capaz de tornar-se desumano e cruel, e consequentemente de cometer a maiores vilanias, como matar, torturar e oprimir em nome de Cristo, de Deus e da fé...

Na mesma medida em que torturam a si mesmo tornam-se insensíveis a sofrimento alheio e perfeitamente capazes de torturar os demais em nome de Jesus ou da religião...

Talvez por puro e simples amargor seja levado a assassinar e fazer sofrer.

Talvez porque a alegria experimentada pelo outro incomode-o ainda mais do que a auto privação. Quem sabe?

Só sei que o mesmo homem que prostrado ao chão vive mais de jejum do que de qualquer outra coisa, é bem capaz de esfolar o adversário até a morte ou de abrir-lhe o ventre e queimar-lhe as tripas sem soltar um suspiro ou derramar uma única lágrima.

O asceta é capaz de matar e de torturar em nome de Deus acreditando exercer uma ação sagrada. Acredita ser uma espécie de soldado ou miliciano a divindade. Talvez acredite, em sua ingenuidade, ser capaz de defender aquele que adora...

Tendo eliminado seus sentimentos e substituído o coração por um pedaço de pedra será um psicopata?

Quem saberá ou poderá dize-lo?

Intolerante consigo mesmo segundo as exigências da virtude, torna-se muito facilmente intolerante face aos outros desvirtuando a fé que o anima.

O mesmo mistério que o faz verter as mais sinceras e doridas lágrimas aos pés do divino crucificado, impede-o de chorar por uma criança acusada de 'blasfemar' contra seus pais, ou contra um idoso suspeito de heresia...

As feridas e chagas de um pecador ou herético conduzem-no ao paroxismo do ódio.

Que é a fome, a nudez, a miséria ou a enfermidade para ele em comparação com o pecado ou a heresia?

O que voluntariamente assume até o heroísmo não pode atinar que imposto pela natureza constitua peso para os demais...

E seu sadismo chega a ponto de não compreender que o sofrimento cause sofrimento aos outros, ao invés de delicia-los.

O asceta não pode encarar todos os demais homens ou todos os cristãos senão como ascetas e amantes do sofrimento. Não pode compreender como alguém possa fugir a determinadas situações de sofrimentos, mesmo quando lhe é dado ler no livro santo: Assim fugi de cidade em cidade...

Para ele furtar-se ao sofrimento já é, em si mesmo, um gravíssimo pecado.

O sofrimento deve ser amado e buscado com sofreguidão...

E este homem jamais busca ou buscará remover os sofrimentos do mundo ou transformar este mundo num lugar melhor.

A simples ideia ou pensamento de que o ato gerativo comporte certa medida de deleite ou prazer a que chamamos orgasmo transtorna a mente deste homem devoto.

E ele não pode encarar a sexualidade humana como algo natural ou decente.

Tanto os sentidos quanto o corpo físico se lhe apresentam como obstáculos reais a salvação. Sendo mais aconselhável e seguro nega-los. Pelo que chegamos ao maniqueismo ou ao puritanismo... Ideologias segundo as quais a dimensão sexual do ser humano é sempre suspeita ou menosprezada.

O asceta rebela-se contra tudo quanto seja humano e vital; assim contra a alimentação, a comida, a bebida; mas sobretudo quanto o orgasmo. Aquelas devem ser limitadas ao mínimo possível e este negado... O que só é exequível caso o corpo seja torturado ou sofra.

É necessário torturar o próprio corpo por meio de exercícios ascéticos tendo em vista mante-lo submisso e até onde é possível alheio as necessidades mais básicas, como comida, bebida e orgasmo.

Evidentemente que todo este esforço colossal fazem deste homem um neurótico e infeliz. Triunfa de suas necessidades básicas mas a que preço? A que custo? Ficando sua mente destroçada e sua personalidade destruída.

Eis porque a simples visão da felicidade alheia basta para exaspera-lo.

Este homem morigerado cuja carne de aço e o coração de pedra sente-se vivamente incomodado pela contemplação daqueles que vivem segundo a natureza, demandando alegria e contentamento.

Este homem heroico e atilado não pode suportar a simples ideia de que hajam pessoas de bem com esta vida...

Quer que todos sofram, voluntariamente, ou...

E tem disposição, céus eternos, não a torna-las felizes, mas a faze-las sofrer como ele mesmo sofre. Sem compreender - Ele jamais compreenderá isto - que o sofrimento só possuí algum valor quando livremente assumido, jamais quando imposto pela natureza ou por qualquer outra situação.

Coisa monstruosa e tremenda; o asceta fazendo a volta do parafuso, chega a acalentar um sentido ou sentimento visceralmente anti cristão e anti humano.

O ascetismo desvinculado do amor não poucas vezes assume caráter de puro sadismo. Perde o foco e degenera...

Daí os Torquemadas e Calvinos sempre dispostos a queimar pessoas (!!!) tendo em vista seus pecadilhos sexuais.

Perceba o leitor que eles acreditam ser lícito torturar e cometer assassinato com o objetivo de penalizar os pecados da carne...

E no entanto, a própria lei divina, classifica o assassinato como constituindo o pecado mais grave. Então como é possível punir um pecado mais leve por meio de um pecado mais grave???

Apelando a devassidão alheia eles justificam o supremo pecado, do morticínio. E violam sem maiores cerimônias a lei que julgam honrar...

Evidentemente que eles consideram os pecados sexuais mais graves do que o pecado contra a vida ou o assassinato...

E no entanto, quanta miséria, até mesmo a lei carnal dos antigos judeus condena em primeiro lugar o assassinato.

Curiosa a mentalidade da profanação. Homem algum jamais pretendeu honrar a Deus por meio de seus 'pecadilhos' sexuais, os ascetas e juízes no entanto, acreditam ser possível honrar aquele que decretou: 'Não mataras' matando em seu nome...

É a propósito de tudo isto que vem Svidrigailoff. 
Raskolnikoff e Dounia dedicam-lhe o mais vivo horror pelo simples fato de ser femeeiro ou promíscuo; buscando enredar as mocinhas indefesas em seu laço e desgraça-las.

Acusaram-no de ter assassinado Marfa Petrovna. Sem que no entanto haja qualquer prova neste sentido.

Alias tendo-se endividado e ameaçado pelo credor, foi, por assim dizer 'comprado' por Marfa Petrovna. A qual certamente jamais viera a amar.

Alias a própria Marfa sabendo-se mais velha e conhecendo os ardores do moço, autorizara-o a andar com as camponesas. As quais certamente não podia encarar como ameaçadoras... e a cuja honra ligava muito pouca dignidade.

O homem é isto, devasso, luxurioso, promiscuo, mas... de modo algum hipócrita. Alias é o primeiro a denunciar-se. Não tem a si mesmo em conta demasiado elevada. Sabe que leva vida escandalosa e assume esta vida ao invés de oculta-la, Viciado e vicioso o homem não tenta justificar-se.

Por fim este homem vem a travar conhecimento com a 'virtude', representada por Dounia. A qual além de chama-lo a correção mostra-se intransigente face a suas insinuações e propostas.

Tal a virtude é bela e sedutora. Vindo este homem devasso e promíscuo a amar a irmã de Raskolnikoff. Dirá o leitor que é amor de interesse ou paixão, fogo de palha ou qualquer coisa parecida. Já o veremos...

O fato é que a professorinha provinciana não sai de sua cabeça.

E viúvo parte em seu encalço com destino a S Petersburgo.

Agora que pretende este homem devasso?

Uma aventura, uma noite de amor, um caso, mais um orgasmo ou qualquer outra coisa?

Haverá um sentido de vida nisto aqui? Sim, pois este homem encarado com horror por Dounia e Raskolnikoff é devasso declarado.

Pode portanto haver ou surgir algo de bom em seu coração?

A pergunta é pertinente porque segundo o tribunal dos maniqueus e puritanos este homem é réu do pecado mais abominável e sujo que se pode conceber, a ponto de nada existir de bom ou digno nele.

Veja o caso já citado de Sonia. Basta que tenha vendido seu corpo ou se prostituído para ficar sendo uma perdida, imunda, suja e indigna... A ponto de pessoa alguma, além do 'afetado' Raskolnikoff enxergar algo de bom nela.

Os demais oprimem seus empregados, praticam agiotagem, mentem, convivem lado a lado com a mais extrema miséria, seviciam animais... Sem que apesar disto inspirem repugnância aos bons Cristãos... Como inda hoje a miséria, a fome, a guerra, a injustiça e outros pecados são encarados com suma complacência ou seja como coisa trivial ou comum.

Apenas os 'pecados' sexuais despertam indignação nas pessoas...

É todo um sentido maniqueista ou puritano socialmente compartilhado.

Tudo é permitido exceto os pecados do sexo.

Pelo que Svidrigaliloff fica sendo um pária ou um verme isento de qualquer qualidade ou virtude. Aos olhos do tempo converte-se em alguém essencialmente mau...

E no entanto podendo ter estuprado Dunia este execrável homem permite que a moça se vá embora e escape a suas mãos.

É, como dizem, um devasso, homem desprezível, vil, torpe e hediondo. E no entanto, ao tornar-se consciente de que não era correspondido por aquela que viera a amar e não ousando viola-la, ao invés de ir buscar consolo noutros braços ou num copo de vodka, este homem, esmagado pela desilusão amorosa, põem fim a vida estourando os miolos!

Eis o drama! Este homem, considerado torpe e pervertido, após abster-se de estuprar e bem podendo afogar as magoas num copo de vinho ou nos braços de uma prostituta opta por sair da vida pela porta dos fundos.

É o quanto nos basta para divisar algo de bom nas entranhas de sua alma.

Afinal quantos homens honestos, virtuosos, controlados, morigerados, etc não teriam violado a pobre moça ou qualquer outra por simples crueldade ou vaidade após um saque feito a cidade após uma guerra? Acaso todo os estupradores que se aproveitaram dos saques e guerras no passado eram promíscuos ou devassos??? Temo que não... Há muita maldade oculta por trás da boa aparência, como também há bondade oculta por trás da maldade atribuída pelas homens!

Direi mais e irei ainda mais além.

Quantos homens virtuosos, morigerados e ascéticos tem se mostrado insensíveis face aos clamores dos órfãos, do estrangeiro e da viúva? Mostrando-se incapazes para exercer mínimo ato de caridade, como oferecer um copo d água ou uma códea de pão a quem tenha sede ou fome???

Quantos desses 'santos' segundo as aparências ou desses heróis aplaudidos pelo mundo tem se mostrado insensíveis face aos apelos do Mestre: Tive fome e me destes de comer, tive sede...????

Quantos destes respeitáveis varões não tem sabido ou tem se recusado a servir e amar?

O odiado Svidrigailoff no entanto - Homem corrupto, asqueroso, devasso e pervertido devido a sua incontinência sexual - lega milhares de rublos a três miseráveis órfãos (Os quais do contrário estariam condenados a vegetar pelas ruas da grande cidade), a sua irmã e tutora - Prostituta - e mesmo a seu desafeto Raskolnikoff. Até a um quase inimigo ou inimigo, soube este homem, dissoluto fazer bem.

Dirá o leitor benevolente que não foi por amor as crianças que o homem realizou a citada dotação, e que esperava obter alguma vantagem ou benefício em troca. Mas que vantagem ou benefício poderia obter 'a posteriori' se tinha em mira por fim a própria vida??? Direis que Svidrigailoff teve em mira obter uma boa reputação para sua memória! E no entanto não me parece que tenha feito alarde em torno da dotação concedida...

Muito há que se pensar sobre a referida personagem.

A primeira imagem que me vem a cabeça é a desses beberrões, comilões e devassos sempre disponíveis a identificar-se com o outro e a favorece-lo. A do 'pecador', como dizem, sensível... Em oposição ao 'santo' ou virtuoso insensível, indisponível e que não aprendeu a amar e servir; quando não chega mesmo a ser desumano e cruel, odiando e cometendo crimes em nome de Cristo.

Pensei naqueles que afetam ortodoxia e ascetismo ou heroísmo; sem no entanto chegar a imitação de Cristo... e convivendo, muito folgadamente com a fome, a sede, a nudez, a miséria, a ignorância, a injustiça, etc E naqueles que mostrando certa fraqueza pessoal, assimilaram, a luz do Evangelho a sensibilidade do espírito de Cristo, sabendo-se obrigados a socorrer os desamparados pela sorte e a mitigar seus sofrimentos.

Assim o doutor da lei e levita que passam a largo do homem ferido a beira do caminho e o samaritano - Odiado, proscrito, vicioso... - bondoso, que soube identificar-se com o outro...

Buscando dito ou citação com que arrematar esta reflexão, topei com este:

"Porque a caridade apaga a multidão dos pecados."







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