segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Riqueza, conforto e miséria; luxo, sobriedade (temperança) e ascese.

Também este artigo tem em vista distinguir certos estados ou regimes de vida que o vulgo tende a confundir. Implica definir cada coisa com exatidão, fixar os limites e apontar as diferenças. O que tende a facilitar o diálogo e o esclarecimento.

Por riqueza definimos o acumulo exagerado de bens. O rico possuindo além do que é necessário tendo em vista a sobrevivência e dignidade detém o supérfluo.

Por conforto definimos o uso moderado dos bens. O confortável contenta-se em reter para si apenas o que é necessário a sobrevivência e a dignidade, abrindo mão do que é supérfluo.

Por miséria definimos a carência do quanto seja necessário a sobrevivência e a dignidade.

O supérfluo pode ser igualmente relacionado com o luxo ou a suntuosidade. O conforto com a sobriedade ou a temperança e a miséria ou a ascese.

Importa não confundir sobriedade ou temperança com ascese.

Sócrates, Jesus, Buda e Confúcio; sem condenar a ascese, não foram ascetas e jamais recomendaram ascese mas a sobriedade. A respeito de Sócrates contamos com o testemunho de Ésquines de Aesfeatum, o qual no "Telauges" apresenta o Filósofo a reprovar tanto os excessos de ascetismo de Telauges quanto a vã ostentação ou luxo de Critóbulo filho de Criton e argumentando a favor da vida sóbria ou moderada.

Antes porém recordemos o que cada um destes grandes mestres ensinou a respeito da riqueza, da fortuna, do acúmulo irrestrito de bens, do supérfluo, do luxo, da suntuosidade...

Sócrates num de seus diálogos transmitidos por Xenofonte (Memorabilia) refere que "Sabes assim que o ouro e a prata não tornam os homens melhores do que são, ao passo que as sentenças dos sábios tornam mesmo o pobre rico em virtude." já Platão memora o passeio de Sócrates pelo Mercado de Atenas e seus comentários sobre as inutilidades ali dispostas... e noutro passo declarou que a única utilidade das riquezas era a possibilidade de serem divididas com os amigos possibilitando o convívio ameno entre os amantes da virtude.

Quanto a Jesus foi ainda mais insidioso a ponto de declarar que era impossível cultuar a Deus e as riquezas, de fechar os ricos as portas do reino celestial e de aconselhar seus seguidores a juntarem tesouros imateriais ou espirituais no mundo celestial e não coisas materiais destinadas a corrupção.

Paulo, aqui fiel interprete seu, conjecturou com propriedade que a raiz de todos os males humanos estava no amor ao dinheiro, no desejo pelo lucro, na cupidez ou na avareza. Que a igreja antiga classificou como um dos grandes pecados.

A respeito de Sidarta Gautama conhecido também por Çakia Muni, Buda ou Tatagata é sabido que tendo nascido filho de Régulo (Sudodana era o nome de seu pai) imensamente rico, abriu mão de todas as riquezas para viver moderadamente e que impôs voto de sobriedade aos membros da sanga.

Os budistas de modo algum - e isto vale para os Católicos - fazem apologia da MISÉRIA ou da POBREZA, mas do contentamento ou contenção dos desejos, o que podemos traduzir sem medo de errar por conforto ou sobriedade.

Importa saber que ele também condenou tacitamente o acumulo ilimitado e o apego aos bens materiais.

Ele considera o monge ou o laico que se contenta com o necessário para viver dignamente como um pássaro que voa e toma a direção que deseja, sendo por isso mesmo livre.

Faz recordar Sócrates quando declarou que o homem apegado as riquezas ou escravizado pelos apetites sensoriais era inferior a um escravo porquanto escravo dos apetites, dos desejos ou do corpo. Para Sócrates era livre apenas aquele que fosse capaz de controlar seus apetites e desejos.

Limitar-me-ei por tomar esta citação: "Uma é a senda que conduz as riquezas, outra a que conduz ao Nirvana." 

Outro não é o parecer do grande Mestre da China, Confúcio:

"O homem vulgar só cuida de comprar e vender." 

Nenhum deles mostrou-se simpático ao acumulo ilimitado de bens materiais, 'nuvem conquistada por meios injustos.' id Mas também não inclinaram-se para o ascetismo - Jesus, Buda e Confúcio sem condena-lo jamais abraçaram-no ou recomendaram-no a seus seguidores - enquanto busca pelo sofrimento ou por situações desconfortáveis.

Sócrates apenas parece ter recomendado uma dose mínima dele e por uma razão bastante compreensível, a frequência das guerras, o exemplo dado pela sociedade militar e ascética formada pelos espartanos - guerreiros invencíveis - e a decorrente necessidade de conte-los. Efetivamente o ascetismo afirma-se no tempo de Sócrates mais por via militar do que por via filosófica ou religiosa. O ascetismo foi até certo ponto sancionado por Sócrates devido a sua relação com a disciplina.

Posteriormente, durante as perseguições promovidas pelo Império romano, também a igreja Católica recomendou o ascetismo, por uma questão de funcionalidade. Posteriormente no entanto, graças a teoria herética do maniqueísmo, logrou o ascetismo fixar-se ontologicamente no seio da comunidade Cristã, embora o clero sempre tenha invocado razões funcionais ou de natureza prática com que justifica-lo.

Nem podemos fugir totalmente a tais razões caso concebamos os Bispos e padres como homens destinados a múltiplas e dificeis tarefas como: ministrar os sacramentos, sustentar o direito dos pobres, instruir os broncos, evangelizar os infiéis, dar exemplo de abnegação e virtude, etc Ora toda esta vida de dedicação e disponibilidade implica disciplina rigorosa, o que de algum modo nos conduz ao ascetismo ou a certa familiaridade com o desconforto, como diria Sócrates.

Cuidava Sócrates que uma certa medida de ascetismo ou de contato esporádico com o sofrimento, funcionava como uma espécie de vacina ou contraveneno predispondo o homem a enfrentar futuras situações de desconforto ou sofrimento com maior firmeza de alma. Daí a necessidade de eventualmente, o soldado, passar por uma experiência de sofrimento, como ainda hoje nossos jovens aspirantes realizam testes de sobrevivência.

As fileiras do clero Cristão ou das hierarquias Católicas tomaram por exemplo ou norma de vida, a disciplina do exército ou um regime espartano. Constituindo o exército espiritual de Cristo ou milícia Cristã. Daí a afirmação do ascetismo entre o clero e os religiosos, porquanto favorecia a disciplina ou a vida regular. Aos fiéis no entanto foi sempre permitido levar uma vida morigerada, sóbria, temperante, equilibrada ou mediana.

Não enriquecer no sentido contemporâneo ou acumular riquezas ilimitadamente, que isto sempre foi visto pelos elderes e doutores do passado como pecado de avareza ou materialismo. A antiguidade Cristã jamais abençoou ou sancionou o regime de vida contemporâneo cultivado pelos ocidentais. Como jamais fez apologia da miséria, mas da vida sóbria ou morigerada nos mesmíssimos termos que Buda, Confúcio, Sócrates, Epicuro, Bion, etc

Julgo que a confusão efetuada no período moderno, entra vida sóbria e ascetismo foi artificialmente criada e promovida com o intuito de batizar e crisma o que os antigos sempre classificara como avareza. A Cristianização de Mamon ou seja das riquezas fundamenta-se amiúde neste falso dualismo tecido em torno de dois extremos: o da riqueza e o da miséria. Inconsciente ou conscientemente houve sempre certo emprenho em eliminar uma possível terceira via construída em torno da sobriedade, vida média, caminho do meio, etc

A justificativa do materialismo economicista em termos Cristãos não pode apartar-se deste padrão de pensamento superficial e binário em torno do acumulo ilimitado ou da privação, e tem se mostrado sempre incapaz de postular uma posse limitada ou relacionada com a satisfação das necessidades pessoais/familiares.

Henry George no entanto demonstrou cabalmente que ainda aqui os extremos continuam a tocar-se e que do luxo procede a miséria, da riqueza a pobreza, do acumulo a falta, da suntuosidade a indigência... Diante disto só nos restar inclinar-se diante daquela sabedoria ancestral que recomendou a vida média, sóbria ou confortável face aos que vivem do supérfluo e aqueles aos quais é negado o necessário a manutenção da vida....

Nós no entanto nos acostumamos a viver entres extremos e aprendemos a tolerar tanto situações de esbanjamento, quanto situações de privação ou carência.

E assim nos fizemos traidores de Sócrates, de Jesus Cristo, de Buda, de Confúcio, os quais com os lábios reverenciamos mas que de modo algum estamos dispostos a imitar reformulando nosso modo de vida materialista, insensível e cruel.

Não sei em que o ascetismo nos transformaria nem posso sabe-lo. Mas sei que a avareza tornou-nos vulgares, grosseiros e cruéis; degeneramos porque inclinando nossos corações as riquezas perecíveis e ilusórias e acumulando ouro, prata, jóias, dolares, ações, etc não melhoramos em nada deixando de acumular as riquezas verdadeiras, imateriais e incorruptíveis, em termos de princípios e valores, méritos, hábitos saudáveis, conhecimento, instrução, educação...

Não sou partidário do ascetismo em termos essencialistas ou ontológicos, o que a meu ver não passa de maniqueísmo. Compreendo no entanto seu papel funcional em determinadas conjunturas sociais. O ascetismo é uma espécie de treino ou adestramento que produz determinados hábitos para a vida, como a disciplina ou a regularidade e mesmo a resistência a dor ou ao desconforto, o que em certas situações sociais é extremamente vantajoso.

A riqueza ou a suntuosidade, como apontou já Agostinho na 'Civita Dei', tende a tornar os homens escravos dos apetites, a amolecer os corpos, a indispor para o trabalho, a malquistar com o esforço e o sacrifício; isto em tempos em que as guerras e batalhas eram decididas mais por homens do que por máquinas. E nem preciso dizer quem é que em estado de guerra levaria vantagem... Segundo o já citado Agostinho, seguido por Ibn Khaldun quando um povo qualquer acumulava riquezas em excesso, olvidando por completo a vida sóbria ou ascética dos ancestrais, tornava-se mole e prestes a ser dominado por qualquer outro povo mais rude, grosseiro, sóbrio, resistente e valoroso.

Em termos de antiguidade e i Média tal explicação parece conter certa parcela de verdade.

Naqueles tempos belicosos o ascetismo agrade-nos ou não parecia contemplar uma função social.

Sócrates, Agostinho, Kaldhum e muitos outros parecem ter tido esta percepção.

Os sábios, como já dissemos, permaneceram equidistantes tanto do acumulo irrestrito de bens, quanto do ascetismo ou da miséria, amiúde fruto da opressão. Face a ambos os extremos recomendaram as massas o exercício da vida sóbria ou moderada, definida por Buda como caminho do meio.

Nós nos desviamos por outras sendas e caminhos.

Apenas não tivemos sinceridade suficiente para classificar Sócrates, Jesus, Buda ou Confúcio como tolos.


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