quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O PEC 99/2011 e a deslaicização do Estado Brasileiro

Folgam os protestantes em apresentar seu sistema religioso como paladino de todas as liberdades modernas e com isto, ao cabo dos séculos, tem atraído a simpatia dos liberais mais ingênuos.

Embora folguem de interpretar livremente a Bíblia, ou seja, de forjar suas próprias crenças tomando por base o entendimento que eles mesmos teem da Bíblia - o que de modo algum é a Bíblia - os protestantes jamais puderam encarar com bons olhos aqueles que fazendo uso da mesma liberdade, descartam a autoridade da Bíblia. Torce-la a vontade... massacra-la... deturpa-la... manipula-la... é perfeitamente lícito ou melhor absolutamente necessário! Arrenega-la não...

De minha parte, como ex protestante, penso que a Bíblia seja mais honrada por aqueles que a negam do que por aqueles que a interpretam assim tão livremente a ponto de ser possível sustentar qualquer coisa - escravidão, racismo, estatolatria, machismo, homofobia, adultismo, intolerância, capitalismo... - em seu nome. Se eu acreditasse na divindade da Bíblia jamais poderia crer que sua interpretação pudesse ser atribuída a todos os homens sem distinção!

Apresentam-se os protestantes como principais advogados ou defensores do livro justamente porque lhes dói a consciência e sabem ser seus piores adversários. É graças ao biblicismo estreito, ostentado por eles, que muita gente boa faz pouco caso do livro... Verdade seja dita: a igreja antiga tinha pudor! E sabia que a maior parte dos seres humanos tinha pudor ou inteligência... O protestantismo apostou na estupidez humana e por algum tempo conheceu relativo sucesso entre os idiotas. No entanto como é impossível enganar todos durante todo tempo... Arruinou-se o Reino da Bíblia.

A Igreja antiga, mais realista, ocultava certas partes menos nobres do antigo testamento, já 'facilitadas' pela tradução dos LXX. Os latinos jamais puderam compreender bem o sentido da Septuaginta. Apresentaram-na e apresentam-na ainda como tradução, quando trata-se na verdade duma adaptação, isto mesmo duma adaptação a mentalidade dos antigos gregos. Adaptação sem a qual os gregos jamais teriam se aproximado dos livros judaicos tendo em vista sua vulgaridade ou grosseria.

No entanto como em larga escala, mesmo esta adaptação mostrava-se insatisfatória, socorreram-se os primeiros padres Cristãos, a exemplo de Origênes, da exegese simbólica ou alegórica, que Filon, escolarca hebreu de Alexandria, tomara aos platônicos. Outra não é a estratégia empregada pelo Pe Jouffroy, face aos questionamentos de Pecuchet, nos 'Patetas iluminados' de Flaubert: Moisés abrindo os braços em cruz é figura de Jesus Crucificado, o cordeiro encontrado por Abraão entre os espinhos é figura de Jesus Crucificado e coroado de espinhos, Jacó ferido no lado pelo anjo é figura de Jesus ferido no lado pelo centurião... 

A tentativa, centrada no dogma Cristão, até que foi excelente e nobre. Apenas não condizia como o sentir original do autor, sendo portanto falsa... Era no entanto uma falsidade bela, em comparação com a realidade feia do sentido literal.

No entanto o que não podia 'adaptar' ou alegorizar, a igreja sabiamente ocultava... poupando seus fiéis.

Assim a espiritualidade romana ou 'Católica' pode passar a largo dos bebes lançados contra os rochedos, das ursas que devoraram os meninos, do sanduíche de esterco degustado pelo profeta, do tamanho dos pênis dos egipcios, etc

Diante de tantos mitos, fábulas e narrativas grotescos a igreja antiga preferia silenciar. Sabia que insistir a respeito redundaria em incredulidade. Nossos coevos sabem ser infinitamente mais idiotas do que os medievos... por menos nossos ancestrais teriam lançado o papado as urtigas; como a humanidade dia após dia vem lançando a Bíblia e o protestantismo.

O protestantismo foi intemperante na medida em que pretendeu impor aos cristãos a Bíblia toda, literalmente recebida, como dogma de fé. Antes de conhecerem a Bíblia toda de capa a capa os estúpidos acreditaram que o negócio era vantajoso e que seria melhor acreditar no livro 'caído do céu' do que nos trinta e poucos dogmas propostos pela tradição apostólica ou pelo papa romano.

Atalhou-lhes a candura da crítica Bíblia, a partir da qual puderam ter acesso a versão hebraica não depurada, e... desde então os que dignaram-se a pensar perderam a fé, enquanto que os demais - refugiados em alcouçes como a assembléia de deus ou pocilgas como a CCB - tiveram de acostumar-se a ser classificados como tontos ou imbecis!

Afinal, continuam jurando de pés juntos, em pleno século XXI, que um homem adulto pode viver por três dias dentro do ventre de um peixe! Que existem um mar superior acima dos céus! Que os anjos de deus desceram a este nosso mundo para coabitar com mulheres! Que de semelhante conúbio nasceram gigantes! Que o Everest foi coberto pelas águas do dilúvio! Que os dinossauros jamais existiram ou morreram afogados! Que uma jumenta foi capaz de falar! Que Goliath foi assassinado por três pessoas diferentes! Que os antigos israelitas ofereceram e não ofereceram sacrifícios da jau no deserto....

Creia cada qual como quiser e no que quiser... outra coisa é querer exigir que os outros encarem-no como um homem sério ou instruído.

Da caturrice protestante em torno de todos estes dogmas mil vezes mais toscos e estúpidos que os dogmas do papa, é que surgiu a incredulidade contemporânea.

Os protestantes no entanto jamais puderam perdoar os incrédulos ou aqueles que negaram-se a endossar os ensinamentos da Santa Bíblia.

E apesar do discurso oportunisticamente liberal, destinado a atrair os Católicos liberais ou os liberais de modo geral, jamais deixaram de acalentar o sonho puritano ou ortodoxo de 'propor' e sancionar leis Bíblicas ou destinadas a honorificar a Bíblia e a humilhar os laicos, isto é, os que não creem.

Todas as vezes que os papistas ou liberais mais atilados, lançaram-lhes este sinistro projeto em face, os pastores brasileiros juraram pela mesma Bíblia que tudo não passava de calúnia, fruto da maldade, e que eles, protestantes, eram os mais fiéis partidários das liberdades democráticas E OS MAIS SINCEROS PALADINOS DO LAICISMO!!!

Passados uns cinquenta anos no entanto, damos com o PEC 99/2011, destinado a POR A FÉ em pé de igualdade com o conhecimento natural ou científico e a BÍBLIA no mesmo nível que a Constituição.

Se bem que cada república conheça uma só lei e que o fundamento desta lei deva ser sempre natural para ser laico!

A bancada protestante ou evangélica no entanto cuida por outro fundamento e um fundamento particular: a Bíblia...

E sabemos por lição de História onde tais iniciativas costumam dar...

Não se trata aqui de PERMITIR que os religiosos vivam a sua moda ou maneira, PELO SIMPLES FATO DE QUE JAMAIS FORAM IMPEDIDOS DE ASSIM VIVER POR FORÇA DE NOSSAS LEIS.

A lei brasileira, ao contrário das leis Mosaica e Maometana ou seja da Torá e do Corão, jamais pretendeu proibir alguém de repousar no sábado, de peregrinar a Meca, de evocar os espíritos dos ancestrais, de cultuar representações... ou tencionou constranger alguém a consumir carne de porco, beber sangue, trajar determinado tipo de roupa, ouvir jazz, casar com pessoas do mesmo sexo, abortar, etc A lei não interfere no que diz respeito a vontade pessoal dos cidadãos. É liberal e daí sua grandeza!

Esta lei a todos reconhece o direito de viverem como bem entenderem e de regular suas vidas por meio de seus livros sagrados, desde que abstenham-se de causar dano ou prejuízo aos semelhantes.

Que desejam então nossos fundamentalistas uma vez que nossas leis reconhecem-lhes o direito de viverem como bem entendem???

Como já controlam o Congresso, mas não o STF, e estão dispostos a tentar passar LEIS retiradas de sua Bíblia, precisam passar a PEC 99/2011. Do contrário todas as leis fundamentadas na Bíblia serão declaradas CONFESSIONAIS, anti democráticas, anti constitucionais e invalidades pelos juízes do STF. Daí a necessidade da bancada fundamentalista esmagar o STF. Enquanto o STF deter a primazia, toda e qualquer lei fundamentada na Bíblia, estará sob ameaça.

Considere agora caro leitor que o objetivo da lei num país democrático não é regular o privado, intervindo na vida pessoal do cidadão e cerceando sua liberdade. Mas ampliar ao máximo a liberdade NA ESFERA DO POLÍTICO OU DAS COISAS COMUNS. Trata-se aqui de criar e atribuir direitos naturais e não de imiscuir-se nos domínios da vida privada.

Agora justamente porque a lei diz respeito a esfera da Política ou das coisas comuns é que deve partir de fundamentos NATURAIS tais como demandas sociais, experiencialidade, razão, etc JAMAIS DE FONTES RELIGIOSAS OU LIVROS SAGRADOS. Sob pena de ser sobrenatural e religiosa, chocando-se com o caráter PLURALISTA, democrático ou LAICO DO ESTADO. Não pode a lei tomar por base determinado registro sagrado pelo simples fato de que a sociedade é composta por elementos ou cidadãos de diversas crenças ou fé, cada qual com seu livro sagrado e os mesmos direitos.

Não compete ao estado ou a esfera do político emitir juízo sobre determinado livro religioso concedendo-lhe um status privilegiado. Nada mais oposto ao caráter laico do estado, face ao qual todas as religiões e crentes são absolutamente iguais.

No entanto o esforço da bancada protestante consiste justamente em arvorar a Bíblia ou o livro, como fonte válida no sentido de pautar nossas leis e regular as vidas de todos os cidadãos. Eles até creem que a Bíblia seja em todos os sentidos superior a nossa Constituição e que nossa Constituição deva ser substituída pela Bíblia deles. Nutrem tais pretensões mesmo constituindo minoria religiosa... imaginem só caso viessem a constituir maioria? Agora no plano político estão bem articulados em torno deste proposito.

Agora que significa propor leis inspiradas ou pautadas na Bíblia?

Significa tomar por padrão social a sociedade proto israelítica do século IX a C restringindo ao máximo todas as liberdades, garantias e direitos dos cidadãos e implementando uma série de preconceitos monstruosos.

Implica querer regular ou controlar a vida dos outros ou de todos a partir de sua própria fé ou pontos de vista. Todos deveremos conformar externamente nossas vidas com o antigo testamento ou a torá de Moisés, crendo ou não nela! Nada mais sujo, arrogante e opressor! Devemos respeitar a Bíblia mesmo sem crer nela porque eles assim exigem, querem e determinam. Entendeu???

Por meio do PEC 99 2011 os protestantes estão exigindo a submissão ou a capitulação da sociedade laica apenas de modo mais sutil que os muçulmanos com sua sharia, e alias, abrindo esta senda para os futuros radicais islâmicos deste país ou facilitando as coisas para eles!
Observemos o que diz o relator deste capicioso projeto: "O STF expressa um preconceito contra argumentos de ordem religiosa dando preferência a argumentos científicos."

Qual o significado disto?

Que o SFT deveria apreciar os argumentos de NATUREZA SOBRENATURAL, CREDAL ou RELIGIOSA com a mesma seriedade que encara os argumentos DE NATUREZA NATURAL ou CIENTÍFICOS, NO QUE CONCERNE A FORMULAÇÃO DAS LEIS. Sim, pois não estamos tratando da ordenação da vida privada mas da coisa pública ou de nossas leis.

As leis no entanto como são feitas para todos devem estar por questão de necessidade fundamentadas na esfera COMUM da NATUREZA, e não da esfera PRIVADA ou PESSOAL da SOBRENATUREZA.

A ciência satisfaz plenamente esta questão na medida em que não é uma religião ou uma fé fundamentada na  autoridade de um livro ou dum homem, mas uma ideologia fundamentada nas capacidades da percepção e do raciocínio, as quais são comuns a todos os seres humanos: ATEUS, CRENTES, MUÇULMANOS, ESPÍRITAS, BUDISTAS, PROTESTANTES, CATÓLICOS, HINDUS, ETC

De fato este tipo ou gênero de conhecimento faz sentido para pessoas pertencentes a credos e ideologias bem distintos uns dos outros. Apenas certo número de muçulmanos e protestantes fanáticos, tendo em vista suas opiniões caprichosas, é que negam-se a reconhecer o espaço próprio da ciência e aspiram por impor suas concepções disparatas a todos os demais seres humanos! Isto no entanto já não é questão de mera estupidez mas de arrogância e dominação.

Não é porque meia dúzia de idiotas tomam a Bíblia ou o Corão por critério científico, que seremos obrigados a concordar com eles e SUBSTITUIR O PADRÃO COMUM DA CIÊNCIA POR SEUS QUERIDOS LIVRINHOS TENDO EM VISTA A FORMULAÇÃO DE NOSSAS LEIS.

As leis deduzidas da ciência, da experiencialidade e da razão apenas é que satisfazem o quesito democrático da neutralidade religiosa. Neste sentido o objetivo da PEC 99 2011 é justamente introduzir o primado da Bíblia, profanando o equilíbrio religioso, promovendo a intriga, sabotando a paz... Uma vez que cada religião pretenderá usar seus livros com o intuito de erigir novas e estranhas leis! A menos que o MONOPÓLIO POLÍTICO SEJA CONCEDIDO A BÍBLIA PROTESTANTE... e que os demais cidadãos deste país curvem-se face a tais exigências...

Até o dia em que os protestantes, como já fizeram no século XVI, façam decretar leis iconoclásticas e demolir as igrejas romanas, anglicanas, ortodoxas, as tendas de umbanda, os templos budistas, hindus, etc

É necessário examinar o passado, pensar no futuro e opor-se decididamente a projetos como o 99 2011, cujo extremo fim serão novos autos de fé, inquisições, violações de direitos, etc

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