quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O tabu do totem - Uma resposta a S Freud VII > O selvagem, a criança, o neurótico e o voluntarismo

Tendo nos seis artigos precedentes buscado apontar os pontos fracos e portanto discutíveis da obra freudiana 'Totem e tabu' somos levados, por uma questão de justiça, a apontar seus pontos positivos ou melhor seu ponto mais positivo, o qual a nosso ver diz respeito a identidade - Neurótico/primitivo ou selvagem e seu viés idealista/ voluntarista.

"Não nos devemos surpreender ao constatar que o homem primitivo transfere para o mundo exterior a estrutura de sua própria psique." p 122


"Assim a magia revela a intenção de impor aos objetos da realidade exterior as leis da vida psíquica." id ibd
Ao invés de adequar-se a realidade externa e objetiva do mundo, o homem primitivo, sempre que que se acha em conflito com ela, acredita poder altera-la ou controla-la por meio de determinados procedimentos técnicos a que chamamos magia. E, numa fase subsequente através do que chamamos feitiçaria. De um modo ou de outro ele se recusa a adaptar-se, evitando assim a frustração.

Esse homem acredita poder controlar os fenômenos naturais existentes ao redor de si, e nem por isso é considerado demente, louco ou desajustado pelo simples fato de que esta perfeitamente ajustado a cultura de seu grupo, que é uma cultura magico fetichista. Não se torna neurótico este homem, como o homem contemporâneo, pelo simples fato de que seu voluntarismo é coletivamente partilhado. Socialmente integrado ele não põem em dúvida os recursos de que dispõem, e destarte não surta... pois crê, pois tem esperança, pois esta fora da realidade.

É como se a fantasia partilhada ou a neurose partilhada e socialmente sancionada pelo grupo social adquirisse o 'status' de realidade.

Outra não é a condição do nosso neurótico, o qual, apesar do quanto foi constatado por nossa civilização 'científica' em termos de causalidade natural, continua a relacionar suas próprias ações com determinados acontecimentos felizes ou infelizes. Assim há quem chegue a conclusão de que se deixar de lavar as mãos de duas em duas horas fará com que sua mãe morra, como há quem creia que pronunciando determinada palavra ou fazendo tal gesto é capaz de provocar uma acidente e vitimar seu próprio filho... decorrendo de tais crenças a repetição de tal ato ou a iniciativa de evita-lo a qualquer custo e, consequentemente certo grau de desajuste pelo simples fato de que tais crenças não são socialmente partilhadas ou comuns a todos os membros do grupo.

Ao contrário do primitivo, o neurótico - ao menos a nível de consciência - sabe que suas crenças são absurdas, e que esta em oposição face a realidade externa e objetiva do mundo, o que torna sua situação ainda mais desagradável ou aflitiva. Seja como for ele não tem coragem suficiente para desafiar o absurdo... Nosso neurótico sabe estar em oposição ao grupo.

Tanto o selvagem quanto o neurótico estabelecem falsos vínculos entre a realidade externa do mundo e a vontade. Supondo que a realidade externa do mundo deva ceder aos imperativos da vontade.

Aqui a função de gerenciar a vontade ou de administrar sua fruição face aos imperativos da realidade externa não é desempenhada como deveria pelo Ego, de modo que a fantasia cobra elevado tributo...

Passemos agora ao terceiro elemento do triângulo voluntarista.

Por terceiro elemento ou terceira ponta deste triângulo queremos designar a criança. Levi Strauss foi quem chamou atenção para a similaridade existente entre o pensamento selvagem e o pensamento infantil. A dar por exatas as comparações feitas por Freud e Levi Strauss temos de concluir pela similitude entre o comportamento da criança e o comportamento do neurótico. Afinal de contas se A = B e B = C > C = A.

Freud por sinal, levando bastante a sério a 'filosofia ' alemã, tomou o Id por fonte do Ego, o qual desprende-se dele na medida em que ele, percebendo o mundo externo, percebe-se como algo distinto. A vontade ou o querer precede a consciência de si, e consequentemente qualquer tentativa de mediação. A princípio este homem é vontade pura ou melhor trieb - pulsão.

Sem endossar por completo as teses do psicanalista 'vienense' (sic) aqueles que estudaram o fenômeno da cognitividade humana Wallon, Piaget, Winnicot, etc concluíram que a consciência da criança é construída por 'exclusão' na medida em que ela entra em contato com o mundo externo. Por outro lado o padrão de pensamento lógico ou racional, bem como a formação de um construto ético ou moral, só são atingidos pouco depois da puberdade, após um processo tão lento quanto complexo, resultando disto uma situação de 'crise'. Afinal a percepção de uma realidade irredutível a fantasia jamais poderia deixar de ser dolorosa. A criança acalentou sonhos, o adolescente que não seja criado como Buda, conhecerá decepções...

A criança no entanto, segundo sua vontade, da largas a imaginação... Imagina e é levada a imaginar - por via da cultura - uma série de entidades fantasiosas, quais sejam deuses, demônios, heróis, duendes, anjos, fadas, trols, gnomos, monstros, etc aos quais atribui existência real, crendo inclusive que possam atuar neste mundo e produzir os fenômenos que sabemos ser puramente naturais. Para ela nada é mais natural do que o milagre e a realidade uma sucessão de maravilhas. Apenas graças a intervenção dos adultos mais esclarecidos e sobretudo da educação científica e a reflexão filosófica é que ela vai superando este padrão infantil e compreendendo a realidade tal e qual é, ou seja, como algo fora do alcance da imaginação i é como algo incontrolável.

É a fase do papai Noel, do coelhinho da páscoa, da cegonha e de tantas outras quimeras alimentadas pelos adultos inconsequentes. Afinal se a fantasia não deve ser reprimida, tampouco deveria ser alimentada. Apenas encarada com naturalidade e segundo as oportunidades problematizada... Afinal a criança continuara a imaginar outros tantos seres e a relacionar-se com eles, até atingir a fase racional... Assim imaginar faz parte do curso da vida e a criança imaginará, e imaginando reformulará o mundo e criará seu mundo. Não, não podemos adiantar as coisas ou queimar uma fase... seria danoso, quiçá em termos de afetividade. Daí a importância das fábulas com a dimensão ética do 'moral da estória'.

A passagem do padrão voluntarista para o padrão racional deve processar-se da maneira mais simples possível, afinal, como já foi dito implicará sempre numa crise. Aqui reprimir, e adiantar equivaleria exasperar, magoar, frustrar. Concedamos que nossas crianças atinjam a maturidade natural e suavemente, limitando-nos a orienta-las com carinho e compreendendo seu tempo e seu mundo. Assim a fantasia se esgotará... Já quem não pode ser criança a seu tempo tenderá a se-lo por toda vida...

Temos aqui que o neurótico, a criança e o selvagem são infensos a realidade externa e objetiva do mundo, a qual buscam controlar, fazendo com que prevaleça a vontade. Filosoficamente o selvagem, a criança e o neurótico são voluntaristas/idealistas. Sem que no entanto ousem revindicar o título de 'filósofos'. Já a Filosofia alemã é por assim dizer 'filosofia' de neuróticos, selvagens e crianças na medida em que questiona a existência deste mundo externo e objetivo que se opõem tão dramaticamente a nossa vontade e, mais ainda, na medida em que apresenta este mundo externo e objetivo como epifenômeno ou produto de nossa vontade (Fichte, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, Hartmann, etc)...Do mesmo modo como o racionalismo moderno, ignorando por completo a instância da vontade humana e dos sentimentos, tornou-se artificioso até o intelectualismo, o idealismo alemão - irmão gêmeo do romantismo - fez o caminho oposto. Resgatou assim a vontade, negando não apenas a capacidade do intelecto para deslindar o mundo externo, mas - como já assinalamos - a existência do próprio mundo externo, ora concebido como algo que 'é percebido' pelo homem ou como algo que esta em sua mente. Chegamos assim ao extremo do psicologismo e as fronteiras do relativismo, do subjetivismo e do solipsismo crasso; do idealismo enfim.

Resta-nos declarar, a contragosto até, que o pensamento contemporâneo, ou da moda - marcadamente irracionalista, senão emocionalista - acabou por nivelar-se a magia, a feitiçaria, a superstição, a fantasia, a imaginação, a selvageria, ao infantilismo... até precipitar-se nos abismos da neurose. É uma pseudo 'filosofia' neurótica e de neuróticos que recusam-se a reconhecer a realidade do mundo externo - com todas as suas mazelas - e a afronta-lo. Neste sentido é uma 'filosofia' tão cômoda, oportunista, frouxa e leviana quanto o ceticismo antigo; o qual por falta de padrão crítico, assumia o mundo como ele era, ficando com a realidade dada e negando o ideal... Como bem se vê, os extremos se tocam.

Importa assumir a realidade de um mundo 'ingrato' e buscar conhece-lo para poder tentar, em alguma medida, transforma-lo. É somente entrando na realidade do mundo que seremos capazes de muda-lo.

Cessemos pois de 'pensar' como selvagens, neuróticos ou crianças, crendo que a vontade 'por si só' alterará qualquer coisa e passemos a pensar como adultos ou como criaturas emotivas e racionais, as quais esperam - com esforço e dificuldade - conhecer um pouquinho e transformar algo, ou morrer tentando...






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