quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O tabu do totem - Uma resposta a S Freud IV (As fontes de 'Totem e tabu' Robertson Smith)

No artigo anterior procuramos demonstrar que Ch Darwin equivocou-se ao tomar a organização social vigente entre os gorilas como ponto de partida para os primeiros grupos humanos e que equivocando-se levou consigo Atkinson e finalmente o pai da psicanálise.

Sem maiores contemplações podemos dar por falsa a primeira premissa tomada por Freud a Atkinson e afirmar que o modelo mais próximo dos primeiros hominídeos foi certamente o modelo chimpanzé, modelo de uma sociedade promiscua e não patriarcal.

Analisemos agora, de passagem a segunda premissa de 'Totem e tabu' tomada a Robertson Smith. 

Como é de praxe principiemos dando a palavra ao próprio Freud:

"W Robertson Smith, expoẽm em sua obra sobre a 'Religião dos semitas', publicada cinco anos após sua morte, em 1899, a opinião de que uma cerimônia singular, a chamada 'refeição totêmica', formou, a princípio, parte integrante do sistema totêmico." p 173

"Expõem Robertson que o sacrifício sobre o altar constituía parte essencial do ritual DAS RELIGIÕES ANTIGAS." p 174


Chegando a este ponto fica difícil saber se Freud de fato leu, e se ao ler compreendeu ou se, falseou consciente ou inconscientemente a opinião do exegeta escocês cuja obra em questão, cujo próprio título dá a entender, havia limitado sua exposição aos povos semitas, i é aos aŕabes e aos hebreus, e estendido sua teoria aos povos circo mediterrânicos do segundo milênio a C, sem jamais ter esboçado a pretensão de estendê-la a aurora dos tempos enquanto fundamento de praticamente todas as culturas. Se há uma cousa bastante clara na obra de Smith é o cuidado com que balizou o tempo e o espaço. Freud ao estender a opinião do autor, sem quaisquer evidências concretas por sinal, a História primitiva, acabou deturpando-o.

O pai da psicanálise certamente tinha o direito conferir a hipótese do escocês uma abrangência maior, sem no entanto atribuí-la a ele, fazendo dizê-lo o que jamais pretendeu dizer. Atribuir sua própria constatação ou conclusão ao outro implica desonestidade.

E Freud tem plena consciência a respeito do que fez. Ouça-mo-lo:

"Robertson Smith esta muito distante quanto a nossa opinião a respeito do sacrifício corresponder ao grande evento da História primitiva da humanidade." p 197

De modo que a hipótese sobre o fundamento sacrifical e thiásico da religião primitiva deve ser creditava unicamente a Freud, o qual, ao contrário do exegeta escocês nada demonstrou em termos de concretude ou de evidências arqueológicas.

Foi sem sombra de dúvida a rivalidade existente entre pais e filhos em contexto específico que levou Freud a ver, gratuitamente, na base de toda religiosidade e de toda cultura o parricídio. Projetou assim, o complexo de Édipo, nos albores da História humana e o fruto dessa projeção arbitrária, de teor subjetivo é 'Totem e Tabu'. A distorção ou ampliação da teoria de Robertson Smith possibilitou que o professor judeu/alemão visse apenas o que desejava ou queria ver. Curioso Freud ter visto projeções por todos os lados, menos em suas teorias...

Teria Freud mais mérito caso relacionasse a teoria de Smith com a formação dos primeiros Thiasios ou banquetes comuns oferecidos por uma corporação ou pela cidade como um todo aos deuses oragos. Neste sentido sua análise poderia somar-se a de Fustel de Coulanges. O qual empresta imenso valor em termos sociais aos rituais e sacríficos fúnebres, atendo-se no entanto as instituições indo europeias ou caucasoides, e portanto balizando sua tese, embora com menos rigor e precisão do que o escocês.

Sintomático que Kroeber, em sua crítica, tenha registrado que a filiação dos povos sêmitas a um padrão de cultura totêmico não estava devidamente demonstrada, ao menos até 1920. Curiosamente Kroeber reproduziu aqui uma das conclusões publicadas por Frazer em 1910 (Vol IV de "Totemismo e exogamia"). "Não encontramos traços de totemismo nas antigas religiões semíticas... assim o totemismo se nos parece uma instituição peculiar a algumas das culturas mais primitivas da humanidade." p 14

O próprio F Boas, raramente citado por Freud, e por razões mais do que óbvias, também classificou a doutrina segundo a qual o totemismo corresponderia a uma fase comum a toda espécie humana em termos de cultura - na perspectiva de uma evolução linear (Bem a gosto de Freud) - como fantasiosa. Podemos ler toda esta crítica na 'Sociedade primitiva' de R Lowie, editada precisamente em 1920.

Um dos chavões prediletos de Freud  quanto as culturas primitivas consiste em dizer que para eles a família não é nada ou que praticamente inexiste. Mais uma vez Malinowski, orientado por Westermarck, demonstra a existência da família entre os aborígenes africanos, apontados pelo próprio Freud como constituindo o modelo mais primitivo de Sociedade observável em nossos dias (The family among the australian aborigenes). Esta publicação, a primeira de Malinowski em inglês, data de 1913, um ano após a publicação de 'Totem e tabu'.

Lamentavelmente as publicações de um Malinowski, de um Westermarck, de um Kroeber ou mesmo de um Frans Boas jamais chegaram ao conhecimento do público em geral como as de Freud. "Freud elaborou a versão mais imaginativa do totemismo, a qual foi também a mais influente no mundo intelectual como um todo a longo prazo." diz Kuper 2008 (A reinvenção da Sociedade primtiva...) p 150 "A fama e influência destes dois livros - de Freud e Durkheim - veio a rivalizar e talvez até superar o 'Ramo de ouro' de Frazer." id ibd

Convém salientar que o próprio patriarca da antropologia Tylor (1899) após ter mantido silêncio por um bom tempo, ousou declarar que "O totemismo havia sido exagerado desproporcionalmente quanto a sua relevância religiosa. A importância dos animais totens enquanto amigos ou inimigos do homem é insignificante se comparada com a dos espíritos ou demônios, para não falarmos nas divindades superiores.""O totemismo não passa de um fenômeno 'sui generis' ou mesmo de um caso particular, dentro do quadro geral de relações entre o homem e os elementos do mundo natural.". Eis a conclusão a que chegou Firth p 398

Outro aspecto tendencioso de Totem e tabu diz respeito a relação 'essencial' entre totem e exogamia. Quando sabemos que a exogamia é um entre inúmeros tabus. A Kroeber. Aparentemente a relação teria sido tomada por Freud a Frazer (Tometismo e exogamia 1910), a Durkheim (cf "A proibição do incesto e suas origens" 1898) ou ao inglês Rivers, quando já se acha inclusa na definição de Mac Lennan (1869) - "Totemismo é fetichismo mais exogamia e filiação matrilinear." Levy Strauss p 26. Curioso que Freud tenha passado a largo das conclusões a que Frazer chega no volume quarto de sua obra ao reconhecer que havia uma "Distinção radical entre totemismo e exogamia." p 10. O já citado Tylor havia registrado: "Exogamia pode existir e existe sem totemismo e tudo quanto sabemos é que foi originalmente independente dele... a combinação existem em 3/4 das culturas examinadas." Remarks on tomemism ps 144 e 148 Boas declara que a exogamia é anterior ao totemismo, sem pretender no entanto que este seja resultado daquela, como faz observar Levy Strauss - Fondo de Cultura, esp. 1965. Introdução p 24
Claro que estes 3/4 de Tylor bastam para lançar por terra uma teoria que exige identificação absoluta.

Meio século após Goldenweiser ter publicado sua obra (1960), Levy Strauss repassando toda bibliografia e todo problema, assim se exprimiu quando ao Totem e ao totemismo: "O suposto totemismo tem se mostrado irredutível a qualquer esforço de definição em termos absolutos." Levy Strauss - Introdução p 15. Paradoxalmente Freud embarcara numa canoa que havia sido por assim dizer furada por Goldenweiser dois anos antes. E acreditava que a psicanálise, descoberta por si, seria capaz de tapar este furo, fazendo pelo 'totem' ou elo totemismo o que a antropologia ou a etnologia não haviam podido fazer. Paradoxalmente o próprio Rivers fora obrigado a admitir que era impossível formular uma definição satisfatória para totemismo. id p 20

Apenas para terminar é igualmente falacioso o dogma segundo o qual o animal totêmico fosse sempre cultuado pelo grupo ou que apenas pudesse ser morto por ocasião do banquete festivo comunal. Vou citar a título de exemplo o povo Ojbiwa dos quais tomamos a expressão 'otetaman' i é 'Aquele que pertence a minha parentela.' Strauss p 33. Ora, os ojbiwa não creem ser descendentes do animal totêmico e tampouco fazem dele objeto de culto, a exemplo dos aborígenes do interior da Austrália, a saber, os mais primitivos segundo Freud e seus mentores. Por fim "Ao totem se dava a morte e se comia com toda liberdade... e eles afirmavam inclusive que um animal se oferecia com a melhor boa vontade as flechas de um membro de seu clã." id, idbResta-nos finalizar esta exposição assinalando a desconstrução do conceito totemismo já pelo próprio Levy Strauss já por Raymond Firth, na esteira dos já citados Boas e Goldenweiser.








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