segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Repressão sexual, civilização, barbárie e sexualidade - Ensaios sobre Freud




Uma das abordagens mais interessantes de Freud diz respeito certamente a relação existente entre repressão ou limitação do prazer e Civilização ou cultura.

Conforme teoriza ele a criação da Sociedade Civilizada só foi possível a partir da limitação do prazer. Inclusive do prazer sexual, dentre outros. Não nos esqueçamos de que o próprio ócio é um prazer.

No entanto este mesmo homem também se via ameaçado pela decadência de seu próprio corpo que é a velhice, pela enfermidade, pela dor, pelos movimentos arbitrários da natureza e, o que é pior, pelo convívio com seus próprios semelhantes. De modo que as ocasiões de sofrimento não eram poucas.

Diante disto concebeu e implementou o ambicioso plano de alterar, até onde fosse possível, as forças da natureza, tendo em vista reduzir ao máximo as ocasiões acima elencadas. A partir daí foi que surgiu a técnica e posteriormente a ciência, as quais ao menos por um tempo tornaram sua vida mais amena.

O espaço em que a técnica surgiu e em que a vida tornou-se mais amena foi o espaço urbano das primeiras cidades. Com a expansão da vida urbana é assumido um ideal de civilização ou de desenvolvimento.

Tudo isto já o sabemos...

Há no entanto muita coisa de interessante nas entrelinhas a par de algumas possíveis deduções apressadas que poderiam ser feitas. É este aspecto embutido na teoria freudiana de Sociedade que queremos abordar.

A dar a limitação do prazer e a restrição da sexualidade por impulso em termos de civilização e as civilizações por mais ou menos desenvolvidas a primeira conclusão a ser sacada é que quanto mais notável é uma civilização tanto mais repressora é. A dar tal inferência por exata seriamos forçados a concluir que as civilizações egípcia e sumeriana, grega e romana, chinesa e indiana foram acentuadamente maniqueístas, puritanas e repressoras.

Ao que parece a hipótese do Dr Freud, em termos de uma repressão meramente funcional i é relacionada com a disciplina do trabalho. As civilizações ou melhor o esforço dispendido tendo em vista a elaboração delas, teve por consequência uma redução, relacionada ao menos com o montante de tempo gasto com a obtenção de certos prazeres sensíveis, dentre os quais o sexo. Caso aqueles homens primitivos tivessem optado por estar dormindo ou fazendo sexo durante a maior parte do tempo disponível por um lado o trabalho coletivo seria impossível de ser realizado e por outro chegariam ao esgotamento. O tempo teve de ser ordenado e a fruição do prazer, do lazer ou do ócio relegada a um determinado período. Além disto, na mesma medida em que o esforço fosse tanto mais intenso e o gasto de energia maior, a própria fruição do prazer devia ser restringida.

Houve uma restrição em termos de prazer, não todavia em termos absolutos, senão em termos relativos e funcionais. Nos períodos em que não estavam trabalhando e nas horas do dia em que não estavam trabalhando aqueles homens deviam ter livre acesso ao prazer. Outro aspecto tanto mais importante e digno de ser considerado é que a restrição dos prazeres em tais sociedades, as mais avançadas, deu-se prioritariamente em termos de quantidade, jamais ou quase nunca de qualidade ou forma. Necessário ressaltar este aspecto. Quero dizer que em nenhuma das civilizações acima apontadas topamos por exemplo com a condenação de alguma forma de fruição sexual em si mesma. Assim a prostituição, assim a masturbação, assim a homoafetividade... jamais chegaram a ser questionadas em si mesmas. Restrita quanto ao acesso em termos de tempo, a sexualidade chinesa, indiana, egípcia, sumeriana ou greco romana permanece aberta, indeterminada e rica quanto as formas.

Como não pretendo escrever uma História do sexo na antiguidade ou nas antigas civilizações, digo das mais desenvolvidas e, graças as escavações em Pompéia estamos bastante bem informados sobre a presença do sexo na vida dos antigos romanos, limitar-me-ei em abordar, de passagem apenas, a sexualidade no antigo Egito. Nada ali era tabu uma vez que Ramsés, o grande Faraó, contraiu matrimônio com sua própria filha Meritamon. De fato o sexo estava difuso em toda civilização Egípcia, a começar pelo universo religioso. Aton, o deus primordial, masturba-se com o objetivo de produzir os primeiros seres divinos. Chu e Tefnut transam produzindo Geb e Nut, os quais dão origem aos primeiros reis divinos. Crianças assistiam a realização do ato sexual feito por seus pais. Noutras circunstâncias Geb pratica a auto felação. Amiúde os deuses são representados com o falo ereto, ejaculando. O próprio Faraó masturbava-se publicamente no Nilo, uma vez por ano, com o objetivo de fecundar a colheita. Segundo um mito já clássico Isis após recompor o corpo do falecido Osiris recria seu falo por meio da magia. Cenas de caça são pintadas nos túmulos significando veladamente a sexualidade. Havia um deus da líbido, da dança, da embriagues, do sexo; o qual era Bes. O papiro erótico de Turim, representando a vida quotidiana num bordel de Tebas, expõem aos leitores cenas explicitas de masturbação feminina, etc Preciso mencionar a saga do padeiro Panet? E mencionar que sequer foi castigado ou punido pela lei? Nem preciso dizer que os antigos egípcios não tinham maiores problemas com seus corpos ou com a nudez; que meninos e escravos andavam praticamente nus enquanto que as mulheres da elite limitavam-se a cobri-se sumariamente com um pano de linho fino. Nada mais comum em Deir el Medinat do que desenhos de natureza sensual ou erótica. O matrimônio era flexível, o divórcio comum, a poligamia e a semi poligamia amplamente disseminadas e a mística da virgindade ignorada. Mesmo a homo afetividade era originalmente tolerada desde que não houvesse subjugação forçada. Além disto os egípcios drogavam-se usando flores de lótus, embriagavam-se com cerveja, etc, etc, etc Prazer ali não parece ter sido tabu.

Trabalhavam, e refiro-me aos trabalhadores livres, no entanto esses egípcios dez dias durante a semana. Sendo assim como encontravam energias ou forças para praticar sexo? Acaso não estaria o sexo apenas na imaginação ou na fantasia de tais pessoas??? Algumas pinturas e representações parecem indicar-nos que a vetusta civilização do Nilo conhecia já o que chamamos de excitantes ou melhor dizendo substâncias afrodisíacas. Certamente não faziam sexo a todo tempo mas quando o faziam faziam intensamente. E no entanto apesar da fruição do prazer, seja por meio do sexo, da cerveja, dos narcóticos ou da dança, a civilização Egípcia foi o que foi. Não sobrecarregou ao extremo seu povo com tabus sexuais, os quais sequer existiam.

Quanto aos antigos indianos limitar-me-ei a mencionar que são os autores do Kama Sutra...  Diga-se o mesmo do Tantra.

Outro é o caso da sexualidade na Mesopotâmia, pelo simples fato de que achasse esta região de par com as 'terras santas' do islã e do judaísmo, e devido a presença da cultura semita. Claro que tomamos por base aqui a cultura original sumeriana ou de matriz sumeriano/asiânica, atendo-nos especialmente ao Sul desta região, ocupado posteriormente pela cultura babilônica, em oposição ao Norte assírio muito mais bem mais semitizado. Tenha-se em mente que os acádios são um povo sêmita.

Compreende-se portanto porque o tema foi relegado ao silêncio e porque a sexualidade dos mesopotâmicos foi ocultada ou mesmo negada desde os bons tempos da 'santa' rainha Vitória... Apesar disto salta a vista de todo e qualquer sumerólogo o aspecto positivo com que os antigos babilônicos não apenas encaravam mas representavam, comumente, o sexo. Basta dizer que a Epopéia de Gilgamesh refere-se ao sexo como um dos principais prazeres de que os mortais devem desfrutar enquanto passam pela vida. O texto de Shumma âlu CIV, 1,14 refere-se explicitamente ao sexo anal sem adicionar qualquer juízo depreciativo. O mesmo texto acima citado refere-se positivamente a prática homossexual desde que levada a cabo com um 'assinnu' ou prostituto profissional, excluindo a coação (outra era a postura dos assírios). Já foi sugerido alias que havia certo conteúdo homo afetivo entre Gilgamesh e Enkidu. A prostituição por fim era tida em conta de sagrada e em algumas regiões deviam as moças prostituir-se em honra a deusa do amor Astarte. O incesto no entanto é tido em conta de Tabu e a mulher goza de muito menos liberdade do que no Egito. Não se pode no entanto sustentar que a primitiva Sociedade mesopotâmico/sumeriana fosse demasiado repressora ou mesmo repressora em termos de sexualidade ou de prazer. Tornou-se no entanto cada vez mais limitada e policiadora na medida em que o elemento sêmita se foi tornando preponderante, especialmente ao Norte, entre os assírios.

Após termos passado em revista a sexualidade em tais civilizações, a saber as mais desenvolvidas e ricas da antiguidade, podemos estabelecer que mesmo admitindo-se como certa aquela redução quantitativa em termos de prazer necessária a produção da cultura, a forma por assim dizer do contato sexual jamais tornou-se objeto de tabu ou policiamento, e que inexiste por assim dizer uma relação proporcional entre restrição ao prazer ou melhor dizendo entre preconceitos de natureza sexual e grau de desenvolvimento cultural. O desenvolvimento da cultura ou o florescimento da civilização antiga não parece estar na dependência do que podemos classificar como comportamento moralista, maniqueísta ou puritano em termos de negação consciente do corpo ou do orgasmo. Tal tipo de relação é o que não se constata. Eis a primeira relação a que chegamos.

O que nos leva a um problema ou a uma pergunta.

E a existência das culturas maniqueístas implica algum tipo de relação em termos de sentido ou organização social.

Quanto a esta pergunta talvez nos seja possível sugerir um caminho novo ou diferente.

Não precisarei ser erudito ou onerar o leitor com outra aula de História com o objetivo de sugerir uma certa relação existente entre a repressão sexual, os tabus, a negação do corpo ou o maniqueísmo e o espírito agressivo ou a belicosidade de algumas culturas.

Chegado a este ponto devemos esperar pelos protestos de alguns. Os quais dirão que todos os povos e culturas da antiguidade eram agressivos e belicosos na mesma proporção. Este tipo de afirmação se me parece arbitrário e artificial, gratuito enfim. Típico daquela gente simplória que diz para si mesma: Como todas as culturas são iguais todas devem estar em posse das mesmas qualidades e dos mesmos defeitos. Aqui tudo muito apriorístico.

No entanto ousarei perguntar a toda essa boa gente relativista por que não damos com as mesmas cenas de empalamento, esfolamento, tortura, etc representadas nos painéis dos palácios assírios no contesto da antiga China? Por que no Egito temos um Akhenaton abolindo os sacrifícios sangrentos e cogitando sobre a igualdade existente entre todos os homens enquanto o rei da Assíria declara estimar tanto a boa leitura quanto o hábito de cortar as orelhas e narizes de seus prisioneiros de guerra? Por que os Egípcios após terem tomado uma cidade limitavam-se a matar ou escravizar os combatentes enquanto que o 'povo eleito de jao' i é os antigos israelitas massacravam sem piedade até mesmo as crianças, os idosos e os animais que habitavam as vilas tomadas por eles? Por que os indianos ou mesmo os egípcios não saíram pelo mundo afora gritando 'Converte ou morre'? Então pelo amor de Zeus não venham dizer-me que a violência estava presente com a mesma intensidade na antiga China e na Assíria. Na antiga Índia e no antigo Israel. Na cultura islâmica e no antigo Egito.

Indianos, Egípcios e Chineses mal saíram de seus domínios com o intuito de conquistar outros povos ou de submeter outras culturas e mesmo quando foram levados a faze-lo (no caso do Egito após as invasões dos Amu) fizeram-no muito a contragosto e obedecendo determinados padrões de humanidade. Sumerianos e mesmo os Babilônicos, durante certo tempo, tampouco fugiram a estes padrões. Outro é o caso dos Assírios, dos antigos hebreus e dos árabes cujas façanhas todos nós conhecemos muito bem. Assírios pilhavam e aterrorizavam outros povos. Os hebreus promoveram ao que parece o primeiro genocídio de que temos notícia na História e os muçulmanos, a princípio árabes em sua totalidade, buscaram levar sua jihad aos confins da terra. Do que resultou uma quantidade de agressões, mortes, derramamentos de sangue e destruição apenas comparáveis as futuras guerras dos cem anos, dos trinta anos e mundiais...

Certamente que algum estudioso tanto mais realista fará questão de apontar-me os determinantes geográficos ou climáticos, o que vem sendo apontado desde os tempos de Ibn Khaldun e foi assumido entre os nossos, pela primeira vez, por Montesquieu. Os povos do deserto - e estamos diante de três culturas sêmitas - tendem a ser mais rudimentares, agressivos e belicosos do que os povos agrícolas das planícies ou cidades, em função de suas vicissitudes como o nomadismo ou a falta de recursos. Longe de mim questionar que tais fatores possam também eles cooperar quanto a gênese deste espírito belicoso. Suspeito no entanto que neste terreno qualquer enfoque monocausal seja improcedente, e que devamos tal caráter a uma convergência de fatores, assim em parte ao clima ou ao solo, mas não somente a ele.

Há aqui algum ou alguns fatores a mais e nós acreditamos poder identificar um deles com a negação do corpo e a restrição da sexualidade intencionalmente decretadas pelo legislador com o objetivo de potencializar ou de aumentar ao máximo esta alegada agressividade já favorecida pelo meio. Que a cultura semita se tenha esforçado - muito provavelmente mais do que quaisquer outras culturas - no sentido de ocultar o corpo humano e em nega-lo se me parece indubitável. Que tenha adotado igualmente uma série de tabus com relação a fruição do prazer sexual não me parece menos evidente. Tal o escopo - a princípio - do machismo e da homofobia, e posteriormente - já no contesto judaico 'cristão' da modernidade - da monogamia, da indissolubilidade matrimonial, etc Até a formação de um super ego estritamente moralista, em conexão com uma cultura moralista, a qual impôs o recalque dos desejos como sinônimo da virtude ou ideal a ser alcançado por todo homem piedoso.

Certamente resultaria de tais medidas uma epidemia de neuroses a ponto destas assumirem um caráter coletivo, isto caso as religiões de Assur, Javé e Ala, não canalizassem toda a agressividade latente produzida pelo recalque sexual para os domínios da guerra religiosa, tornando tais povos mais agressivos do que já eram ou belicosos no mais alto grau. Pelo que vinculamos essa produção intencional de agressividade e violência a afirmação desse padrão cultural maniqueísta ou puritano e a revolta instintiva latente nesta multidão de recalcados. Em certo sentido a negação da sexualidade chegou a produzir um sentido de Tanatos, um certo desprezo pela vida e uma certa tendência para morte decorrente da infelicidade e da frustração. Não é sem menos razão que podemos relacionar a mística revolucionária assumida por certas pessoas com problemas, desajustes ou disfunções de caráter sexual a apresentar ao menos alguns revolucionários fanáticos como não realizados sexualmente e portanto como seres amargurados. A frigidez, a impotência e a impossibilidade do orgasmo tirou de tais pessoas a vontade de viver a ponto de converte-las em suicidas inconscientes. Guerras, sedições, conflitos, etc dependem de eunucos ou de meios eunucos, enfim de gente que não goza... Assim é que se formam os exércitos e multidões de incendiários revoltosos, os quais ligam muito pouco valor a suas próprias vidas.

A Idade média tinha de ser combativa. Grécia e Roma tiveram de ser combativas; pois havia toda um conjuntura externa que favorecia a combatividade. As idades moderna e contemporânea não conheceram semelhante conjuntura, e no entanto foram ainda mais belicosas. Desde o século XVI ao XIX o número de guerras e conflitos recrudesceu, declinando apenas a partir de meados do século XIX. Durante todo este tempo que vai da reforma ao período vitoriano os ideais maniqueístas e puritanos embutidos na sociedade Cristã pela cultura judaica não cessaram de consolidar-se. O que não pode ter deixado de aumentar ainda mais a pressão do recalque e portanto a produção da agressividade e o desejo inconsciente pela destruição. Desejo que originalmente inexiste, sendo produzido, bom dize-lo, pela cultura da repressão. Seja como for, durante quase trezentos anos este desejo alimentou um sem número de guerras e conflitos estimulados e sancionados pelo fanatismo religioso. Esta relação - Repressão, agressividade, conflito e Religião, marcou toda uma Era, até os idos de 1830 ou 48. Desde então assistimos, sem que o puritanismo saísse de cena (afinal estamos em sua Idade dourada que o período vitoriano), uma redução do número das guerras e dos conflitos ( a qual se prolonga até o surgimento da primeira grande guerra mundial). Neste caso que foi feito de toda esta agressividade?

Desde 1830, com a consolidação do modelo de produção liberal ou capitalista nos moldes clássicos, foi a agressividade canalizada para outros fins, assim para o mundo do trabalho, tornando sua relação com a própria sexualidade ambivalente. Até que Freud apareceu em cena, e após ele os contraceptivos e as Revoluções sexual e feminina, dispondo todas estas relações doutro modo.



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