quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Analisando o roteiro do positivismo ou a afirmação do materialismo nas ciências humanas


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Os antigos, queremos dizer os pensadores greco romanos, não tinham qualquer problema em busca fragmentos ou pedaços da mesma verdade por três vias diferentes: A fé religiosa, a especulação filosófica ou metafísica e a investigação científica.

No compreensivo e vasto esquema do divino Aristóteles há espaço para a investigação cientifica em termos de experiencialidade - princípio largamente aplicado no Liceu - para a reflexão filosófica e até mesmo para a religiosidade. Bom lembrar das clássicas passagens em que o perípato pondo em dúvida a possibilidade de demonstrar a imortalidade da alma humana por via de demonstração racional (em oposição a Platão e ao próprio Kant) assegurava abraça-la por via da religião. Equivocam-se aqueles que, guiados por Afrodísias alegavam que a mortalidade da alma - demonstrada pela razão - podia ser negada no campo da religião, e que ambas as teses podiam ser professadas pelo mesmo indivíduo em que pese a contradição existente entre elas.

Não a texto algum de Aristóteles em que se encontre a afirmação de que a inexistência ou destruição da alma fosse racionalmente deduzível. A posição dele a respeito da imortalidade em termos puramente racionais parece equivaler a dos agnósticos, os quais nada pretendem afirmar, negar ou saber; daí socorrer-se da fé religiosa quanto a este tema.

Embora alguns Filósofos como Alexandre, Evemeros e Diagoras fossem não apenas irreligiosos mas inimigos da religião e sobretudo de seu aspecto mágico/fetichista, de modo geral, os grandes Filósofos como Sócrates e Platão, Antístenes, Zeno, Cleantes e Crísipo mostraram-se receptivos a algumas verdades religiosas de caráter universal ou comum. A oposição ou fragmentação não foi generalizada no contexto da antiguidade em que pesem inúmeras divergências a respeito do fetichismo, do politeísmo, da superstição, etc Aqui o mal estar não degenerou em ruptura e por isso os primeiros Cristãos e os padres da igreja puderam recorrer com bastante sucesso ao testemunho dos antigos Filósofos com o objetivo de promover seu monoteísmo revelado.

Quanto ao contesto Cristão devemos observar a existência de certas prevenções anti filosóficas e anti científicas localizadas - desde Tertuliano ao menos - no setor latino ou ocidental da igreja, cuja antropologia foi tornando-se cada vez mais problemática e negativa até Agostinho. O qual certamente nutria dúvidas bastante sérias face ao conhecimento humano ou a capacidade cognitiva do homem e certo desprezo pelo mundo externo e material. As invasões bárbaras e a destruição das escolas, museus, bibliotecas só farão acentuar ainda mais este tipo de mentalidade.

Outra no entanto era a situação do Oriente. Poi se Justiniano haviam mandado fechar os antigos institutos filosóficos atenienses, já dominados pelo irracionalismo neo platônico e, pasme leitor, pela teurgia ou pela magia (de fato os derradeiros escolarcas como Porfírio, Hierócles, Jâmblico e outros eram 'bruxos' ou magos, da mesma cepa que um Eliphaz Levi ou um Aleister CrowleyMarciano e seus sucessores fundaram a Magnaura, o segundo complexo universitário da antiguidade ou se preferirem da Idade Média, sob os auspícios do Cristianismo. E lá se conservavam os registros científicos do passado e dava-se continuidade a reflexão filosófica, de que temos exemplo em Eustátio de Tessaloniki, nos criadores da Suda, em Psellos, etc Em Bizâncio, em que pese o declínio da produção científica, Filosofia e Teologia caminhavam lado a lado.

De modo geral, os antigos padres e doutores da igreja, por uma questão de fluxo cultural, abraçaram ao platonismo e depois ao neo platonismo, aqui certamente com graves prejuízos em todos os sentidos. Afinal quando o Cristianismo principiou a afirmar-se decididamente entre os gentios, pelos idos do ano 100 desta Era, a partida já esta vencida e tanto o materialismo epicurista (embasado nas lições de Demócrito de Abdera) quanto o realismo aristotélico (em que pese suas realizações prodigiosas) - para não falarmos nos ceticismos - esmagados pelo platonismo com toda sua carga idealista.

Alias a questão crucial em termos de platonismo - e não nos devemos iludir a respeito - não implica saber se os tipos ideais ou proto tipos eram materiais ou ideais. Inda que fossem materiais ou realistas estavam situados noutro plano, para o qual - EM DETRIMENTO DA VIL CÓPIA QUE É NOSSO MUNDO - deviam convergir nossas atenções. Importa saber que o platonismo desviava os olhares desta realidade para outra direção...

Tal a escola filosófica com que o Cristianismo encontrou-se e com que ligou-se por séculos a fio, e é de se imaginar que seu viés anti científico fosse antes tributário desta visão idealista - que já havia massacrado o realismo aristotélico do que - que da própria cultura judaica. O contato certamente foi prejudicial ou danoso, mas os preconceitos partiram do platonismo. Ele é que bem antes do advento do Cristianismo havia se negado a olhar para este nosso mundo e se apegado a tradição anti sensorial dominante como a uma tabua de salvação.

O que devemos ressaltar aqui é o surpreendente e quase miraculoso renascimento aristotélico promovido na grande e antiga igreja por S João Damasceno, um de seus principais teólogos. A bem da verdade o Aristotelismo fermentava já entre os assírios e siríacos desde os seculos VI e VII desta Era, sendo as obras do Filósofo estudadas e copiadas nas acadêmias médicas do grande império persa.

Curiosamente o salutar movimento teológico/filosófico iniciado na Igreja Bizantina haveria de ser assumido e desenvolver-se no terreno de uma igreja latina ou romana já socialmente recuperada e em franco desenvolvimento a partir do século XI e mais ainda a partir do século XIII. No contexto Oriental reproduziu-se novamente o velho conflito Platão ou melhor neo platônicos versus Aristóteles agora no plano da teologia, sendo o escolasticismo ancestral e até certo ponto os fundamentos racionais da patrística, arrasados pelo palamismo o qual corresponde a uma corrente neo platônica que remonta ao livro do pseudo Dionísio, a Evágrio e a João Clímaco. Todos estes homens tomaram o caminho inverso ao da imanência, ao da Encarnação e do realismo epistemológico, embora mantivessem a excelente doutrina da Theosis.

A principio também os latinos apegados a Platão e o que é muito pior, a Agostinho, os latinos repudiaram a doutrina de Aristóteles como perniciosa. Assim em 1270 Estephanus Tempier arcebispo de Paris lança um interdito em torno dos escritos de Aristóteles. Evidentemente que naquela altura do campeonato sequer podiam distinguir o Perípato do árabe Ibn Rodh como o próprio Ibn Rodh não conseguia distinguir o comentarista (Alexandre de Afrodísias) do Perípato uma vez que a crítica textual era incipiente e tudo se achava misturado de modo que Siger de Brabante - o 'averroísta 'cristão' de Ernesto Renan - acaba aceitando tudo e, tendo em vista a salvaguarda da fé ou da teologia cristão, formulando a doutrina relativista da dupla verdade.

De um modo ou de outra após os sucessivos renascimentos: Literário, Filosófico e Científico ao cabo dos séculos XII, XIII, XIV e XV as letras clássicas, a reflexão filosófica e a retomada da produção científica, obedecendo a um projeto unitário e grandioso, vão caminhando juntamente com a fé Cristã Católica, a teologia e religiosidade; como que formando um todo ou uma visão integrada e total da existência. Foi um tempo no mínimo interessante pela simples busca de um esquema compreensivo, amplo e abrangente que conciliasse todos os meios de conhecimento, o religioso, o filosófico e o científico além das linguagens literária e artística. Clássicos são os estudos ou analises históricas, geográficas, sociais, culturais, etc em torno do espírito universalista característico do século XIII.

Não, não sou dos ingênuos que pretendem ocultar as trevas e a sujeira debaixo do tapete. Claro que não era a igreja como um todo que apoiava este direcionamento, mas haviam muitos eclesiásticos relacionados com ele, assim Nicolau de Cusa e Marsiglio Ficcino... Claro que o número de pessoas toscas e ignorantes era colossal, claro que haviam massas incultas e lideres religiosos fanáticos, claro que haviam controladores oportunistas, místicos embiocados, agostinianos, sectários, judaizantes, gentes da bíblia, inquisidores desmiolados, e toda uma turba multa de anões e paraplégicos do espírito. O que não elimina o espírito reinante e significativa adesão por outra parte da igreja, a melhor e a mais lúcida.

A tentativa como disse, de manter o são equilíbrio entre as três vias do conhecimento humano, segundo a velha tradição romana, representava um ambicioso projeto arquitetônico, que veio a ruir e a desabar fragosamente no dealbar dos séculos XVI e XVII, enchendo a Europa de ruínas no campo do espírito, rompendo o equilíbrio, fragmentando a cultura e engendrando a crise. Desde então a civilização ocidental combate entre si, dispersa suas energias e dissolve-se. Pois há quem queira pura e simplesmente destruir a religião, como há quem queira substitui-la pela Bíblia ou pelo antigo testamento, como há quem faça guerra a metafísica até os catões da ética. Desde então Filosofia, Religião e Ciência travam entre si a mais pavorosa e insensata das batalhas, perdeu-se definitivamente a compreensibilidade e o resultado mais dramático aqui foi - e é onde queremos chegar com este ensaio - o falseamento do quanto chamamos Ciências humanas ou do homem.

Lançando um primeiro golpe de vista poderíamos nós supor que a quebra da paz ou a ruptura partiu dos ateus, materialistas ou incrédulos. Bom lembrar que - cf Lucien Febvre 'O problema da incredulidade no século XVI' - ao dealbar do século XVI inexistiam ateus e materialistas na plena acepção da palavra. Haviam quiçá alguns sujeitos na periferia da Igreja ou nos confins da Ortodoxia, alguns revoltados, heterodoxos, etc Não materialistas, positivistas, cientificistas ou místicos da técnica.

Neste caso de quem é que parte a ruptura???

Para compreendermos o sentido da ruptura e seu significado imenso para a cultura temos de lançar nosso olhar sobre um cantão tanto mais atraso ou primitivo da Europa, ao menos em comparação com a Itália ou a França. Refiro-me ao Império Germânico ou a Alemanha, onde o Imperador Maximiniano acaba de baixar a sepultura, enquanto iniciava-se uma briga de monges travada entre Dominicanos e Agostinianos em torno da doutrina das indulgências, uma doutrina bastante problemática formulada alguns séculos antes pelo grande fabricante de novidades Alexandre de Alés, quiça inventor da fé romana ou papista, digo de seu conteúdo específico.

Não nos importa aqui entrar nas minudências do conflito Tetzel Lutero, alias bastante conhecido de todos. Nem nos importa entrar nas minudências da doutrina luterana ou das origens da fé protestante. Sintomático aqui é que Tomás de Aquino também foi lançado ao fogo junto com as decretais do Papa romano logo após a condenação das Teses fixadas a porta da Igreja de Wutemberga. E com Tomás de Aquino lá vai Aristóteles. 
Desde as priscas Eras de Orígenes com seus 'Princípios' buscava a Igreja oferecer aos que pediam as razões de sua bela esperança ou expor o conteúdo da fé revelada em termos racionais criando o que chamamos de teologia, postura que veio a ser vital no momento em que a Filosofia viria a recobrar sua importância. Pois ela surge e ressurge a princípio como Ancilla da Teologia, i é como serva, escrava ou auxiliar. Caso predominasse o 'Esta escrito' e tudo fosse resolvido através de citações 'bíblicas' a Filosofia teria permanecida em seu limbo... A teologia latina ou escolástica como demonstram Gilson e Grabmann é que veio a resgata-la. Gostem ou não os incrédulos é pura verdade ou como se diz fato.

Desde então a igreja romana, em que pesem seus erros e equívocos, buscou apresentar sua fé em termos de sistema teológico coerente e acessível a razão, buscando superar certas contradições e sempre servindo-se do aparato lógico de Aristóteles, aproximando-se na mesma medida de sua orientação realista, compreensiva e favorável a um diálogo com a imanência em termos científicos. Daí a ciência ser cada vez mais cultivada e as investigações ampliarem-se mais e mais desde Alberto Magno, Roger Bacon, John Buridan, Robert Grosseteste e outros. Caso lancemos nosso olhar sobre a sociedade Cristã da Itália, nos séculos XIV e XV, se nos parece estar contemplando a Bizâncio dos séculos XI e XII com os Cristãos dispersos pela imanência demonstrando interesse por literatura clássica, botânica, zoologia, mineralogia, economia, geográfica, etnografia, etc. Sim há monges, há teólogos, há homens de fé e o mais surpreendente é que não são infensos a este movimento na medida em que as próprias celas dos mosteiros convertem-se em oficinas artísticas, escritórios ou laboratórios rudimentares.

O efeito do contato efetivado entre a teologia Católica com a Filosofia aristotélica foi fecundo no sentido de despertar parte dos letrados e inclusive dos clérigos para o valor da imanência. Impondo-se cada vez mais a exótica figura de um Willian de Baskerville i é do padre ou monge cientista, artista, inventor - assim Mendel no século XIX e Lemaitre no século  XX - Claro que dessa dispersão ou divisão de forças ressentiu-se o campo religioso propriamente dito, sentindo-se como que desfalcado e nem todos os homens daquele tempo podiam compreender o que podia levar um monge, um padre ou mesmo um devoto a gastar tanto tempo observando animais, plantas ou mesmo estrelas.

A reação a este tipo de secularismo religioso provocado pela Teologia escolástica e sobretudo pela doutrina de Aristóteles foi captada perfeitamente por Lutero e assumida pela Reforma protestante. Para tanto devemos compreender que não poucos Católicos receberam a doutrina de Aristóteles nos moldes tradicionais da religião, tomando-o por papa ou guia infalível a propósito de absolutamente tudo, e numa época em que sequer se sabia com certeza o quanto fora escrito por ele... Naturalmente que este tipo de postura suscitou a princípio críticas justas e em seguida criticas cada vez mais destemperadas e radicais por parte dos próprios Católicos e de alguns religiosos. Críticas que foram levadas aos campos da epistemologia e da gnoseologia, resultando disto uma retomada dos princípios ou preconceitos agostinianos; assumidos declaradamente pelos franciscanos, dentre os quais W de Ockham um dos principais críticos do Filósofo e promotores da visão 'tradicionalista' ou fideísta.

Os místicos em especial tomaram este caminho, devassado igualmente pelo Dr Gabriel Biel, cujo Manual de Teologia prevalecia em diversas escolas alemãs ao tempo de Lutero. Mesmo na França Erasmo não poupava cargas contra os monges, os escolásticos e os aristotélicos obtusos...

Importa saber que a negação de uma única doutrina é suficiente para desestabilizar o sistema Católico, o único existente até então e dentro do qual fácil era argumentar numa linha de coerência. Lutero no entanto havia reassumido - como Fulgêncio de Ruspe, Goteschalk e Wicleff - os pressupostos agostinianos em sua integralidade, e não podia faze-los concordar com a doutrina oficial da igreja romana ou com seu sistema teológico razoavelmente bem articulado. Quando esboçou a doutrina da salvação pela fé somente, que é a sua contribuição individual a reforma protestante, sua posição tornou-se insustentável nesse quadro. E no entanto, seguindo Aristóteles e buscando conduzir Lutero ao absurdo, os teólogos Católicos apelavam dramaticamente a lógica, a razão, a coerência, etc Queriam sobretudo demonstrar que a doutrina da salvação pela fé somente não se podiam conciliar com os demais elementos do sistema Católico posto que havia ali contradição formal.

Lutero não era bobo. Sabia muito bem que todo aquele discurso em torno da coerência, da concordância, da lógica ou da racionalidade estava fundamentado na Filosofia aristotélica. Assim no mesmo instante em que aderiu formalmente ao fideísmo de Agostinho, rompeu com a Teologia latina e canonizou o irracionalismo principiou a atacar furiosamente ao 'pagão' Aristóteles e a sua Filosofia e ataca-la com o mesmo empenho com que atacava o Papa. A razão passou a ser apresentada como uma louca ou uma bruxa e a Teologia - ao menos durante algum tempo - substituída pela Bíblia e pelo estava escrito na dimensão subjetivista que tão bem conhecemos. Ao menos durante a vida de Lutero o luteranismo e o protestantismo nascente assumiram uma feição notadamente anti aristotélica, fazendo-se herdeiro e porta voz de toda aquela crítica precedente. Assim se os aristotélicos e racionalistas apegaram-se a igreja romana os irracionalistas abraçaram entusiasticamente a nova forma de Cristianismo.

Desde então podemos dizer que houve um retorno a 'fé' - compreendida como fé cega ou fideismo ingênuo - ao livro (ou ao princípio do Sola Scritura), a cultura judaica, a religiosidade mórbida e fechada, etc Por fim a própria doutrina da igreja invisível, da união imediata com Deus (sem sacramentos), da presença simbólica, do repúdio as obras, enfim quase tudo no sistema protestante cheirava a ruptura com a imanência - desde já encarada pelos protestantes como pagã - a platonismo, a neo platonismo, a uma espiritualização ou a elaboração de um Cristianismo cada vez mais transcendente e separado do mundo a exemplo rabinismo e do islã. Zwinglio por exemplo, é apresentado por diversos teólogos contemporâneos como um aluno de Plotino ou neo platônico, a orientação no entanto é geral e se manifesta até mesmo no repúdio as imagens e no desprezo pela simbologia cultual. Todo sentido de lei Cristã e a consciência social do Cristianismo sai de cena passando o matrimônio a ser encarado como mero caso de polícia ou política. Toda direção religiosa, todo sentido, toda orientação volta-se para o outro mundo, para o além túmulo ou para o invisível enquanto busca frenética por uma salvação mágica.

Com a Reforma protestante no século XVI, o Cristianismo por assim dizer desencarna-se e desprende-se do mundo para refugiar--se nas alturas do céu. Nada mais platônico ou neo platônico. Até certo ponto devia o próprio leigo comportar-se como um monge as antigas e dedicar-se apenas a oração, ao culto, a leitura da bíblica e as discussões doutrinais i é a teoria, ao invés de ocupar-se em observar o mundo material. Sintomático aqui que Lutero tenha arremetido furiosamente contra Copérnico, o diácono da Igreja que se dedicara a observar o orbe estelar. Para ele os médicos eram embusteiros e o único meio de obter a cura para os males físicos era a fé, a oração ou o milagre. O afastar-se de Aristóteles e o aproximar-se de Agostinho ou Plotino implicou na deserção do mundo material ou natural por parte da Cristandade européia do século XVI. Foi uma passagem da curiosidade incipiente quanto ao mundo para a Bíblia, um exílio espiritual, um retrocesso em todos os sentidos, um imenso e colossal atraso.

Mas e quanto a Igreja romana i é a outra parte da Cristandade ou da Sociedade européia, que aconteceu?

Deflagrada a reforma, enunciados os novos princípios e produzido o novo modelo cultura nada tornou a ser como antes. Nem em termos de política, pois a igreja antiga achava-se enfraquecida, nem em termos de contato com o mundo, porquanto havia sido deflagrada uma guerra e ela, a igreja antiga, achava-se desfalcada em seus quadros. Desde então o quadro de monges e padres dedicados a produção cultural ou científica reduziu-se consideravelmente na medida em que foram sendo deslocados de setor ou mobilizados com o objetivo de entrar na controvérsia religiosa suscitada pelos reformadores. Veja que a partir da reforma protestante e ao cabo de uns cem anos a Europa como um todo a absorvida pela questão religiosa mergulhando de cabela na polêmica Católico/protestante. Diante deste fenômeno singular há quem, e Católicos inclusive, se deixe tomar pelo entusiasmo face a todo este delírio religioso, encarando-o como um efervescer de espiritualidade. E no entanto o que temos aqui são as fastidiosas controvérsias bíblicas, quase sempre de teor subjetivo até a chicana... 

É uma controvérsia inglória, um dispersar de energias, um afã estéril que nada viria a produzir de concreto senão mais e mais incredulidade, materialismo e ateísmo.

O que era de fato importante em termos de Cristianismo. Projeto sócio econômico, elaboração de uma ética essencial, produção artística, pesquisa científica, promoção humana, etc Tudo quanto realmente vale foi abandonado em benefício desta polêmica insana. Por cem anos a Reforma desviou a Europa de sua rota. Interrompeu bruscamente uma linha de progresso iniciada três séculos antes e abandonou o campo da imanência. Levando parte dos papistas a fazerem o mesmo.

É verdade que a partir do século XVII a pesquisa científica vai sendo paulatinamente retomada na Europa, mesmo no contesto protestante, na mesma medida em que as pessoas vão se cansando da Bíblia, das controvérsias e da religião. De modo que ao contrário da Idade média, a pesquisa e produção científica já não são assumidas por homens sinceramente religiosos, mas cada vez mais e numa escala mais larga por homens irreligiosos, e enfim pelos materialistas e ateus, alguns dos quais aspiravam destruir a própria religião.

A ideologia e a cultura no entanto eram Cristãs, formalmente Cristãs e portanto espiritualistas ou abertas a imaterialidade. Aqui a ruptura foi quiçá mais intensa do que aquela outra representada pela passagem do paganismo ao Cristianismo. Pois o homem moderno, o homem irreligioso não conseguiu elaborar uma espiritualidade irreligiosa como o homem antigo havia elaborado uma religiosidade monoteísta. Parte cada vez mais considerável deste homens irreligiosos mostrou-se incapaz de cultivar uma religião natural, a exemplo dos antigos Filósofos gregos, abraçando com fervor não apenas a tese do materialismo, mas inclusive a do ateísmo uma perspectiva combativa. E é evidente que a adoção a priori da tese materialista - por simples ódio ou repúdio a religião - fechou todas estas mentes para a simples possibilidade do imaterial presente na materialidade. Para nossa cultura pós reforma protestante a imaterialidade converteu-se em tabu, ficando relegada ao setor religioso.

A princípio esse aparelho conceitual materialista e ateu - ora assumido aprioristicamente, a semelhança de um credo, não apenas pelos cientificistas mas por muito cientistas (Mesmo no campo das ciências humanas) com a maior boa fé - inexistia, precisando ser fabricado. A nós cabe compreender a fabricação deste credo materialista em termos de epistemologia ou melhor de metafísica, para poder avalia-lo com máxima justeza, sabendo que não corresponde ele mesmo a um dado empírico, sensível e observável mas uma formulação conceitual, produto da especulação filosófica ou da metafísica que eles mesmo arrenegam hipocritamente, permitam me dizer.

O aspecto mais angustioso do materialismo é justamente sua recusa desonesta e terminante em assumir-se a si mesmo como aparelho conceitual ou ideológico e não como fenômeno observável.

A princípio os ingleses, segundo sua tradição empirista - que como vimos deita raízes na Idade Média - dedicaram-se a investigar a capacidade do aparelho sensorial e da percepção, e da experiência, tendo em vista construção do conhecimento humano. Assim F Bacon ao tecer suas criticas, até certo ponto justas, aos aristotélicos obtusos. Assim Locke ao retomar o esquema Aristotélico da Tábua rasa. Tal e qual na antiguidade, a partir do enfoque empirista, chegou a Filosofia contemporânea a Davi Hume, o qual não tornou-se seu Copérnico, justamente por alienar-se dela, digo da Filosofia. Afinal, segundo V Brochard (cf Céticos Gregos) o ceticismo crasso é antes de tudo uma recusa ao dialogo e a Filosofia. Hume é o patriarca do ceticismo contemporâneo enquanto afirmação contraditória em torno de uma dúvida absoluta ou enquanto simples negação do discurso e de todo discurso. Claro que Hume se tornou famoso, mas jamais conquistou a adesão geral dos pensadores, e isto mesmo em tempos de crise (O ceticismo é um dos sintomas da crise).

Devido a seu paralogismo fundamental nem pode afirmar-se como Filosofia, quando não assume o lema da Epoché ou da ataraxia, tomada por Pirro de Elis a fé búdica. Para por ai e por ai fica enquanto apologia da inércia.

Diante disto outros caminhos, e bastante radicais no âmbito da Filosofia, tiveram de ser deslindados e quase que paralelamente, se quem que seguindo tradições totalmente distintas. Assim na França Católica da Universidade de Paris, centro universal da escolástica. Assim na Alemanha Luterana e anti escolástica.

Os franceses juntamente com os ingleses se vão pela via do empirismo, chegando demasiado cedo ao sensualismo crasso com Condillac e ao materialismo epicurista com P Gassendi. Curioso aqui é que tanto Condillac quanto Gassendi eram padres e ao que parece sinceros em suas convicções religiosas. Afinal não é nesta mesma França que deparamos com um grupo de 'céticos' Católicos ou melhor dizendo de agostinianos puros, tradicionalistas, filo luteranos... representados por Gentian Hervetius (Um dos campeões na luta contra o protestantismo) e sobretudo M Montaigne autor dos famosos Ensaios??? Então a que propósito vem escocês Hume, a pouco citado?

Hume por não ter religião ou fé era um cético completo. Os franceses eram céticos quanto a tudo, os sentidos, a razão... mas não quanto a fé. M Montaigne é a seu tempo reprodutor de monumentos antigos e sobretudo consumado literato. Hume é quem aprofunda e amplia as reflexões céticas contribuindo com algo de propriamente seu por ser posterior ao grande Locke e poder expô-lo ao crivo da crítica, bem como ao velho F Bacon.

Herdeiros deste espírito escolástico essencial alguns iluminados franceses é que por primeira vez levarão a cabo o plano ambicioso de novamente inserir o materialismo e por primeira vez inserir o ateísmo nos domínios da Filosofia produzindo por assim dizer uma metafísica materialista e ateia. Diga-se deles que estavam equivocados mas nunca e jamais que foram desonestos. Assim D Holbach, La Metrie e o Dr Pierre Cabanis os quais formularam seus sistemas conforme os princípios da Metafísica pelos fins do décimo oitavo século.

Enquanto isso pelas Alemanhas, mais precisamente na pitoresca Koenisberg, alguém estava decidido a vindicar sua fé ancestral e a levar os preconceitos irracionalistas, anti escolásticos e anti aristotélicos os domínios da Filosofia. Tais os planos do sr Immanuel Kant. O qual além de ser profundamente ilustrado - basta dizer que era geógrafo - possuia conhecimento incomuns e matéria de lógica e de pura lógica aristotélica. A princípio parece ter lido algumas linhas em termos de escolástica, no entanto pouco mais tarde desejou queimar toda produção medieval, julgando ter sido acordado ou iluminado pelo iconoclástico Hume, o qual tampouco lograva satisfaze-lo por duvidar de absolutamente tudo e nada deixar ao homem.

Hume precisava ser consertado e Lutero glorificado. Kant era aquele que elaborando o idealismo crítico deveria fazer uma e outra coisa, estabelecendo as fronteiras do conhecimento e negando metafisicamente a metafisica. Metafisicando estabeleceu Kant que só podíamos conhecer ou ter acesso aos fenômenos através da querida ciência com seu paradigma da materialidade. Já o que se achava por trás dos fenômenos nada se podia saber de concreto ou definitivo, devendo o homem abster-se de afirmar e conformar-se com sua ignorância. Fé religiosa ou cega e ciência era tudo quanto tínhamos. A metafísica e por ext quase toda Filosofia (inclusive suas investigações epistemológicas, gnoseológicas e éticas) não passavam de opinião ou de fantasia e o raciocínio, a lógica, a dedução, separados da experiencialidade pura para nada serviam.

Tal o idolatrado Kant da Razão pura. 

A princípio houve quem o aplaudisse entusiasticamente por ter degolado o monstro repugnante do Deísmo. No entanto quando o outro lado percebeu que também a metafísica negativa ou ateística dos iluminados franceses era igualmente repudiada, e que Kant nas entrelinhas, antecipava o agnosticismo insonso de Comte e Huxley os aplausos foram cessando. Doloroso e sumamente doloroso para os ateístas terem se ouvir que Kant sendo agnóstico condenada sua metafisica tão arrevezadinha repetidamente surrada por escolásticos, aristotélicos, deístas, platônicos, ecléticos, etc E o grande Kant não lhes podiam socorrer. Mas como se Kant, a exemplo de Aristóteles quanto ao tema da alma, afirmava a existência de Deus com base na fé???

O fato é que havia coisa ainda mais séria ou pior para os produtores desta ideologia ou aparelho conceitual apriorístico.

Kant, que era muito dado a refletir ou a metafisicar com seus botões estava destinado quase que a ser revisionista de si mesmo. Pois quando postula a impossibilidade do conhecimento metafísico esta a bem da verdade fazendo um recorte e por metafísica querendo dizer Teodicéia. Tudo quanto ele quer dizer é que a existência de Deus não pode ser provada dedutivamente. Metafísica do conhecimento ele mesmo faz santo Deus! Acaso não esta ali escrevendo resmas e resmas de folhas sobre Epistemologia e Gnoseologia??? Pois bem agora na 'odiada' - um dos livros mais sabotados e odiados de todos os tempos - Razão Prática, que fará ele?

Eis que agora eu desdigo o que digo ou desminto o que falei...

Afinal, por conhecer de passagem as páginas monumentais de Vitória, Soto, Bañes, Cano e Suarez ele bem sabe que não é possível haver ética essencial e objetiva da pessoa humana nos termos de um Sócrates ou de um Platão sem postular uma Lei natural, como sabe do mesmo modo que é impossível postular a existência de uma lei natural, universal e imperativa sem admitir, necessariamente, a existência de um Legislador ou princípio Supremo ou transcendente. Mais ainda, sendo muito bem informado, Kant como V Brochard sabia que esta fora a cruz do ceticismo antigo e que o ateísmo e o materialismo não dariam uma ética essencial da pessoa tal e qual um boi não dá leite e galo não deita ovos.

Deu, merda e no campo da Ética o genial e arguto Kant afirmou exatamente o que negará no campo da teodicéia. É como se o alemão dissesse: Teodicéia é bobagem e não podemos atingir em si mesma a existência de Deus ou demonstra-la, no entanto no campo metafísico da Ética, relativo ao comportamento e interação social entre os seres humanos é absolutamente necessária a existência de um padrão externo, universal e objetivo ou seja de Deus. Morto ali ei-lo por absoluta necessidade ressuscitado aqui.

Que concluir a partir disto?

O grande público imparcial e objetivo conclui sem mais pela genialidade ímpar do Kant do primeiro livro e pela boçalidade extrema do Kant do segundo livro, o qual certamente já devia estar gagá ou esclerosado como os ex ateus Litreé e Flew antes de terem morrido.

Para fazer um justo juízo sobre Kant deveríamos ler ambas as obras, mas, os emancipados ateus e materialistas não leêm a 'Crítica da razão pura' o verdadeiro patinho feio da Filosofia.

Até aqui vimos que Kant não prestou lá grandes serviços a ideologia ateística, chegando a ultraja-la por sinal, em que pese ser considerado o mais arguto dos filósofos contemporâneos. Vejamos agora os serviços que prestou no campo do materialismo, do cientificismo, da ciência e da materialidade.

Continua -


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