quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Ainda a alienação - Formas ideais

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Dando continuidade ao elenco de alienações ideais elaborado por nós no artigo anterior, acrescentamos algumas outras formas:

1) O fixismo ou imutabilismo social.

Esta forma de ocultação da realidade consiste em imaginar ou supor que a organização social por nós vivida sempre tenha sido assim em todos os tempos e lugares, ignorando a existência de sociedades não capitalistas tanto no passado como no tempo presente.

Evidentemente que ela decorre de um padrão de pensamento bastante comum entre as pessoas mais simples e desinformadas, as quais sequer podem imaginar o mundo ou a vida sem os objetos e coisas que são próprios do nosso tempo. Daí nossos jovens imaginarem que os celulares ou a Internet sempre existiram. Já os que pertencem a nossa geração tem imensa dificuldade para conceber um mundo sem aviões ou automóveis; mesmo sabendo que o avião foi intentando em 1911 e o automóvel por Benz e Daimler pelos idos de 1889. Nossos bisavós nasceram e viveram um bom tempo sem automóveis e aviões (minhas bisavós nasceram em 1870 e 1875) e nossos ancestrais sem trens ou navios a vapor... E no entanto, como disse, nos comportamos todos como se tais aparelhos sempre tivessem existido.

E pensar que o fósforo, o papel, a sela, a ferradura, o vidro e a escrita... tudo teve de ser inventado. E que antes de terem sido inventados inexistiam. Sem que por isso as pessoas praticassem harakiri ou se suicidassem. Como não nos suicidaremos caso os celulares ou a internet deixem de existir. No caso da Internet sua desaparição constituiria uma tragédia em todos os sentidos, algo equivalente a desaparição da imprensa. Mas mesmo assim a maioria de nós sobreviveria a seu fim, bem como ao da TV, do rádio e da própria imprensa. A cultura declinaria certamente e passaria por maus bocados, mas não morreríamos por isto... Tempo houve em que os homens viveram ser arado, torno e roda. Como nossos ancestrais mais remotos haviam sobrevivido sem cerâmica, cabanas, roupas ou mesmo o fogo. Afinal tudo começou com uns toscos implementos de osso e madeira e em seguida de pedra lascada há alguns milhões de anos.

Também as formas de organização social precisaram ser reinventadas ou reformuladas em diversas ocasiões. A própria estrutura familiar conheceu o matriarcado, a poliandria, a poligamia, o patriarcado, a dissolubilidade, etc até chegar a constituir-se no Ocidente, por influência do judaísmo farisaico em algo como patriarcal, monogâmico e indissolúvel. Diversas civilizações e culturas no entanto jamais assumiram semelhante forma, assim entre os muçulmanos prevalece a poligamia até o tempo presente.

Diga-se o mesmo quanto a produção e distribuição de bens. Nada mais absurdo do que supor que sempre vigorou a doutrina do livre mercado. A qual principiou a impor-se no Norte da Europa Ocidental após o fim da Idade Média, espalhando-se paulatinamente por todo este continente ao cabo do século XIX, afirmando-se nos EUNA (os EUA) no final do mesmo século e a partir do século XX alastrando-se pelo mundo inteiro. Antes que esta nova ordem desse os primeiros passos pelos idos do século XVI ou XVII vigorava naquele mesmo cenário e por quase toda Europa (França, Alemanha e parte da Itália) a Ordem feudal ou estamental. Do mesmo modo como ainda hoje existem pelo mundo diversas culturas que jamais atingiram algo parecido com a ordem feudal, quanto mais a ordem liberal economicista...organizando-se economicamente doutro modo.

Os paladinos e apologistas do sistema capitalista classificarão muito facilmente todas estas culturas, sociedades e civilizações tal e qual classificam a Idade Média, como algo precipuamente atrasado ou como um palheiro de trevas... E no entanto qualquer aborígene poderia responder-lhe dizendo que ao menos eles, os primitivos, os rudimentares, os atrasados, etc não fabricavam fomes. Conheciam a calamidade da fome, mas não a manipulavam intencionalmente. Poderiam dizer ainda que se não conheciam as grandes fortunas, tampouco conheciam situações de miséria. E que se não produziam ciência tampouco vendiam ou negociavam seus resultados, excluindo considerável parte dos cidadãos quanto a sua fruição...

Tudo quanto quero dizer é que se os marxistas pecam gravemente contra a verdade na mesma medida em que tendem a encarar as Idades primitiva, antiga e média em termos de relações burguesas, continuam reproduzindo vícios, quimeras e mitologias engendradas pelo próprio liberalismo econômico, o qual não poucas vezes pretendeu afirmar-se como algo sempre presente no cenário da História. No entanto é absolutamente certo que os primitivos, os antigos e os medievais jamais conheceram a forma capitalista de produção e organização ou as categorias de classe, salário, burguesia, capital, etc enfim um ideal economicista de existência. Embora as relações econômicas existissem - o que é obviedade de minha parte - jamais lograram absorver as demais esferas da sociedade ou mesmo sobreporem-se a elas de modo tão cabal. Certamente havia exploração, opressão domínio mas não de natureza necessariamente econômica. Nas Sociedades primitivas ou antigas nem sempre o poder esteve associado ou subordinado aos interesses de ordem econômica. Havia ali outro sentido e outras formas de regulação no que tange a ordenação do poder. Castas, estamentos e outras categorias sociais do passado não podem ser encaradas como sinônimo de classe ou postas em relação direta com necessidades ou valores de natureza econômica. Cf Polanyi 'A grande transformação'

Resta-nos concluir que se a Sociedade Ocidental nem sempre foi capitalista, pode naturalmente vir a deixar de se-lo, pelo simples fato de inexistir qualquer vínculo essencial entre a organização social e os moldes capitalistas de produção, podendo esta Sociedade vir a atingir qualquer outra forma.

É exatamente esta conclusão óbvia que exaspera os adeptos do sistema, os quais não menos que os místicos comunistas encaram a própria ordem capitalista como um 'fim da História' (Fukuiama) em termos de algo definitivo e insuperável. Havendo inclusive que deplore o capitalismo e considere-o como insuperável apostando no fim da Civilização ou melhor da humanidade. Assim a evolução social nos teria conduzido a este beco sem saída. T S Elliot era um destes que associava o capitalismo ao desencanto ou a quebra da magia e que ao mesmo tempo não acreditava que era possível vence-lo. Outros como, o grande Berdiaeff, notável critico do sistema, chegaram a flertar com o catastrofismo escatológico, resíduo judaico, ainda hoje presente na maior parte do Cristianismo sectário.

Diante de tudo quando registramos no parágrafo anterior fica bastante fácil compreender o porque do apelo obstinado dos liberais ao imutabilismo. O qual conseguiu intoxicar as mentes de não poucos intelectuais ao menos até 1858, quando Ch Darwin, o sempre odiado Darwin, vibrou-lhe tremendo golpe pelo simples fato de aniquilar os fundamentos mais remotos da concepção fixista, tributários do pensamento fetichista e da mitologia judaica, assumidos até então pela generalidade do Cristianismo. No momento em que Darwin demonstra biologicamente o fato do transformismo ou do evolucionismo, impondo uma concepção a um tempo natural e a outro dinâmica em termos de botânica e zoologia, torna-se evidente que esta concepção havia de transladar-se para todas as esferas da existência humana, assim da organização social, o que de fato foi verificado e confirmado pela ciência histórica. Expurgado do seio da Biologia como fruto de uma intromissão indevida, o fixismo perdeu todos os seus créditos, inclusive nos domínios da História, passando a ser encarado com o sinônimo de estupidez.

Nem por isso parte dos apologistas dos sistema pode fugir a tentação de apresenta-lo como onipresente e imutável aos bípedes comedores de alfafa que fazem parte de seus rebanhos... Lamentavelmente as pessoas simples continuam deixando-se levar pela imaginação, na mesma medida em que não conseguem desprender-se da crença fetichista no criacionismo. Donde topamos mais uma vez com os tentáculos do fundamentalismo religioso e sectário, cujo fim é impedir as massas de pensar...

2) No entanto tal e qual se diz que dos ossos da quimera brotaram guerreiros ou que das cinzas de uma ave sai outra ave, das cinzas do criacionismo ou melhor de seu oponente que é o evolucionismo, sobretudo sob a forma acanhada do darwinismo crasso brotou nova forma de alienação, destinada mais uma vez a narcotizar os intelectuais sem consciência ética.

Claro que nos referimos ao darwinismo social, doutrina ainda hoje bastante popular entre os anarco individualistas, ANCAPs ou mesmo entre os simples liberais economicistas.

Não ignoro que o novo sedativo ideológico ou que a nova arma destinada a propaganda, tenha sido forjada por Herbert Spencer e não por Ch Darwin. A própria expressão tão exaustivamente discutida 'Sobrevivência ou triunfo do mais apto' foi cunhada pelo pensador e sociólogo de Derby. Diante disto um imenso número de cientistas darwinistas tem se esforçado para livrar a barra do santo padroeiro da Evolução... Não são apenas os papistas, os protestantes, os comunistas, os fascistas, etc que possuem hagiografia, como diz Crane Brinton. Também os cientificistas ou evolucionistas ortodoxos tem sua hagiografia e ao que parece não menos capciosa e desonesta até a manipulação. Que digo, mesmo alguém do relevo de um Kropotkin (Em sua obra clássica 'O apoio mútuo) esforçou-se por apresentar Darwin como oponente ou ao menos indiferente as fanfarronices de Spencer, em cujos braços depositava o filhote.

Sucede todavia que na ulterior edição de 'A origem das espécies' o próprio Darwin assume o polêmico termo cunhado por Spencer, o qual posteriormente será sempre compreendido como sinônimo de 'sobrevivência do mais forte'. O mais apto é o biologicamente melhor constituído fisicamente e em termos de força. Pois Darwin ao contrário de De Vries jamais concebeu o conceito chave em matéria de evolução, a saber as mutações. Ora as mutações implicam certamente desvantagem ou vantagem, mas não necessariamente em termos de força. Não se trata de competição entre seres estruturalmente iguais em termos de força física como decorre da doutrina de Malthus repisada por Darwin. A luta por alimento entre seres estruturalmente iguais, e que é muitas vezes decidida pela força mas nem sempre, nada tem a ver com a evolução, pois não é ela o objeto da seleção natural. A seleção natural seleciona mutações.

Claro que Darwin deixando-se iludir pela seleção artificial chegou a imaginar que a seleção natural por sí só entre exemplares estruturalmente idêntico produziria as variações estruturais ao cabo das quais surgiriam novas espécies. Ora este viés, que ignora o verdadeiro objeto da seleção natural, i é as mutações (Se genéticas ou radioativas não nos vem ao caso) jamais superou a visão anterior que é Lamarckista e confere a seleção natural um aspecto ou poder mágico.

No frigir dos ovos da hipotética guerra continua imaginada por Malthus em termos de disputa por alimento entre seres da mesma espécie ou de espécies diversas nada sai. Ela é por definição estéril e improdutiva. Não é a fonte da evolução.

Importa saber se ela corresponde a seleção natural, enquanto elemento que testa as mutações. Isto no entanto não é objeto de um ensaio sociológico ou filosófico.

O que desejamos saber é se Darwin apoiou ou não Spencer e se em alguma ocasião pronunciou-se sobre a ideologia social que ela seu nome.

Quanto a Spencer é bem sabido, que apesar das invectivas do citado anarquista russo, Darwin referiu-se a ele ao menos uma vez em termos mais do que lisonjeiros, alcunhando-o como 'Nosso grande filósofo'. Elogio rasgado que jamais dirigiria a alguém que tivesse falsificado sua doutrina. Claro que aqui sempre podemos permanecer nos limites da Biologia e da controvérsia amarga a respeito do sentido da expressão por ele criada... Precisamos portanto saber se Darwin alguma vez ou em algum momento aludiu ao tema do darwinismo social.

Topamos precisamente com tais alusões no livro 'A origem do homem' sobretudo a respeito da descoberta da vacina e do esforço gasto pelos Cristãos com o objetivo de assistir aos deficientes físicos e mentais. Darwin estabelece uma crítica que partindo de sua concepção de seleção natural conclui pela degeneração da raça enquanto movimento inverso ao do movimento evolutivo. Todo darwinismo social esta contido formalmente em tais premissas.

Já dissemos que o darwinismo social tem pé manco ou de barro por ter Darwin como lamarckista incorrigível que era concebido a Seleção natural em termos de força ou fator único e mágico; o que vai contra tudo quanto aprendemos em termos de genética. Daí a necessidade de De Vries ter vindo em socorro da explicação darwiniana e de que fosse elaborada uma teoria sintética que considerasse a genética e incluísse o fator estocástico das mutações, no caso o elemento criador por assim dizer. A seleção natural testa o que é produzido pelas mutações ou as diferenças estruturais aparecidas nos indivíduos de uma mesma espécie.

Já quanto ao elemento estável, que é a seleção natural, tudo quanto podemos dizer é que embora deva ser compreendida enquanto situação problema, e na natureza não faltam situações problema, ou de adaptação a um meio igualmente dinâmico e hostil, certamente não pode ser compreendida no sentido romântico proposto por Malthus ou de uma guerra animal por suprimentos, seja em termos de infra espécie ou extra espécie. Claro que tais situações, vinculadas as transformações ocorridas no meio, até podem ocorrer. O problema aqui é encara-las como únicas e dar toda a evolução como algo acionado pela apetite voraz de nossos ancestrais... ou como questão de cardápio.

Para tantos quantos aceitam esta exótica doutrina os mecanismos sociais relacionados com o acesso ao poder são como que uma continuidade da Seleção natural ou como um manifestação desta lei. A qual testaria as aptidões ou méritos dos seres humanos, compreendidos não poucas vezes em termos de força ou de esperteza. Consequentemente os indivíduos desajustados, que não conseguem, adaptar-se ao sistema ou inserir-se nele - assim tantos quantos não enriquecem, os pobres, os humildes e trabalhadores - são classificados como ineptos ou fracassados, e como é esta sentença ditada pela própria natureza não há quaisquer motivos para compadecer-se deles ou para preocupar-se com sua sorte. Devem ser abandonados as forças da natureza, assim os deficientes mentais, criminosos, drogados, alcoolatras, etc  Nem se poderia questionar a organização social que executa a Seleção ou opor-se a ela como querem os socialistas. Tal oposição faria tanto sentido como opor-se a Seleção natural em termos Biológicas, afinal selecionando os indivíduos mais fortes e atribuindo-lhes o poder, é esta seleção que faz a Sociedade evoluir. Sem ela o progresso cessaria e daria espaço a degeneração social.

Claro que deste ponto de vista sistema social algum poderia ser considerado mais desenvolvido que o liberalismo econômico ou capitalismo pelo simples fato de restringir o acesso ao poder a uns poucos e estimular ao máximo a concorrência entre os indivíduos. Como se percebe capitalismo e darwinismo social encaixam-se um no outro como a mão e a luva, o que nos leva a questionar as relações existentes entre o próprio Darwinismo biológico em sua gênese e a reação de um sistema que se viu desfalcado de seu grande trunfo: O fixismo. Compreendidas em termos de manipulação ideológica. O problema foi evidentemente levantado pelos líderes e pesquisadores da antiga URSS e certamente não é ocioso. De uma forma de outra essa relação com o capitalismo precisa sim ser considerada e ponderada. Mesmo que choque os cientificistas partidários da neutralidade ingênua.

O quanto nos resta a dizer é que a versão ingênua do darwinismo social é aquela segundo a qual o trabalhador pobre ou desempregado (que não enriqueceu) é vagabundo enquanto que o patrão é sempre um herói ou um homem esforçado e comedido que partiu de baixo ou que sendo assalariado tornou-se milionário. Já nos referimos diversas vezes a esta fábula ou manobra. E por isso esgotamos o quanto tínhamos a dizer por hoje.

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