segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A formação da política inglesa, a ascensão e queda do socialismo/trabalhismo

Este artigo esta fundamentado nas obras dos seguintes autores:

  • Harold J Laski
  • Christopher Hill 
  • Eric Hobsbawm
Dentre outros


Como quase todos os países europeus (Portugal, Espanha...) também a Inglaterra possui uma tradição aristocrática ou democrática - como queiram - que remonta a idade Média, as cortes, aos barões, aos municípios, etc No caso específico da Inglaterra esta tradição cristalizou-se na carta magna de 1215 assinada por João sem terra.

No entanto não é menos certo e exato que esta tradição ou espírito foi completamente obscurecido pela ascensão do absolutismo tudoriano em meados do século XVI. Mais do que em qualquer outro pais talvez, a presença da igreja romana na Inglaterra constituia uma espécie de 'poder moderador' situado entre a alta nobreza e o 'povo' ou entre a coroa e os nobres, buscando sempre conciliar as partes em conflito e evitar a concentração unilateral de poderes.

Assim sendo, quando Henrique VIII, estabelece uma igreja nacional ou independente (e este não é o problema) e submete-a a si (o problema é este) convertendo a fé em departamento de Estado e arvorando-se - como sustenta Hobbes - em chefe da igreja ou em 'Bispo secular' este equilíbrio é subitamente rompido em benefício da coroa e desta acumulação de poderes espirituais e temporais origina-se uma autocracia bastante forte.

Todavia essa mesma revolução que conferiu poderes absolutos da monarquia alimentou também seus inimigos que são esses burgueses enobrecidos pela posse das terras até então pertencentes a Igreja. Isto porque a coroa não tomou posse da totalidade delas mas partiu-as entre seus apoiantes e esses apoiantes, ao menos em parte, transformaram tais riquezas em capital primitivo, investiram e consequentemente aumentaram seus lucros, sua riqueza e seus poderes. A ponto de em cem anos poderem quebrar o absolutismo real, desafiar a coroa e a igreja, decapitar o rei e criar a primeira república em moldes burgueses de que temos notícia, isto pelos idos de 1649.

Evidentemente que ao tempo de Henrique, suas filhas e mesmo de Tiago I ninguém cogitava a respeito de um futuro tão insólito. No entanto ao mesmo tempo que aumentavam seu poder econômico os senhores burgueses afastavam-se da poderosa igreja nacional, pelo que a oposição política como sói em tais ocasiões converteu-se também em oposição e controvérsia religiosa entre os Bispos da coroa e os puritanos. Aqui misturaram-se os elementos econômicos e religiosos numa amalgama que em certo sentido esboça nossa visão culturalista da História.

A burguesia puritana, que há cem anos apropriara-se - com as graças de sua majestade - do espólio papista, aspirava agora apropriar-se das 'terras comunais' pertencentes aos campônios e desaloja-los de suas pequenas propriedades aumentando inclusive a oferta de mão de obra servil. Aqui no entanto suas pretensões chocaram-se com a opinião dos Bispos chefiados pelo grande Dr W Laud. Além de ter percebido a relação existente entre o poder econômico e o puritanismo, o velho Bispo anglicano percebeu igualmente que o controle de mais terras aumentaria ainda mais a riqueza e o poder dos puritanos a ponto de ameaçarem a um só tempo a Igreja episcopal e a coroa. Em que pese a tardança Laud convenceu o rei a atalhar e dificultar o acesso dos Lordes a tais terras...

Segundo a mentalidade episcopal e inglesa o argumento contrário as aspirações monopolistas dos puritanos foi retirado da 'tradição' atraindo de imediato a simpatia do povo, especialmente dos camponeses. Mais uma vez formou-se a conhecida aliança Coroa + povo contra a nobreza ou Monarquia + 'democracia' (permitam-nos esta liberdade) X aristocracia (de sangue e grana). O elemento de 'contato' entre a coroa e o povo foram os bispos do Estado chefiados por Laud e o veículo deles as igrejas, missas e sermões.

Desde então a Sociedade inglesa ficou completamente cindida em dois campos, os realistas, de modo geral papistas e anglicanos e campônios, e os rebeldes, de modo geral puritanos, sectários, burgueses e pessoas de ambiente urbano. Também estou disposto a crer que a maior parte dos cidadãos estivessem com a coroa. No entanto desde que a pólvora e as armas de fogo principiaram a ser utilizados, quantidade jamais foi problema em situações de guerra. Após cem anos a coroa havia dissipado parte de sua grana tomada a Igreja romana, e já não havia ameaça iminente de invasão espanhola que justificasse tributações. Esgotados os fundos e normalizada a política internacional a coroa inglesa passou a ter dificuldades para obter fundos. Pois segundo a tradição constitucional os impostos sempre deviam ser referendados pelo Parlamento... Ora formado majoritariamente pelos puritanos ou burgueses enobrecidos... Destarte como a coroa optara por dificultar o acesso deles as terras comunais e a fazer estardalhaço em torno das velhas regalias medievais de caráter popular, o parlamento optou por fechar as torneiras da coroa.

Desde então e por algum tempo a coroa passou a ter dificuldades para manter seu 'fausto'. O único caminho aqui era dividir o poder com a burguesia, recuando, satisfazendo suas aspirações e autorizando a grilagem das terras. Evidentemente que se tratava de um caminho sem volta! Pois os burgueses jamais abririam mão do poderio facultado e a coroa ficaria cada vez mais fraca até converter-se numa marionete em suas mãos ou num departamento da 'mão invisível'. O monarca britânico, confiado no apoio dos Bispos e da igreja anglicana optou por resistir e por recorrer a uma solução que lhe era facultada no sentido de obter recursos e decretar impostos a revelia de seus súditos: 'Paramentar-se', subir ao trono e como diríamos hoje baixar uma 'medida provisória' que dispensasse a aprovação do parlamento...

Os puritanos bem sabiam que caso a coroa pudesse obter recursos suplementares e 'armar-se' contra eles, seria muito mais difícil curva-la e tomar posse do poder. Portanto o empenho da coroa em obter recursos e baixar impostos de maneira 'arbitrária' deu lugar a guerra aberta, a guerra civil inglesa, ao cabo da qual os puritanos muito mais ricos e portanto bem armados esmagaram seus oponentes e derrubaram a monarquia. Desde então medidas econômicas de caráter impopular foram adotadas e os pobres camponeses esbulhados de suas terras comunais, pois Laud havia sido enviado ao cadafalso juntamente com o rei e os Bispos anglicanos postos fora da lei e substituídos por pregadores calvinistas.

Acontece que desde algumas décadas havia já em Londres e algumas outras grandes cidades uma espécie de proletariado, cuja situação era bastante precária. De acordo com uma tradição revolucionária e socialista legada pelo anabatismo (pois remonta a Thomaz Muntzer) alguns deles - eram chamados True Levellers (niveladores) ou Diggers (cavadores) - como Gerrard Winstanley principiaram a espalhar teorias e doutrinas comunistas, anarquistas e revolucionárias. O número destes panfletários anônimos não foi pequeno e o impacto de suas obras tampouco uma vez que aqueles que sabiam ler começaram a le-las em seus conventículos de modo que seu ideário tornava-se cada vez mais popular apesar da vigilância exercida por Cromwell e seus partidários. Ademais era Cromwell um lider carismático...

Seja como for o florescimento das teorias radicais não deixava de exasperar tanto aos puritanos quanto a seus adversários realistas ou anglicanos. Naquele momento não poucos foram capazes de extrair a medula do pensamento economicista liberal ou conservador segundo o qual a deposição ou a execução dos monarcas e a alteração brusca das formas políticas abria caminho para a contestação da ordem social facilitando a emergência de um pensamento econômico igualitário ou socialista. A própria implementação da igualdade política sugeria a implementação de uma igualdade econômica e apenas esta aterrorizava os donos do poder. Pois no frigir dos ovos quem controla a econômica acaba sempre interferindo na dinâmica democrática e viciando-a. Democracia associada ao liberalismo econômico é coisa que não se temia pelo simples fato de converter-se em plutocracia, apesar do nome. O que se temia na verdade é que a partir da igualdade política o povo além de deduzir uma igualdade econômica e, habituado a mudanças, passasse a lutar por esse ideal.

Noutras palavras o povão sempre poderia imitar a atitude dos burgueses e nobres e ataca-los da mesma maneira como eles haviam atacado a monarquia e deposto o rei.

Tudo levava os senhores ingleses a crer que as coisas tomariam este caminho, portanto cumpria atuar rapidamente e - pasme o leitor - dividir o poder, reconciliar-se com a monarquia e empossar um rei. Importava apenas que o poder daquele rei não fosse mais absoluto mas regulado pelo parlamento. Tratava-se de uma tentativa de composição entre a monarquia e a aristocracia ou de um modelo misto, germe das monarquias constitucionais e do parlamentarismo, cujas formas foram sendo delineadas após a restauração no decorrer do século seguinte (XVIII). Tudo quando podemos adiantar é que se trata da retomada da forma mista preconizada por Políbio segundo o modelo romana e que o primeiro delineamento teórico foi esboçado por John Locke. A esta composição entre monarquia e aristocracia (de sangue e grana) batizaram como democracia, trava-se no entanto de um 'liberalismo político' não democrático pelo simples fato de que o povão ainda não tinha como inserir-se.

Claro que a atitude dos puritanos foi acolhida de braços abertos pelos realistas. Afinal após a derrota e a execução do monarca eles haviam perdido o poder e não estavam em condições de negociar ou de exigir qualquer coisa. Sendo assim a monarquia consentiu em representar a velha farsa e em transformar-se em espantalho da democracia popular e do socialismo contendo as massas supersticiosas, ao menos por algum tempo, no respeito. A monarquia foi oficialmente restabelecida e todos acharam por bem fingir e afetar respeito para com a pessoa 'sagrada' do monarca. Todavia deste então as decisões políticas passaram a ser cada vez mais tomadas pelos líderes burgueses ou seja pelos membros do parlamentos e primeiros ministros após terem consultado e ouvido os banqueiros e industriais.

Graças a esta estratégia, que é uma pérola do primitivo pensamento conservador, o espectro de uma Revolução nos moldes populares de uma Revolução francesa pode ser conjurado por mais de século e no caso de Albion até os dias de hoje.

Todavia ainda faltava um elemento e o mais delicado e perigoso.

Afinal o próprio progresso técnico e necessidade de lidar com máquinas cada vez mais complexas, com o fluxo de compra e venda, com pagamentos de salários, etc determinou que ao menos parte dos proletários tivessem de receber uma instrução básica em termos de escrita a cálculo. A própria demanda administrativa gerada pelo capitalismo impedia que todos fossem mantidos na ignorância crassa tal como no século precedente e segundo as aspirações de Voltaire. Ao menos alguns precisavam receber uma formação sumária. O problema foram as novas perspectivas franqueadas pelo letramento de parte das massas. Afinal quem é que garantia que tais homens limitar-se-iam a ler apenas as planilhas, os livros e firma e a Bíblia?

No caso da França um letramento insipiente foi o quanto bastou para que as ideias revolucionárias suscitadas pela teoria democrática se alastrassem muito rapidamente entre as massas, já porque havia o recurso da leitura comum realizada em conventículos. Em que pesem as fiscalizações, restrições e intervenções punitivas da coroa. Solapada pelos ideais democráticos a monarquia francesa também veio a cair em 1789 e embora os girondinos, que representavam a alta burguesia nacional, forcejassem por conter a revolução nos limites do constitucionalismo e dos moldes ingleses tradicionais seus titulares foram encarcerados na torre e decapitados. Tal e qual os espertos girondinos temiam após a morte do monarca e a adoção de um republicanismo radical principiaram mais uma vez, como cem anos antes, a fermentar ideias de caráter socialista e anárquico (no sentido de uma democracia mais popular ou direta). E eis que surgem os Herbetistas e enfim os babovistas, herdeiros de Robespierre. O qual por sinal acabou decapitado...

Desde então a burguesia reassumiu o controle e guilhotinação no sentido de conduzir a república a seus limites normais i é políticos e evitar quaisquer transformações de caráter econômico.

Mais uma vez os argutos ingleses, herdeiros de um pensamento conservador atilado, perceberam os 'sinais dos tempos' deduzindo que era necessário adiantar-se e fazer uma nova composição (recomposição) de poderes ou assistir o desabrochar de uma catástrofe sem precedentes. Ademais a Sociedade inglesa estava bastante vulnerável ainda em razão da Guerra da Independência Norte Americana. Sob o impacto deste trauma e a ameça de algumas pequenas rebeliões e levantes isolados os lordes ingleses puderam compreender perfeitamente o sentido da 'fumaça' o que havia na base. O fogo deveria ser apagado a qualquer custo. Urgia implementar o pão e circo (afinal inglês algum toleraria ser enviado aos 'brioches' pelo monarca!) e incorporar certo elemento verdadeiramente democrático a estrutura do poder.

Para os lordes ingleses esta constatação deve ter causado profundo impacto e produziu verdadeiro trauma porque exatamente naquele momento cogitavam revogar por completo todas as poucas leis sociais remanescentes do período medieval e estabelecer o regime da concorrência ou livre mercado segundo os cânones clássicos de Smith e Ricardo. Logo dar poder ao povo naquele momento bem podia significar um entrave a este projeto. Felizmente o pão e circo das leis assistenciais pareceu surtir efeito, ficando as reformulações proteladas... Até que surgisse algum perigo. Mesmo porque os guardiães ingleses eram hábeis em identificar os perigos.

Curiosamente uma nova reação popular, alias bastante compósita e intensa, só veio a ocorrer após os lordes terem revogado as leis assistenciais e introduzido a dinâmica capitalista nos já citados moldes clássicos. Desde então a lutra revestiu-se de dois aspectos: a revindicação da ampliação do liberalismo político num sentido cada vez  mais democráticos e a partir da ampliação do poder político das massas a revindicação de mudanças econômicas opostas as aspirações do capital. Assim a luta inglesa foi a um tempo politica e institucional e a outro econômica. E eles usavam do poder politico adquirido para golpear o liberalismo econômico ou restringi-lo. Esta política contou com o apoio de um grupo ideologicamente bastante heteróclito formado por Anglicanos da alta igreja, metodistas, 'Católicos' sociais, espíritas, deístas, ateus, alguns quackeres e anabatistas, etc Religiosamente a resistência capitalista teve por janízaros os calvinistas (antigos puritanos) e sectários.

Como naquela dinâmica havia uma compreensão mútua entre as partes o processo encaminhou-se justamente naquela direção já prevista pelos ancestrais do conservadorismo e consistiu em abrir mais e mais a brecha feita pela democracia até conter as pretensões do liberalismo econômico e - algumas décadas antes de J M keynes - implementar um estado de bem estar social representando por um aparelho de inclusão e promoção humanas. Queremos dizer com isto que os liberais não estavam dispostos a questionar a viabilidade da democracia até a exasperação de seus contrários e o estourar de uma Revolução nos moldes da temida Revolução Francesa cujo fantasma sempre perseguia-os. Então eles conheciam os limites da resistência e até onde podiam ir sem maiores perigos. Grosso modo toda política inglesa ulterior, pautada na negociação e na conciliação a partir de uma estrutura eclética teve como parâmetro a Revolução Francesa. E quando a Revolução Francesa sai de cena pelos idos de 1900 estoura outra revolução não menos virulenta, a Russa.

A bem da verdade quando a Revolução Russa estoura em 17 o modelo trabalhista inglês ou modelo anglo saxão de bem estar social já estava completamente acabado. No entanto o fato de ter sido mantido por quase um século, até a era Tatcher que corresponde a sua demolição só pode ser compreendido a luz da Guerra fria e do receio instintivo dos ingleses face a simples possibilidade de uma nova Revolução. Os ingleses sempre foram bastante práticos, jamais perderam a cabeça e sempre souberam que eram melhor negociar e perder parte de seus privilégios ou compartilha-los do que perde-los por completo. Neste sentido souberam ser inteligentes.

Por isso que desde 1880 e ao cabo de um século adotaram um modelo socialista de bem estar e o mantiveram premidos como encontravam-se por duas Revoluções, a francesa e a russa. Eles sabiam que após ambas as revoluções o mundo não seria mais o mesmo e que a totalidade das antigas organizações não podia ser mantida. Como os passageiros de um avião que esta a cair lançam fora as bagagens eles sabiam que precisavam sacrificar algo e alterar e recompor seu modelo econômico. Dai esta associação eclética entre monarquia (elemento tradicional e simbólico), aristocracia (elemento financeiro) e democracia (elemento popular), que muitos tem em conta de genial. Que semelhante estrutura política propiciou a restrição das ambições capitalistas e consequentemente a implementação de um modelo socialista nos domínios da institucionalidade e portanto sem efusão de sangue e destruição de patrimônio cultural ninguém pode negar.

Dirá o amigo leitor que estou enganado pois o modelo trabalhista inglês acabou sendo demolido e a tal 'Revolução pacífica' ou institucional revertendo mais uma vez ao capitalismo. Neste caso eu lhe pergunto a respeito da Revoluções agressivas ou violentas. Qual delas não acabou revertendo?

A francesa reverteu em questão de alguns poucos anos após a morte do 'incorruptível'... A Russa manteve-se por cerca de setenta anos... A mexicana perdurou por trinta e seis anos (até 1946) apesar do saldo de dois milhões de mortos. Assim se a situação política e econômica da Grã Bretanha acabou revertendo ao menos a implementação do novo modelo (trabalhista) fora feito pacificamente, sem que um único cidadão tivesse de perder a vida. 

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