domingo, 1 de agosto de 2021

O toque de Midas ou onde está o melhor de nós mesmos? (Uma reflexão sobre as Olimpíadas de Tóquio.)



Busco e quero ter uma compreensão equilibrada sobre a condição humana. Assim uma visão que fuja a pisada dicotomia materialista/imaterialista, fisicista/espiritualista, corporal/idealista... Julgo que o dionisíaco - Se compreendido como corpóreo ou esportivo - e o apolíneo devam caminhar juntos ou lado a lado.

E não creio fugir ao verdadeiro Sócrates. O qual se face a Cármides sobrepôs a mente ou a alma ao corpo foi justamente porque uma exacerbação do dionisíaco concentrava-se mais na aparência, na beleza, no preparo físico e no esporte do que na mente, colocando o espírito em segundo plano e quebrando um ideal de harmonia. Foi Platão, não Sócrates, que passando a outro extremo, rompeu mais uma vez com o equilíbrio puxando as coisas para o apolíneo.

Sócrates, se bem compreendido, foi um profeta que fugindo a tais extremos reconheceu a dignidade tanto do corpo quanto a mente. Ele jamais depreciou o corpo físico dirigindo suas críticas, sempre sóbrias, apenas aos que super valorizando o corpo ignoravam supinamente os domínios da vida interior ou como costumava dizer ele, da mente.

Jamais opôs o corpo a mente ou a mente ao corpo, dando asas a esse funesto conflito de extremistas.

Assim os mesmos gregos que nos deram as Olimpíadas nos deram igualmente a Filosofia, havendo entre eles, quem adotando o paradigma de Sócrates, dedicou-se a ambas as coisas: Ao Esporte ou aos cuidados corporais e a Filosofia ou ao cultivo da mente; do que resultaram personalidades equilibradas e admiráveis.

De fato aquele que dedicasse apenas ao esporte ou ao corpo descuidando de alimentar a mente merece, mesmo quando campeão ou vitorioso, ser tido em conta de tolo ou imbecil. Quanto a isso nossos futebolistas e alguns outros esportistas assemelham-se muito mais aos gladiadores romanos. Os quais amiúde descuidavam de suas almas, sendo notáveis pela estupidez. A maior parte deles no entanto contava com o atenuante ou o álibi da escravidão, enquanto que nossos futebolistas estúpidos não somente são livres mas imensamente ricos... Outro aspecto comum a cultura romana tardia ou da decadência e a nossa é que as massas encaravam os gladiadores como deuses ou heróis, tomando-os por modelos... Nada de novo debaixo do sol.

Tampouco é sábio o que sobrepõem a alma ao corpo ou o pensador que deprecia o complemento físico da mente. Posto que deixando de cuidar do corpo, de exercer a higiene, de praticar algum esporte suicida-se lentamente, diminuindo o curso da própria vida por fazer-se vulnerável a diversas enfermidades. Enquanto fácil seria para ele concluir que permanecer no corpo ou prolongar sua vida amplia a possibilidade de aprender. 

Posto está que devemos cuidar tanto do corpo quanto da mente. Pois conservando a saúde aumentaremos nossa longevidade e aumentando nossa longevidade poderemos aprender ainda mais, e por fim nos tornar melhores. 

Dentro deste quadro as olimpíadas, servindo de contrapeso a certas filosofias desequilibradas, maniqueístas ou espiritualistas correspondia a um grande bem. Pois ensinava aquelas pessoas a preocuparem-se com seus corpos mantendo-se limpas e saudáveis.

Bem. Não tenho absolutamente nada contra o esporte ou as olimpíadas e menos ainda contra o corpo quando enquadrado nessa perspectiva equilibrada. Reconhecendo que o esporte e as competições esportivas correspondam a um precioso bem. 

Tal o caso das artes. Entre os mesmos gregos.

Pois ignoravam eles as pressões exercidas pelo Mercado. Pressões que tanto angustiavam um Paul Valéry, um H. Hesse ou ainda um Tom Wolfe. De fato a escrita atual, (Não darei a ela o nome de literatura.) destinada a satisfazer os impulsos acalentados pelas massas consumidoras, implica a morte da arte. E não há mais espaço para obras de arte no mercado editorial. Não nos enganemos, cada um de nossos clássicos: Sófocles, Eurípedes, Dante, Camões, Cervantes, Shakespeare, Moliére, La Fontaine, Defoe, Swift, etc seriam recusados, por não serem vendáveis. 

A pressão econômica estabelecida pelo Mercado esta matando a verdadeira arte - Daí o apelo a essa arte degenerada a que chamam de moderna, a qual vende! Pois não pensamos mais em qualidade e não mais buscamos a beleza mas apenas o ganho ou o lucro. A arte no entanto é arte justamente por ser inútil e por esgotar-se em si mesma ou na beleza que exprime. Se é lucrativo ou vendável há muito poucas chances de que tenha conteúdo ou qualidade, ao menos numa conjuntura como a nossa. 

Repito e insisto, o Mercado não é uma ameaça (E os comunistas e anarquistas estão cagando para nossa reflexão!) ao patrimônio ecológico, histórico e cultural, mas também a produção artística. Por serem modernistas comunistas e anarquistas vem ao auxílio de seus 'inimigos' capitalistas com o propósito de ocultar a situação que é dramática. Não assistimos apenas a extinção dos rinocerontes ou a morte das baleias, mas também a extinção das mais sublimes expressões artísticas e a morte da qualidade.

Evidentemente que isto também toca a arte ou se não toca a arte em sua expressão pessoal, certamente toca as competições e, em especial as Olimpíadas modernas, onde talvez esteja oculto o pior de nós... Na medida em que por trás de todo esse frêmito esportivo jaz a sede insaciável do lucro. Claro que não me refiro eu a totalidade dos artistas posto que nem todos cogitam em viver da arte ou em lucrar com ela e não poucos são movidos por um ideal tão comovente como os atletas da antiga Grécia. Outro o caso dessa estrutura a que chamamos Olimpíadas, o que como disse já manifesta em competições menores. Parece no entanto que abordar tal tema é espécie de tabu.

Bem, como de praxe vou aborda-lo e colocar o dedo no fundo da chaga purulenta...

Antes porém vou narrar sucintamente um apólogo, o do rei Midas.

Midas, rei da Lídia, aspirava ser o homem mais rico de toda terra. Por isso quando o deus se lhe manifestou e concedeu-lhe um desejo (Como na narrativa árabe do gênio da lâmpada.) o rei sem pensar rogou que tudo quanto viesse a tocar se transforma-se em ouro reluzente e precioso, graça que não tardou em converter-se em maldição para ele... Paro por aqui e quem tiver curiosidade dirija-se ao velho Pe Chompré.

Fato é que tudo quanto o desventurado Midas tocava convertia-se em outro: A maça, a alface, a corça, o tapete, as sandálias, etc absolutamente tudo, sem exceção.

Qualquer semelhança entre o desditoso rei da Lídia e nosso sistema capitalista é mais do que pura e simples coincidência. Pois tudo quanto é tocado por ele, pois mais belo que seja, é transtornado, como que tendo alterada sua condição natural. Midas dourava a tudo quanto tocava. O economicismo contamina, poluí ou envenena tudo quanto toca removendo-lhe a qualidade ou destruindo-lhe a beleza. Fez assim com a arte... criando essa coisa chamada arte moderna. Faz assim com o patrimônio histórico, imolando-o a especulação imobiliária. Faz assim com o patrimônio ecológico exterminando-o sem dó ou piedade. Faz assim a ciência que afeta neutralidade transformando-a em investimento. E o faz também com o esporte, em sua dimensão social ou competitiva explotando-o.

As consequências do economicismo, já desveladas pelo douto K Polanyi, em todos estes campos: Arte, patrimônio histórico, patrimônio ecológico, pesquisa científica, atividade política, etc agora vamos desvenda-la no campo do esporte, porém em sua dimensão social, na dimensão social das competições, particularmente nesse arremedo das olimpíadas gregas que são as nossas olimpíadas. O que como disse começa pelas competições menores.

Via de regra gostamos de imaginar o resultado das competições esportivas como resultado de um esforço honesto. Pois não sendo assim perdem elas sua razão de ser.

Deve portanto ser algo imprevisível e livre.

E jamais algo adrede calculado ou decidido.

Vão as pessoas ao estádio assistir as tais partidas de futebol crendo que seu Time tem chances iguais e que a partida até que ocorra é indecisa. 

Todavia há muito mais do que esporte em jogo.

Lamento querido sectário futebolista, ora convertido em 'idealista' ingênuo... Pois nem sempre as coisas se sucedem assim e nem sempre a vitória de seu time é resultado do esforço honesto ou da perícia. Não, nem sempre se trata da tal superação.

Pois os grandes Clubes em especial converteram-se em empresas. Instituições religiosas ou seitas converteram-se em empresas. Hospitais converteram-se em empresas e pasme, até a administração pública, para o PSDB ou o DEM por exemplo, adotou o sistema empresarial, definido não em termos de eficiência máxima, mas em termos de lucro máximo... Nada de novo debaixo dos céus...

Por isso seu Time demanda por patrocínio ou financiamento empresarial. Em termos de milhões de milhões... E por isso empresários, políticos e celebridades disputam ferozmente a presidência do Clube e as razões são óbvias. 

Há toda uma rede de relações econômicas que se estende das empresas patrocinadoras - Que aspiram tornar-se visíveis aos torcedores quando os Clubes que subvencionam conquistam algum título. - as diretorias dos Clubes, arbitragem, campeonatos, etc 

Não saltam as manobras a vista dos torcedores fanáticos e irracionalistas - Que só pensam em termos da 'Garra' de seus times. - porque jamais foram objetos de algo como uma C P I... Do contrário, a começar pelo Futebol, parte de nossos esportes desabariam um após o outro e mergulhariam num abismo de lodo. Por vezes no entanto, como a ponta de um Iceberg, vem tais informações a tona - Inda que a grande imprensa busque proteger as empresas esportivas, tudo ocultando. Vez por outro no entanto surge o boato ou a denúncia de que tal árbitro tenha sido comprado, de que tal atleta tenha sido comprado ou (Pasme!) que tais Times tenham acertado o resultado de uma partida com o objetivo de garantir tal campeonato, visando os interesses das grandes patrocinadores! Isto deve ser mais comum do que pensamos: O acordo prévio entre dois ou mais times tendo em vista o resultado não apenas de uma tal disputa mas da competição como um todo... 

Admitida tal invasão por parte do poder econômico que resta, não do esporte - O qual bem posso praticar em meu prédio, numa praça ou várzea. - mas dessas competições colossais divulgadas a peso de ouro pela grande mídia? Se é a fábrica de cerveja ou de tênis que decide os resultados de uma partida ou competição que é desse heroísmo místico instilado pela Globo ou pelo SBT??? Se há uso de estimulantes, corrupção entre os árbitros, venalidade por parte dos atletas, acordos entre os clubes, pressão por parte dos patrocinadores tudo isso não passa de farsa destinada a garantir lucros e nada mais, nada além.

Diante disto me pergunto e questiono: Estarão as Olimpíadas modernas, situadas em tal quadro, expurgadas do sentido do lucro?

Naturalmente que não.

Quiçá haja menos corrupção e venalidade em comparação com o Futebol brasileiro. Todavia não há como ter certeza.

Para mim o esforço leviano no sentido de realizar as tais Olimpíadas no ano passado, durante o auge da epidemia é comprometedor e diz muita coisa. Não creio que seja da natureza do esporte em si essa urgência descabida... Ou de fato estaria sendo ofensivo para com o espírito esportivo. Julgo que as Olimpíadas sequer devessem ser realizadas esse ano e por razões óbvias... Então por que tanta pressa??? O leitor sagaz adivinhe o que realmente está em jogo, a ponto de comprometer políticas sanitárias??? Necessidades esportivas ou artificiais? Advindas do heroísmo ou de pressões externas a ele? 

Temos diante de nós um quadro geral ou mundial tão assustador quanto ao do Brasil bolsonarista com empresários e pastores clamando por trabalho e normalidade em meio a uma praga semelhante a velha peste negra... Algo impensável para os medievos que encaramos como 'atrasados'. Afinal que há de mais bronco do que clamar por uma vida normal enquanto uma epidemia ceifa vidas preciosas? Que há de mais canalha e desalmado do que pensar apenas em si e em seus interesses financeiros face a uma calamidade geral ou mortandade? Bem, parece que esse egoísmo insuflado pelo economicismo, tocou as Olimpíadas... 

E concluo que a urgência não é de esportividade mas de lucros, especialmente por parte das grandes marcas que se promovem através do patrocínio, da mídia e - Ao menos no Japão. (E bem poderia ser no Canadá, na Austrália, nos EUA ou no Brasil.) - do setor dos transportes e do turismo... É de tais setores econômicos que parte esta ansiedade artificiosa e irracional. Claro que contam tais setores com a solidariedade de atletas de tem no esporte um meio de vida e de políticos sem consciência. Quanto aqueles esportistas conscientes e éticos, que valorizam o esporte pelo esporte, estes certamente estariam dispostos a esperar pelo tempo que necessário fosse, posto que priorizam a vida humana.

Diante de tantas obviedades só posso concluir que por trás dessas Olimpíadas precoces está o toque de Midas ou o "Pior de nós mesmos.".

Então onde está "O melhor de nós mesmos."? Acaso existirá mesmo?

Não tenho dúvida de que exista de fato.

Não nos esportistas acríticos ou ambiciosos (Por dinheiro ou mesmo por medalhas!), tampouco nos futebolistas estúpidos, menos ainda nos artistas superficiais e sequer nos revolucionários ferozes...

Então onde estará esse espírito heroico e elevado, que desperta de fato o melhor de no mesmo?

Nos Hospitais e enfermarias. Entre os médicos, enfermeiros e voluntários que cuidaram ou cuidam dos que foram infectados pelo vírus da Covid. Entre os obscuros e humildes 'atletas' da saúde se encontra o melhor de nós e da humanidade. Eles são os campeões, eles são os imortais, eles fazem jus a aclamações, aplausos e medalhas...


Enfermeiros, médicos,
Vítimas do desdouro,
Medalhas merecem:
De prata e de ouro!


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