quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Cristianismo, Bíblia, Direito Romano e absolutismo


 


Quero compartilhar, por meio deste artigo, algumas reflexões sobre a afirmação do Absolutismo no contexto Cristão e suas fontes. A bem da verdade quero estabelecer comparação entre os Catolicismos e o Protestantismo no que concerne ao Absolutismo ou melhor dizendo a sua defesa.

Via de regra tendemos a identificar o romanismo como principal promotor desta forma odiosa e entre nós um pastor protestante, equilibrado e de imensa cultura, foi por este caminho, a saber, Guaracy Silveira em Lutero, Loyola e o totalitarismo. Quiçá tenhamos de repensar nossos preconceitos.

Devido a patacoada do libre exame, tendemos - e a relação é francamente absurda - a relacionar o protestantismo com a democracia ou mesmo com o liberalismo político/pessoal. A superficialidade faz com que passemos a largo do discurso de Lutero a respeito dos camponeses insurretos, bem como da nova Genebra 'criada' por J Calvino e descrita pelo insuspeito Pierre Van Paasen como o 'Primeiro campo de concentração da humanidade'. Ora esta Genebra fora democrática sob o domínio da fé romana... E assim diversas cidades e cantões suíços durante boa parte da baixa Idade Média, antes que a Reforma protestante sequer fosse pensada. Temos de repensar nossas avaliações.

Longe de mim negar a existência de uma doutrina ou crença absolutista no seio da Igreja antiga. E temos de saber que ela ai está e que a encontramos já nas obras de Adam de Iona o qual floresceu no século VII, primo de Columba e contemporâneo de Beda, o venerável. Além disto, no Oriente, temos o exemplo da prática. Assim Justiniano praticou com sucesso o cesaropapismo. Não Constantino - que segundo S Eusébio jamais intrometera-se em assuntos teológicos e sempre respeitara os Bispos - mas Justiniano, o herético, aftardoceta e capacho de Teodora, foi quem pela primeira vez tratou os clérigos como servidores merecendo ser apresentado como tirano cruel por S Isidoro Hispalense. De fato ele foi o primeiro a tentar submeter a Igreja de Cristo e a controlar o clero, e o único a ser, até certo ponto, bem sucedido. E fato de que as Institutas ou Pandectas tenham sido elaboradas por ordem sua não deve passar em branco...

Constantino como já dissemos apenas observou o quanto os Bispos faziam, respeitando a liberdade deles e da Igreja. Teodósio submeteu-se reverentemente ao juízo de S Ambrósio portando-se como filho da Igreja e assim os Basileus do quinto século, cujas figuras empalidecem face as do astuto Cirilo, do sábio Leão, do mártir Flaviano e de outros líderes que puderam traçar, livremente, os caminhos e destinos da Igreja.

Justiniano todavia era iniciado no 'Imperium' ou seja em tudo quanto os juristas romanos escreveram sobre a autoridade política e seus limites a partir de César Augusto. Basta dizer que este direito lisonjeiro não apenas colocava o soberano acima da Lei como dava sua vontade por inquestionável e absoluta. E não nos devemos espantar, pois para os antigos romanos era o Imperador um deus... a exemplo do Faraó, filho de Rá, entre os egípcios. Justiniano certamente não tinha opinião demasiado humilde a respeito de si mesmo... Em Roma teria dado um excelente deus, a exemplo de Augusto ou de Calígula. No contexto Cristão teve de contentar-se com ser representante de Deus... Acontece que o Deus Jesus Cristo tomara doze pescadores por representantes e não Augusto César. Justiniano não prestou lá muita atenção neste grave detalhe ou não quis leva-lo a sério, e assim seus pretensiosos sucessores como Zenon (o do Henotikon), Heraclio (o da Ekthesis), Leão; o Isaurico, Constantino Kropronikos, etc os quais pretenderam governar a Igreja de Cristo e poluir-lhe a Santa doutrina...

No entanto enquanto a pentarkia foi mantida e os demais patriarcados estiveram em comunhão territorial e política jamais puderam ser bem sucedidos em suas intrigas. Por outro lado após o triunfo do islã e a impossibilidade de congregarem concílio gerais frustrou-se para sempre o intento de impor suas opiniões como Dogmas de fé ou de abusar do Concílio. E apenas a Igreja de Constantinopla permaneceu como feudo deles. Venceram mais uma vez ao impor, com objetivos políticos, o palamismo. Mas não sem terem enfrentado feroz resistência em sua própria cidade... E nem sempre a sorte lhes foi propícia face a autoridade patriarcal. Pelo que jamais conseguiram submeter nossos Ortodoxos ao papa romano ou uni-los por via da força a Igreja latina... Até que Mohamed IV, filho de Amurat, quebrou-lhes o cetro orgulhoso. O patriarcado no entanto subsistiu...

Em suma, apesar das circunstâncias o Basileu nem sempre logrou manipular e controlar a Igreja Bizantina. E sempre houve um número significativo de clérigos e dignidades que se opuseram a seus desígnios politiqueiros.


Significativo que no contexto Oriental ou Ortodoxo os Basileus não tenham recorrido sistematicamente a Bíblia com o objetivo de firmar sua autoridade absoluta, ao menos em política e o douto Anthony Kaldellis avança, ao identificar elementos democráticos ou parlamentares no Império Bizantino. Temos de le-lo, sem dúvida.

Outro foi o caso do Ocidente latino, onde as mentes inclinavam-se para o Livro muito precocemente. Assim Carlos Magno é repetidamente apresentando, por seus teólogos como um 'Novo Davi', sem que no entanto pretenda tratar a Igreja local como um Basileu constantinopolitano. Nas Gálias, como na Hispania, o metropolita continua a reger sua Igreja aristocrática ou democraticamente, i é por meio dos sínodos, os quais mantiveram-se até a ascenção do papado. Carlos Magno, a exemplo de Constantino não entra em assuntos teológicos ou propriamente religiosos. Usa indevidamente a espada para promover a fé, mas não é um Justiniano.

No Ocidente como é sabido, as coisas se sucedem em sentido inverso, e o patriarca ou papa é que se converte em rei dos reis ou Imperador, num Imperador da fé, embora com fortes conotações políticas, até a soberania temporal e a teocracia.

É evidente que em semelhante contesto, de uma Igreja monárquica com fortes pretensões ou políticas, dificilmente prevaleceria a doutrina do direito divino dos reis ou do absolutismo régio. Aqui o Papa deve ser compor com o Imperador, o Imperador com os reis, os reis com os senhores ou a nobreza, os senhores e nobres com os cavaleiros, estes com os monges ou clérigos e todos com as cidades livres... E temos a velha noção de autoridade em círculos concêntricos até certo ponto autônomas, das comunidades intermediárias enfim. Tendo sido dito inclusive que nossa liberdade e nossos direitos correspondem a um nicho aberto pela luta travada entre essas diversas comunidades, que objetivavam submeter com exclusividade a pessoa. Quanto a esta tese teríamos de examinar tanto mais de perto o triunfo do absolutismo para, em seguida, valida-la ou não. Tal não é a proposta deste artigo.

Tudo quanto queremos dizer é que durante algum tempo os defensores do direito divino dos reis ou do absolutismo monárquico, tiveram de manter-se a margem da Igreja romana. Assim Wycliff... Posto que Marsiglio de Pádua, se bem que jurista, sustentou a doutrina da soberania popular, antecipando Locke e Rousseau. E em tempos mais adiantados Maquiavel, o qual de modo algum recorre a Bíblia, pelo simples fato de ser incrédulo.

Acho significativo que Wycliff tenha sido absolutista, biblista - como se diz - e precursor da Reforma protestante. O que de pronto nos levaria a Lutero, Calvino, Th Erasto, Tiago VI, Hobbes por terem bebido na mesma fonte. Filmer apesar de não ser protestante (Era episcopal ou anglicano) não foge a regra...

Tornemos assim a Bíblia.

E a política nela inspirada. Começando pelo antigo testamento. Tão caro a nossos protestantes, formados na crença de um Corão 'cristão' (I é na crença em sua inspiração linear e plenária).

Como sói a respeito de praticamente tudo não existe acordo entre as partes do Antigo Testamento a respeito do poder. Pelo simples fato de que não existe um antigo testamento unitário, exceto nas mentes dos fanáticos. O que existe ali são diferentes perspectivas conforme a mentalidade do autor de cada um dos registros. Apesar disto prevalece nitidamente uma orientação teocrática. A qual bem pode ser definida como reação sacerdotal face a uma realeza independente. Não estou, em momento algum, referindo-me a um governo naturalista, laico ou liberal (seria absurdo) mas apenas a um poder que não é diretamente exercido pelo sacerdócio ou controlado pelo templo. A um poder que até deseja promover a unidade religiosa ou servir a fé, e que no entanto é próprio e até certo ponto autônomo.

A impressão que se tem a ler os crimes e pecados da realeza é que Samuel, porta voz da teocracia, estava certo. A realeza exercida por profanos correspondia a uma decadência... Os hebreus deveriam ter permanecido sempre debaixo das asas do clero ou da tutela do sumo sacerdote de Jerusalém, o qual continuaria a subministrar-lhes as decisões e decretos de Jao. Temos aqui um governo de inspirados ou profetas orientados diretamente pelos céus. Tal o ideal do antigo testamento. Não um rei que representasse ao deus, mas um Sacerdote que desempenha as funções reais em nome do deus. E temos aqui algo muito pior do que a monarquia absoluta, temos um califado!

Assim todo biblista que conhece profundamente o testamento velho e professa ser ele pura palavra de deus assume uma perspectiva teocrática.

Devemos confessar no entanto, que desde Dawid, não é ela a única perspectiva vetero testamentária. Existe uma outra, paralela ou rival em torno do trono de Davi ou da dinastia davídica, a qual tornou-se cara aos cristãos ou predileta devido ao fato do Senhor Cristo ser descendente carnal de Davi. A partir daí a propaganda davídica ganhou os corações de muitos cristãos devotos. Davi seria o rei conforma o coração de deus e modelo da realeza agradável. Segundo esta concepção também o rei pode servir ou mesmo representar a deus, da mesma maneira de o sumo sacerdote. Aqui o rei piedoso, que imita Davi, converte-se em ministro de deus.

Tal a perspectiva mais comum ao tempo de Jesus Cristo pelo simples fato de que os fariseus odiavam profundamente os saduceus, representantes do partido sacerdotal. Afinal os saduceus, guardiães da Toura sabiam que seus adversários haviam adicionado elementos espúrios - como anjos, imortalidade da alma, ressurreição, etc - a fé ancestral, e folgavam espalha-lo aos quatro ventos, exasperando os rabinos... Destarte a versão teocrática achava-se desacreditada entre os fariseus e entre as massas por eles controladas. Prevalecendo a mística em torno do trono de Davi ou de seu descendente carnal, o Messias... A bem da verdade o grosso dos judeus aspirava pela independência sob a tutela de um rei, tal e qual as outras nações. Sendo assim eles criaram uma tradição ou uma linha de pensamento segundo a qual todo rei piedoso era um ministro de deus...

Gamaliel era certamente porta voz desta doutrina, a qual comunicou a seu aluno Paulo de Tarso, chegando ela a Romanos 13,1 - 7, donde passou a Wycliff, Lutero, Erasto, Calvino, Tiago I, Hobbes, Filmer e mesmo ao Bispo romano J B Bossuet... Embora haja outro eco seu em I Pedro 2,13. Assim a doutrina do direito divino é apostólica ou pertencente ao antigo testamento. Como a doutrina da teocracia é bíblica, por constar no velho testamento.

Tornam-se por isso Cristãs, sagradas e incontestáveis, a maneira de dogmas?

Como queria os personagens acima citados? Partidários do Corão Cristão...

Como não estou compondo um ensaio religioso, mas político, limitar-me-ei a perguntar: Mas e Jesus? E Jesus Cristo? Teria ele ensinado tais doutrinas?

Chegado a este ponto abro meu Evangelho e leio: A César o que é de César e a Deus o que é de Deus - Assim as coisas de Deus não são de César e as coisas de César não são de Deus. Pois se as coisas de César são de Deus por que as coisas de Deus não seriam de César... Assim se o César faz política em nome de Deus, Deus bem pode atuar por meio de César. E chegamos a monstruosidade absoluta: Foi Deus mesmo que fez os Césares pagãos perseguirem seu povo e extermina-lo. E quando os Cristãos eram sadicamente torturados no fim das contas era o bom deus que os torturava através de seu servo o Imperador.

Evidentemente que os atos de César nada tem a ver com os atos de Deus e vice versa. Nem são os governantes deste mundo servidores ou ministros de Deus, nem é Deus autor da política mundana. Temos de ser honestos e de confessar que os apóstolos, reproduzindo as opiniões dos fariseus, escribas e rabinos estavam redondamente equivocados. Temos de abandonar Pedro e Paulo para seguir a Jesus Cristo e assim reconciliar-nos com o mundo civilizado. Nem petrismo, nem paulismo mas Cristianismo puro e simples, pautado no Evangelho.

Temos aqui os dois fundamentos do pensamento teocrático: O direito romano e os escritos apostólicos ou o antigo testamento, a Bíblia enfim. Uma fonte é politeísta, devendo por isso mesma ser corrigida a luz da divina Revelação e da razão. A outra é judaica ou rabínica, fazendo jus a mesma correção. Nenhum deles parte do Evangelho ou da palavra de Cristo, e já podemos dizer que nem o direito divino dos reis, nem o absolutismo monárquico são legitimamente Cristãos. São doutrinas anti Cristãs e anti Católicas mais próximas do biblismo e do paganismo antigo.

Agora por serem bíblicas não puderam elas deixar de florescer no contesto protestante de par com a ilusão nacional, e enfim de par com a mística nacionalista. Grosso modo nacionalismos, absolutismo e capitalismo constituem-se juntos a sombra de um Cristianismo dividido ou do protestantismo. Ora pretende o Capitalismo substituir o Catolicismo Ortodoxo enquanto elemento comum ou unificador, embora Durkhein tenha deixado bem claro que o econômico, socialmente compreendido é um fator de desagregação ou dissolução, mormente quando associado ao nacionalismo e ao sectarismo religioso. Daí a presença das guerras no continente Europeu até 1945 e após a queda do muro de Berlim novamente.

Compreenda, amigo leitor, que os homens sempre tem buscado um elemento comum, capaz de aproxima-los ou de unifica-los - As religiões antigas ou pagãs, depois as grandes religiões universais, a Divindade naturalmente percebida, a Lei natural, a Razão... O ideal 'Católico' de Sócrates, Platão, Aristóteles, Alexandre, Zenon, etc jamais fora posto de lado pela cultura europeia. Era um ideal civilizatório. Impulsionado pela instituição Cristã... E todos sonhavam com este Uno ou com esta unificação, que os modernos, a exemplo de Crane Brinton, Berlin e Gray, tem em conta não apenas de falta mas de nefasta.

Por 1500 anos os Cristãos levaram adiante este sonho. Até o momento em que o alemão Lutero rasgou a túnica do Senhor. Não com suas opiniões sobre a salvação, fossem quais fossem eles, mas com o método individualista, subjetivista e relativista do livre exame. Produziu ele, no corpo de Cristo, uma ferida que jamais foi fechada e ela se chama divisão. Desde então o Cristianismo definhou e multidões perderam a fé... Pela porta da Reforma com suas seitas e credos beligerantes a incredulidade instalou-se na Europa. Agora imaginem os senhores o impacto que esta visão produziu nas mentes daqueles que mal haviam saído da Idade Média.

Na Inglaterra, precocemente unificada e centralizada, o monarca aproveitou-se do momento para conquistar o poder absoluto numa escala jamais pensada ou nacional. E para tanto, partindo da 'Bíblia' - i é de Paulo e Pedro - e tomando o exemplo de Justiniano e dos basileus, proclamou-se chefe da Igreja local ou Inglesa, que logo passou a chamar-se anglicana. E não se tome o termo chefe por alegórico mas em seu sentido literal. Como a igreja inglesa não possui-se um patriarca Henrique VIII assumiu modos de papa e patriarca, de dono, senhor ou proprietário duma igreja cujos verdadeiros líderes, os Bispos, isolados uns dos outros, não podiam fazer-lhe frente.

Se compreendemos um monarca absoluto como alguém que tudo controla, diretamente, Henrique VIII foi o primeiro deles. Pois ao abater a Igreja Romana abateu todas as instituições medievais ou comunidades intermediárias. Com a Igreja tombaram mosteiros, guildas de comerciantes, universidades, corporações de cavaleiros, etc Desde então qualquer convívio dependia da permissão ou chancela real para existir... convertendo-se assim em feudo do rei. Do contrário eram tais comunidades postas fora da lei e exterminadas.

Na vizinha França era a situação bem outra. Achava-se tanto mais descentralizada ou dividida, inclusive politicamente. Imaginem então este quadro adicionando-se a divisão religiosa? Seja como for, os contemporâneos de Bodin, desesperando de uma Unidade religiosa ou Cristã, acalentaram a esperança da Unidade nacional, territorial ou política. Na Alemanha os pequenos principados medievais, agora cindidos igualmente quanto a fé, surgiu um mosaico religioso e este mosaico religioso tornava a unificação política impossível.

Paradoxalmente nos principados - Grandes ou pequenos - adquiridos pela nova religião o poder político adquiriu um 'status' bastante elevado. Afinal a Reforma fora impulsionada por ele. Devia agora pagar tributo... E Lutero pagou com um servilismo raramente testemunhado nas crônicas da História, sempre apelando a Romanos 13,1... Aquino, com as devidas precauções e João da Salisbury - no Policraticus - haviam defendido o tiranicídio ou o direito de rebelião por parte dos cidadãos oprimidos e esbulhados de seus direitos. Lutero, fundador do protestantismo ou como se diz 'reformador' sanciona a tirania e o despotismo em nome de deus. E temos aqui uma doutrina sumamente agradável aos ditadores...

Por toda Alemanha, onde quer que o luteranismo triunfe é o episcopado eliminado, convertendo-se o senhor ou governante cívil em única e absoluta autoridade. Na Inglaterra o rei atua através dos Bispos. A Alemanha o senhor é o Bispo. Além disto, e exiguidade dos principados luteranos tornava possível a aniquilação total dos dissidentes e a imposição da uniformidade. Com o Bispo, nos cantões luteranos, é eliminada a única autoridade que fazia sombra ao senhor e limitava suas ambições. Durante toda Idade Média puderam os oprimidos e descontentes recorrer ao Bispo... Desde então, todo e qualquer recurso tornava-se impossível entre as populações luteranas, em que os pastores eram funcionários públicos pagos pelo senhor. Não poucos autores consideram que durante este período os camponeses alemães ou melhor luteranos converteram-se em escravos do príncipe, vindo a conhecer um regime ainda mais duro que o medieval, o qual prevaleceu por quase duzentos anos após a decapitação do soberano inglês Carlos II... Noutras palavras - Até a conquista napoleônica.

E enquanto o Pe Jesuíta Mariana - em 1598 - com escândalo e agrado de reis protestantes e papistas, endossava a doutrina comum do tiranicídio ou seja do direito de insurreição por parte dos súditos oprimidos, apelando alias a clássica doutrina da guerra justa, o teólogo zwingliano Tomas Erastus, sustentava que a disciplina eclesiástica não precisava ser administrada pelo 'novo clero' - protestante - mas pelo principado secular, desde que Cristão. Donde se segue que os delitos propriamente espirituais ou eclesiásticos podiam ser punidos pelo soberano. Ele foi incapaz de perceber o quanto seu sistema aproximava-se da Inquisição espanhola enquanto mecanismo de poder nas mãos do Estado. Hooker deve te-lo compreendido muito bem, incorporando diversas de suas teses ao estatuto da igreja anglicana, enquanto repartição política...

A controvérsia atinge seu ápice, e não deixa de ser significativo, em 1598, quando o futuro Tiago I da Inglaterra, publica 'A verdadeira lei e liberdade das monarquias livres' o qual é, por assim dizer o mais completo manual absolutista de que se tem notícia. E foi escrito meio século antes das obras clássicas de Filmer e Hobbes. Basta dizer que ele encara o ofício dos reis tal e qual a sucessão apostólica dos Bispos e a si mesmo como um Bispo secular ou civil. E proclama-se, muito naturalmente, dono ou proprietário da igreja nacional, na mesma perspectiva que Henrique VIII meio século antes. Curiosamente, levanta armas contra ele, o cardeal Roberto Belarmino, que partindo da lei natural assume perspectivas notadamente democráticas. Isto a ponto de sua Resposta ao rei de Inglaterra, ter sido lida e anotada por Jefferson, um dos teóricos da democracia Norte americana.

Seguem as obras de Hobbes - a quem dedicaremos um artigo a parte - e de Filmer o qual em sua obra "O patriarca" rivaliza com o precedente para ver quem melhor defende o poder absoluto dos reis. E como Hobbes segue por uma via marcadamente naturalista, ele Filmer, fixa-se nos exemplos do antigo testamento e folga tirar sua política da Bíblia. E para melhor coroa-la, apresenta a democracia ateniense como um mercado em que a justiça era vendida...

Por outro lado, mais uma vez, temos um jesuíta - Francisco Suarez (De Legibus) assumindo valores democráticos de modo absolutamente claro e, após a autorização ou juízo do papa romano, justificando não apenas a deposição mas o extermínio do tirano em termos de uma Guerra justa.

Que dizer agora de Bodin a quem os democratas protestantes e os maus católicos, totalitários, costumam apresentar como o primeiro teórico do absolutismo? Quando a Bodin limitar-me-ei a responder: Antes de repetir bobagens, leiam o segundo capítulo de R Nisbet sobre a formação da Comunidade política. Pois uma coisa é ter definido com precisão que seja soberania e pugnar pela unidade territorial de seu pais, e outra totalmente distinta, sustentar a doutrina absolutista. Bodin escreveu sua obra - A República - em 1576, e numa realidade que não chegara a atingir aquela da Inglaterra de 1643. Ademais viveu apenas meio século após o advento da Reforma protestante, e trás ainda lealdades medievais ou certo respeito pelas comunidades intermediárias, como a família, os colegiados, as corporações... cuja existência defende. Sonhava com uma unidade política forte e centralizada, sucedâneo da Unidade Católica, mas não era um iconoclasta atrevido...

Vejamos agora que saíra deste balaio régio...

Da mesma maneira como entre os 'papistas' decepcionados o ideal da Unidade política ou nacional substituiu o ideal da Unidade europeia ou universal fundamentada na fé entre os protestantes a fé na igreja nacional foi sendo cada vez mais substituída pela fé na superioridade nacional ou por uma mística nacionalista. Isto porque, graças ao livre exame, a divisão e a confusão eles acabaram perdendo a fé muito antes do que os romanistas... A bem da verdade foi esta fé transferida ao Estado, ao pais ou a nação e dando origem a um credo tenebroso.

Lutero no seio da fé havia já afagado as susceptibilidades do povo alemão. E a simples ideia de ter sido agraciado com a reforma da da Cristandade mexeu com o ego deste povo. E mesmo quando desampararam a mal sucedida reforma buscaram os germânicos outro tipo de grandeza, fornecida pelos teóricos da raça ariana. Como dissera Santayana ainda aqui a reforma aplainara os caminhos... até o nazismo. Unificada a Alemanha, em 1870, teve o Kaiser de aceitar a partilha do poder com o Parlamento. Os luteranos no entanto, transferiram para ele o mesmo olhar de submissão com que costumavam olhar seus terratenentes até 1810. Napoleão havia pulverizado aquelas estruturas todas mas não a cultura da submissão... Apesar de Henrique VIII, Tiago I, Hobbes, Filmer e outros, o inglês - mesmo anglicano devotado - externamente coagido pela força, jamais se deixará escravizar por dentro. O luteranismo alemão fora bem melhor sucedido, pois ao cabo de três séculos implantará a escravidão no interior do homem. E por isso, a seu tempo, eram aqueles alemães, em virtude da obediência passiva, encarados como animais domesticados. E nem Marx podia acreditar que fossem capazes de rebelar-se sem que antes fossem introduzidos na nova realidade capitalista.

Eis porque devemos considerar com maior atenção as opiniões superficiais e correntes, como aquela que associa o papismo a tirania e o protestantismo a liberdade. Pois elas bem podem ser falaciosas... E de fato temos Marsiglio, Mariana, Belarmino e Suarez francamente pela democracia e Aquino, Cusano e Vitória vinculando a fonte do poder ao povo em termos de lei natural.






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