Algumas Reflexões sobre Formas de comunidade, Sociedade política, Apogeu, Declínio, Crise, Anomia, Anarquia, Despotismo, Totalitarismo, Democracia, Liberalismo político, etc tomadas as diversos autores.
Muito se tem discutido em torno do termo 'político', o qual a bem da verdade, numa perspectiva mais estrita ou policrática, deveria acoplar-se ao termo 'sociedade'. Todavia é certo que o político e o social movimentaram-se separadamente por muito, muito tempo. Sempre que isto aconteceu o político ou permaneceu apenas em potência ou degradou-se. E a comunidade permaneceu militar - apesar do apelo político - ou tornou-se econômica, deixando de captar a intensidade do político.
A Piccarolo e
R Nisbet
Precisamente por isso - dando que o político e o social andaram separados por um bom tempo - aqueles que definem a ação política enquanto relações de poder, encaram tanto a monarquia quanto a aristocracia como entidades políticas, no sentido já explicitado, duma estrutura política que não se identifica plenamente com o que chamamos sociedade. Claro que essa política, feita a chicote e espada não pode ser a boa política, mas uma política de segunda classe ou categoria.
A política só adquire qualidade e se torna consciente de si mesma quando se faz democrática ou quando o discurso e a argumentação substituem a espada, enfim quando se busca livremente o consenso ao invés de estabelecer um acordo formal por meio da coerção externa.
Portanto, se num sentido 'lato' temos de considerar a monarquia e a aristocracia como formas políticas, num sentido mais estrito ou purista apenas a democracia o é -
e quando dizemos democracia queremos dizer democracia verdadeira: Inclusiva, liberal e direta (inclusiva e liberal por nós e direta pelos gregos rsrsrs) - pelo simples fato de apenas ela comportar cidadania.
Monarcas e aristocratas tem súditos i é pessoas que aceitam submeter-se a um poder externo a si e portanto imposto. Na forma policrática o cidadão identifica-se com o governante manipulando ele mesmo, diretamente, o poder. É ele um co governante com os demais cidadãos membros do corpo social. Daí a identificação - Governo/Sociedade. É exatamente este aspecto que torna a vida democrática intensamente rica em comparação com as formas precedentes, que ressentem a militarismo, a autoritarismo, a coerção, a imposição, a arbitrariedade...
Sabido é de todos ou de quase todos que a
Democracia foi criada ou inventada pelo ateniense Clístenes no ano 509 a C, uma data memorável. Claro que não se trata de nossa democracia anglo saxã, obra de John Locke.
O que poucos de nós sabem ou imaginam - e de fato é insólito
- é que o conceito de cidadania ou participação política antecede o conceito de pessoa. É a democracia anterior ao que chamamos de liberalismo político. Compreendido como espaço próprio da pessoa ou privado, ou ainda como santuário inviolável da consciência. Já
Fustel de Coulanges, na clássica '
Cidade antiga' referia-se a esta verdade. De que nos tempos antigos era a cidade Estado tudo e a pessoa nada... posto que as leis invadiam e regulavam todos os setores da existência humana, de modo que nada tocasse a liberdade ou a autonomia.
Além de exclusiva, no sentido de excluir o escravo, a mulher e o estrangeiro,
foi a democracia grega não menos totalitária do que a monarquia ou a aristocracia, e não devemos nutrir ilusões a respeito.
De fato os gregos conceberam a ideia genial de que polis fosse governada pela totalidade dos cidadãos.
O que ele jamais imaginaram é a existência de setores da vida humana que não fossem determinados ou controlados pela polis.
Para as antigas civilizações, anteriores ao advento do Cristianismo, tudo, inclusive a religiosidade, dizia respeito a família ou ao estado, a tradição ou as leis cabendo ao homem amoldar-se. Após ter absorvido a família com suas tradições a polis, por meio da lei escrita, tornou-se senhora absoluta das existências. Um dos primeiros juízos que define e restringe com precisão a esfera e o alcance do político e por ext do social, encontra-se na clássica passagem de
Suarez: "O objetivo da sociedade cívil - leia-se estado, poder público, etc -
é o BEM COMUM TEMPORAL."
E no entanto estes gregos, que não era tontos, puderam imaginar as decorrências da vida democrática.
Por isso, durante cero tempo, parte dos gregos pôde - ao menos quanto o foro interno da consciência - desprezar as instituições e tradições, inclusive religiosas.
E no entanto esta convenção, que separava a liberdade de pensamento da liberdade de expressão, estava longe de corresponder ao nosso Liberalismo, filho do Cristianismo e do martírio.
Pois jamais grego algum acalentou a possibilidade assumir publicamente suas negações ou ceticismo. Formal ou publicamente eram todos adoradores dos deuses, todos religiosos, todos devotos... E ofereciam sacrifícios! Os gregos mantinham as aparências ou a ficção com firme zelo, sabiam até onde podiam chegar. Um mínimo desvio, com efeito, implicava beber cicuta, ser exilado (assim Aristóteles) ou arrastado a um processo ignominioso (assim Anaxágoras)... Não havia liberdade alguma para ser diferente ou e tinha os filósofos de suportar a canga da hipocrisia.
Portanto, os refinados atenienses jamais imaginaram um setor qualquer da existência separado da polis ou privado. É justamente este setor da existência, setor pessoal ou privado - fundamentado num direito mais alto ou natural (Lembre-se de
Antígona) - que possibilita a qualquer homem apelar ao tribunal interno da consciência face as ambições totalitárias do poder público (Lembre-se de
Creonte). Os antigos atenienses não tinham para onde apelar. Nós reconhecemos que a existência corresponde a duas esferas bem distintas, uma privada e regulada pela própria pessoa e outra pública, regulada pelo poder político. E admitimos que cada uma delas seja soberana em sua própria esfera. De maneira que o privado/pessoal não se sobreponha ao público na esfera do político e que o público não invada a esfera privado/pessoal. Os gregos nada conheciam neste sentido.
Assim se
Locke concebe uma democracia capenga ou representativa - Inventando um processo por meio do qual o poder é transferido do povo para alguns poucos representantes - ao constatar que os produtores não podiam não podiam participar integralmente da atividade política - como na polis grega - sem causar graves danos a atividade econômica, ou que trabalhando excessivamente não podiam fazer a boa política, Platão opta pela solução radicalmente oposta. E - ao menos quanto aos viligantes - eliminando a família busca atingir a vida privada em seu coração. Desde então o estadista platônico poderá consagrar-se por completo a atividade pública ou política.
Se o inglês, comprometido com o capitalismo emergente, restringe a esfera da coisa pública, falseando a ordem democrática
(Arendt), o grego de ombros largos cogita suprimir a esfera do privado, caindo, é claro, em mais uma utopia, corrigida, posteriormente através das 'Leis', obra do Platão mais maduro e realista.
Bem, chegamos a Platão, e Platão é sempre um tema interessante.
Karl Popper na Sociedade aberta e seus inimigos, divisa em Platão o Patriarca das sociedades fechadas e busca relaciona-lo com o quimérico passado de Atenas.
O equívoco salta a vista pelo simples fato da antiga sociedade ateniense ter sido do tipo familiar, enquanto que Platão, como vimos, preconizava uma Sociedade sem famílias. Acerta no entanto ao alista-lo entre os teóricos da sociedade fechada e alias como seu primeiro grande teórico. Alias Platão já foi classificado como fascista, comunista, etc
Que Platão seja decididamente social ou comunal cheira a obviedade. Apesar disto não sei se poderíamos classifica-lo como socialista. Os socialistas assumem a liberdade humana, Platão... Tampouco era ele comunista ou fascista...
Então que era ele???
Era platão totalitário e despótico, assim como os comunistas e fascistas. Nem por isso era comunista ou fascista pelo simples fato de ignorar supinamente o quanto seja característico de tais sistemas. Totalitário e despótico sim, e por isso não poucas vezes odiado... Platão de fato exaspera os liberais e os democratas. Todavia devemos tentar ser justos com ele e buscar compreende-lo, inserindo-o no quadro a que pertence.
Pois compreendendo os medos de Platão estaremos aptos para diagnosticar nossa própria época.
E para compreender o homem devemos situa-lo em seu tempo e situa-lo com exatidão.
E que é este Platão senão um testemunho eloquente da decadência de Atenas e de uma democracia em colapso?
De fato se compreendemos que Atenas atingiu seu apogeu ou zênite entre 509 e 429 - assim por cerca de oito décadas - saberemos que Platão nasceu - em 427 - quando ela principiara a morrer... Lavrava a pavorosa guerra do Peloponeso, ganha em 404 pelos espartanos. Os quais impuseram a indômita Atenas 51 tiranos. A princípio Platão acreditou que eles saneariam moral e politicamente sua querida cidade... E no entanto que fizeram eles senão justiçar precisamente aquele que melhor conhecia os problemas em questão? Paradoxalmente aquele Sócrates, que criticando honestamente a democracia, poderia te-la seneado...
De fato todo caminho precorrido por Platão, da morte de Sócrates a sua própria morte foi um caminho em direção a Esparta, não a Atenas da tradição ancestral, mas a militar, belicosa, despótica e totalitária Esparta. Afinal não esmagará ela a brilhante Atenas???
Eis um evento que impactou poderosamente as mentes de todos os gregos, sem falar nos próprios atenienses.
Importa saber que Platão jamais o perdeu de vista...
Quanto a nós, esforce-mo-nos por relacionar a nova ordem policrática com o novo padrão de pensamento, racional.
Já dissemos que imperava a convenção, que as aparências deviam ser mantidas e que nem todas as tradições reconhecidas pela Polis podiam ser formalmente negadas. O equilíbrio social exigia um tal sacrifício ou uma tal restrição.
Resultou disto uma estabilidade bastante precária e posteriormente - após o fim da Idade Média - viemos, nós mesmos, a conhecer semelhante estado.
Mesmo buscando alguns compromissos a razão nem sempre podia abster-se de questionar os mitos e mesmo o surgimento da alegoria ou do simbolismo - que buscava amortece-lo - o choque chegou a ser traumático.
Platão ousa clamar contra
Homero e
Hesíodo, educadores das gerações precedentes...
Sócrates tampouco pode admitir que os deuses praticassem imoralidades e acima deles sobrepõem um Ente racional, invisível, ilimitado, etc Entidade a respeito da qual
Xenófanes, Anaxágoras, Apolônio e outros já haviam insistido, inconvenientemente...
Após a religiosidade praticamente tudo foi submetido ao crivo da razão e logo, em alguns casos, a experiência. A medicina já havia ensaiado tais passos... Desde então os rios se convertem em fluxos d água e os astros em pedras flutuantes... com grande agravo de
Diopeites e das massas populares que clamavam contra tais impiedades. Afinal de contas a identidade social, o sentido de pertencimento, os princípios, os valores, tudo enfim, repousava sobre tais crenças... critica-las era como golpear a raiz de uma árvore... Num determinado momento parte das pessoas sentiram-se desenraizadas, confusas, fragilizadas, desprotegidas, ameaçadas.
Em Atenas, como observamos, este movimento pode assumir uma forma marcadamente política através da democracia e desenvolver-se. Noutras cidades, onde exasperou os monarcas e tiranos, foi violentamente suprimido.
Pitágoras queimado vivo em sua Escola,
Zenon moído vivo numa mão de pilão, etc Como não existisse um Basileu em Atenas, esta situação de crítica se foi acentuando mais e mais... E os intelectuais se tornando cada vez mais ousados.
Por algum tempo, tempo daquele equilíbrio e são 'realismo' que caracterizam o apogeu de qualquer civilização (
Sorokin), a razão e a sobriedade lograram manter-se no controle, alias respeitando a ficção ou tentando substitui-la discretamente.
Em seguida porém, cindiu-se aquela sociedade em dois grupos radicalmente opostos. E a ruptura, seja dito, não partiu dos conservadores ou tradicionais mas dos próprios filósofos ou melhor dizendo, de sua ala mais radical; os sofistas que agora voltavam-se contra o critério comum da razão. E antes que a razão substituiu-se a fé ou a tradição era já solapada por eles...
Agora veja o leitor - De um modo ou de outro lograram a razão e a experiência, inserir-se num espaço até então completamente dominado pela tradição, ensaiando os primeiros passos do pensamento naturalista e do conhecimento científico. Os sofistas no entanto, antecipando
Hume e
Kant, levaram o processo crítico a razão, que era o elemento comum porque os essencialistas buscavam substituir a superstição e a autoridade. E o resultado disto foi a elaboração de uma teoria subjetivista e relativista, a princípio e, em seguida totalmente cética. Isto num ambiente cujas estruturas eram totalitárias, despóticas e solidárias.
Não 'a humanidade' através do elemento comum da razão, mas o individuo isolado, converteu-se em medida de todas as coisas, produzindo sua verdade parcial, pela qual bem podia pretender guiar-se, e assim matar ou roubar, caso tivesse tais ações em conta de boas... Observe a extensão de um problema que é nosso e que hoje se exprime pela negação de uma Lei Natural, único fundamento plausível de uma Ética objetiva ou universalmente válida, para homens de todos os tempos e lugares.
Foi em oposição a esta maré individualista, subjetivista, relativista e cética que levantou-se a maré conservadora ou reação, tudo engolindo pela frente, inclusive o genial
Sócrates, mesmo porque, o grande público ou a massa, alheia aos grandes temas da Filosofia, era incapaz de discernir entre uma corrente e outra. Destarte toda Filosofia, compreendida como sofística, tornou-se ameaçadora.
Mesmo sem terem conhecido o liberalismo político, os gregos tiveram uma experiência de liberalismo metafísico extremo (epistemológico e ético) a qual não lhes foi nada agradável, e chegou a aterroriza-los...
Na medida em que o ensinamento dos sofistas era assimilado pelos elementos mais jovens da comunidade
o pouco que restava dos laços sociais anteriores a afirmação da comunidade política principiou a dissolver-se muito rapidamente, dando lugar a uma situação de anomia, de anarquia, de caos, de conflito generalizado... face a qual parte significativa da sociedade sentiu-se nostálgica quanto a um passado já em parte idealizado.
De modo geral os atenienses do século IV a C não estavam preparados para testar aquele futuro ou para ver até onde as coisas chegariam... Sabiam intuitivamente que sem religião, fé, Deus, deuses... cada individuo converter-se-ia em padrão absoluto de bem e mal, e deduziram as consequências sociais desde individualismo crasso.
Quanto aos culpados, como já dissemos, foi bastante fácil identifica-los com a Filosofia e a Democracia, cuja relação, aos olhos eles, era bastante nítida. O elemento racional comum a ambas era o elemento por assim dizer corruptor, que envenenará a Sociedade. Não a crítica a razão ou a metafísica... Eles não sabiam distinguir racionalidade de empirismo crasso ou ceticismo...
Assim a anti comunidade de Platão é idealizada em oposição a 'comunidade caótica', anômica ou anárquica dos sofistas (
Nisbet) identificada com a comunidade democrática ou como consequência dela.
O remédio aqui era olhar para a polis vitoriosa, Esparta, cidade militarista e fiel a suas tradições, que jamais se deixará desviar pelo fantasma da razão, pai filosofia e da democracia. É nesta perspectiva e em oposição ao veneno instilado pelos sofistas/filósofos que Platão escreve seu clássico. Não é a democracia que ele leva combate, mas a sua forma decadente e corrompida... A qual no entanto, para ele, é consequência dela.
Isto não foge a experiência que ora vivenciamos ou ao choque entre as diversas formas - corruptoras - de individualismo, assim: Relativismo, subjetivismo, ceticismo, anarquismo individualista ou ANCAP, liberalismo econômico, plutocracia, democracia meramente formal ou representativa, etc a um lado, e as soluções totalitárias, como nazismo, fascismo e comunismo a outro... É um dilema bastante parecido.
A Democracia perdeu seu espírito, acomodou-se estrutural ou formalmente, deixou-se dominar por outros setores (não políticos), desvinculou-se do essencialismo ético, deixou-se impregnar pelo individualismo, foi abalada pelo ceticismo, etc, etc, etc Entrando em declínio, o qual ora vivenciamos... Em que pese os arroubos de jacobinismo típicos dos EUA...
O fato é que nossa democracia por descuido educativo ou formativo quanto o espírito, não consolidou-se. Antes, colonizada pelo capitalismo, converteu-se em instrumental do poder econômico e não do bem comum, como queria Aristóteles. Tudo quanto temos hoje é demagogia, plutocracia, oclocracia... não democracia
, pois não há cultura democrática, espírito, profundeza. E essa forma instrumental ou espúria é a que tem sido propagada pelo jacobinismo yankee, posto que os N Americanos como os ingleses, não distinguem um liberalismo do outro, tomando liberalismo por uma coisa só.
Destarte tem sido o liberalismo político, que é essencial a vida democrática - juntamente com o liberalismo religioso e o liberalismo moral -
sucessivamente traído pelo liberalismo econômico e sacrificado em seu benefício e já aludimos ao sacrifício primordial quando nos referimos a Locke e ao que Arendt definiu como um esvaziamento do político em benefício do econômico ou ainda do público e comum em benefício do privado.
Não atingimos ou perdemos nosso ponto de equilíbrio. A balança tem pendido decididamente para o individualismo, com as mais terríveis consequências... E os EUA alimentado doentiamente este padrão.
Mas já se pode observar um fenômeno análogo ao observado durante o período entre guerras
que é a reação totalitária e despótica ou o renascimento das diversas culturas de morte, como fascismo, comunismo e nazismo, as quais tem entrado em choque entre si, com o anarquismo, com a democracia formal e com as teocracias, disto resultando um clima próximo ao caos - EIS A ATENAS DE PLATÃO... Eis a decadência da cultura democrática e a total perda do equilíbrio... A um lado um materialismo que chega ao ateísmo, ao nihilismo e como já dissemos ao relativismo e a anomia (em termo sociais) e a outro um idealismo - não poucas vezes representado por formas primitivas e obscuras de religiosidade - tão totalitário e despótico quanto o de Platão. O ateísmo/materialismo pela anarquia absoluta e o Idealismo/fideísmo pela repressão e pelo controle absolutos.
Uma Era de extremos. Quiçá a sofisticada Atenas do século IV a C tenha vislumbrado este cenário.
Agora, ao tempo de Platão não era, a solução totalitária ou despótica, tão variegada quanto a nossa mas, até certo ponto unitária e portanto tanto mais sedutora. Platão emprestou-lhe as tintas de poeta e moralista, mas não pode ver sua realização.
A um tempo a democracia estalou, veio abaixo e caiu, dando espaço ao Imperialismo de macedônico.
Alexandre inspirava as melhores esperanças, pois havia sido aluno de
Aristóteles... e
Aristóteles, como já dissemos, ao menos quanto a política e suas estruturas não era metafísico mas empirista, realista ou relativista.
Tudo quanto ele fazia era associar o ideal de 'bem comum' a determinada estrutura e assim legitima-la. Sob este aspecto era a monarquia tolerável, e até desejável, caso tivéssemos em mira a destruição do império persa.
Esperava-se inclusive que Alexandre tivesse assimilado as lições do Filósofo e que inaugura-se uma nova era da ouro. Eram expectativas gerais, que malograram logo após sua morte. Sucedendo-se o inferno dos diadocos e epígonos... E a crise filosófica representada pela afirmação, ainda mais decidida, do ceticismo (cf
V Brochard).
Agora como aproxima-se este Platão de Esparta se os tiranos, empossados pelo poder Espartano deram cabo de seu Mestre?
Ao tempo em que
Sócrates fora condenado a beber cicuta o equilíbrio entre as facções era precário ou melhor dizendo delicado.
Górgias de Leontinum e Protágoras haviam assestado golpes não apenas contra a razão mas também contra a tradição posto que eram uns iconoclastas nihilistas... Por outro lado temos o discípulo ingrato de Sócrates,
Alcebíades, fazendo das suas... E sobretudo
Aristófanes, que representa o sentir geral, não só ridicularizando os sofistas mas apresentando Sócrates como um deles, o que ele de modo algum era...
Já a entente conservadora precisava obter um bode expiatório e correr com ele da cidade, para dar exemplo. Em geral os Filósofos, uma vez acuados, fugiam... Era necessário fazer um deles fugir e Sócrates, em função das circunstâncias acima descritas, foi o escolhido. Ele no entanto não era o que dele pensavam. Não estava disposto a fugir, não fugiu e por isso mesmo converteu-se em mártir, não da democracia, a qual criticava positivamente, mas do pensamento crítico ou da liberdade de expressão. Ele insistiu muito nisso e podia ter aberto um 'nicho' favorável a pessoa... Disto beneficiariam-se igualmente os radicais. Portanto Sócrates tinha de ser imolado.
Em certo sentido Sócrates foi o único representante do liberalismo pessoal ou político em Atenas. Foi o dissidente, foi a objeção de consciência, foi o elemento discordante e acreditava ser direito seu portar-se assim. Certamente esta irrupção do pensamento liberal numa Atenas que sequer era democrática chocou há muitos e exasperou os ânimos. Sempre podia ser explorada pelos individualistas, anômicos, nihilistas, etc como sói ainda hoje. Mas os atenienses não estavam dispostos a arcar com o ônus social que semelhante exigência implicava.
Ainda hoje, e com plena razão, os extremistas irracionalistas, individualistas, relativistas... que tomam carona no liberalismo político ou moral, produzem escândalo entre os elementos ponderados da Sociedade e mesmo alguns distúrbios isolados. Tentem conceber a sensação que estas remoras ou sanguessugas da democracia produziram nos Atenienses há dois mil e quinhentos anos... Comprometeram e ainda comprometem as instituições democráticas esses extremistas e radicais, pelo que merecem ser ferozmente impugnados no plano das ideias.
Identificado, de um modo ou de outro, com os sofistas e portanto com o mal, foi
Sócrates imolado pelo partido da ordem ou conservador. E no entanto era ele o médico... O único que criticando positivamente as falhas da democracia podia ter lhe dado vigor e vida. Pois a democracia precisa justamente de críticas construtivas e seus melhores amigos são aqueles que apontam seus defeitos. Pela que o democrata fanático ou formalista, de ontem ou de hoje recuse-se a percebe-lo.
Ainda aqui genial,
Sócrates percebeu o descompasso - e como já dissemos isto é atual - entre uma boa estrutura e a falta de preparo ou de capacidade dos homens que a compõem ou que nela estão inseridos.
Não foi contra a democracia mas a favor de uma aristocracia aberta que Sócrates posicionou-se. De uma aristocracia potencialmente democrática, de uma aristocracia do saber, de uma aristocracia do mérito ou da competência, franqueada a tantos quantos buscassem dignificar-se.
Sócrates percebeu o óbvio
. Percebeu que a democracia demanda preparo por parte dos homens ou dos cidadãos de modo a não transforma-se numa oclocracia. Postulava que os juízes fossem escolhidos, dentre aqueles que conhecessem as leis... Postulava que os generais fossem escolhidos, dentre aqueles que conhecessem a arte da guerra... Postulava que aqueles que tivessem conhecimento a respeito de determinado tema ou assunto fossem levados em consideração pelos demais... Queria trazer qualidade a vida democrática. Suas críticas no entanto foram muito mal compreendidas e os democratas fanáticos jamais o perdoaram...
O próprio
Platão pode ter tomado a crítica de seu Mestre noutro sentido. No entanto não há qualquer evidência de que Sócrates fosse tão totalitário ou despótico quanto seu pupilo. Seu liberalismo político coadunas-se mais com a forma democrática. De um modo ou de outro foi Sócrates um democrata lúcido ou crítico, que conhecia os defeitos ou vícios do sistema e buscava elimina-los. Por isso, ainda hoje é ele consumado modelo de polícrata para nós... Que sabemos faltar cultura ou espírito onde sobejam estruturas... prenúncio de morte.
Resta esclarecer que Atenas, quanto o passado, é o que temos mais próximo de nós. Nela podemos observar uma trajetória social bastante parecida com a nossa. Digo das sociedades 'políticas' que tendo ultrapassado o modelo romano, calcado no Digesto, tornaram-se ao menos formalmente democráticas.
Atenas surge, a exemplo das demais cidades, como uma comunidade familiar, que se faz militar e logo democrática com Clístenes, até aproximar-se por fim de algo como um mercado desregulado ou de um liberalismo econômico que sem embargo não se faz pleno. Pois os resíduos familiares, religiosos, militares e políticos o sufocaram; até que esta trajetória foi por assim dizer 'cortada' por
Alexandre, seguindo outros rumos.
Atenas não nos segue ou acompanha até o fim embora a sucessão de formas comunitárias porque passou seja a que mais se aproxime da nossa. Por isso o estudo da civilização grega ou ateniense e seus problemas é tão fecundo para nós.
Roma não. Roma é outra coisa.
Associamos Roma a Grécia, porque após sua vitória em Queroneia tornou-se Roma província cultural de Atenas. E isto a ponto de tomar Platão por guia ao descrever o poder Cesáreo. Neste sentido Roma é grega, enquanto platônica no campo da política.
E nossa Renascença foi muito mais romana do que Grega ou ateniense.
Aulo Gélio já o havia dito. Roma não manteve o sentido humano da coisa, descambando num eruditismo pedantesco e frio. Assim os humanistas da Renascença.
Roma, a exemplo de Atenas, começa como uma Sociedade familiar ou tradicional e militar na qual aos poucos - i é durante a República - vai se formando uma aristocracia aberta em posse de uns instrumentos semi policráticos quais sejam os plebiscitos e referendos. Tal seu elemento característico ou seu diferencial.
Roma sempre fora militar e jamais deixou de se-lo para tornar-se política.
Admitido que existiu nela uma orientação para a democracia, ao menos num determinado momento de sua trajetória, é necessário reconhecer que ela frustra a si mesma, embota-se e fica sem realizar-se. Roma jamais se tornará democrática. Através do Império Roma retorna ao ideal monárquico em termos ainda mais enfáticos e já foi sugerido (
Antonio Piccarolo)
que o Imperador associou-se as massas com o objetivo de suplantar aquela aristocracia senatorial que num dado instante fechou-se em si mesma.
Fato é que o impasse entre as aspirações populares e as aspirações acalentadas pela elite senatorial resultou numa pavorosa guerra civil, a qual perdurou por quase um século.
E como durante as revoluções e guerras a parte mais vulnerável é sempre a mais humilde, não nos devemos admirar de que, num determinado momento as camadas populares, fatigadas, se tenham inclinado a paz...
Júlio Ceśar e
Otaviano, que eram mentalidades genais, captaram muito bem esta situação propícia e buscaram explora-la em favor de si mesmos, colocando-se desde então ao lado do povo e contra o Senado.
Eles também eram lideres militares muito bem sucedidos e até mesmo estimados.
Diante disto o Senado, em situação de isolamento, apelou a ficção, passando a validar tudo quanto desejava o 'Imperador'. O Império nada mais era do que o comando supremo das forças armadas ou do exército e uma instituição belicosa... A paz augusteana foi mais uma paz interna do que externa, embora a paz externa tenha sido imposta pelas circunstâncias, assim pelo desastre de Teutburg, onde Varo perdeu suas legiões. Com Roma jamais entramos na política e jamais saímos da caserna. Assim após sua morte é Augusto divinizado, e quase nos sentimos no antigo Egito... Essa Roma que é a um tempo familiar, religiosa e militar, jamais se torna propriamente política, em termos estritos. Porque jamais se faz democrática.
Importa que todos estavam felizes: Os militares porque vigiavam as fronteiras colossais do Império em troca de soldo, a casta burocrática dos funcionários públicos, a hierarquia religiosa, o povo romano que recebia benefícios ou moedas de ouro e até mesmo o Senado que mantinha uma aparência de autoridade 'respeitada' pelo Imperador... Sendo assim Augusto tinha mesmo de ser canonizado ou divinizado. Era o arquiteto de algo mais ou menos estável trezentos anos após
Alexandre. É como se todos estivessem dispostos a pagar pelo fim do conflito com o sacrifício da liberdade e dos direitos, i é com submissão e este é o grande dilema das democracias formais parasitadas pelo capitalismo ou do estado mínimo o qual nada oferece as massas, o que torna essas democracias desinteressantes para elas e o odiado Comunismo, atrativo...
As liberdades abstratas e utópicas não atraem estômagos vazios ficando esta democracia censitária ou economicista sempre ameaçada pelos totalitarismos, desde que saibam manejar um simples prato de comida. A combinação democracia e miséria não é nada propícia aos valores democráticos.
Assim, se a jurisprudência romana coloca o Imperador acima da lei a redescoberta das Institutas ou do Digesto (Pandectas) durante a baixa Idade Média servirá para justificar ideologicamente o absolutismo ou o direito divino. Ainda aqui foi Roma uma fonte de atraso, estagnação social e inquietação para nós.
E quanto a economia?
Teria a sociedade romana atingido o mesmo grau de desregulamentação que antiga Atenas?
Talvez ao tempo de
Augusto ou durante o século I, enquanto o poder Imperial ainda estava sendo construído. Pois desde o século II esse poder se vai ampliando e invadindo todas as esferas da vida humana - inclusive a religiosa, a ponto de conflitar com o Cristianismo nascente - até absorve-las por completo.
Temos assim, ao cabo do século III diversas leis destinadas a regular a atividade econômica. No entanto, por esse tempo, avança já a crise simultaneamente econômica e social, provocada pelo escravismo, pela estagnação territorial e pelo abolicionismo Cristão; dos quais resultou a inflação, o aumento de impostos, etc. O grande problema da economia romana foi o escravismo. A Grécia, de modo geral, não parece ter passado por isso...
A bem da verdade, a impressão que se tem é que na Atenas do século IV a C ou na Grécia antiga o número de pequenos ou médios empreendedores livres sempre foi maior. Assim o número de trabalhadores livres... tradição que parece prolongar-se no Império Cristão Bizantino. É uma hipótese a ser averiguada.
Em Roma temos, ao que parece, a macro empresa formada por um imenso número de escravos sob a tutela de um só homem. E um bando de homens teoricamente livres sustentados pelo imperador ou pelo poder público. Eu até ousaria dizer que Roma faz lembrar o capitalismo de Estado... não fosse a forma escravocrata. Em Atenas as coisas não se dão em tais termos...
Seja como for, graças ao histórico do Império sabemos que não existe uma ordem fixa ou metafísica de sucessão quanto as formas de comunidade, e que nem sempre as coisas se sucederão como em Atenas.
Quanto a sociedade europeia contemporânea temos a ligeira impressão de que tendo partido de um modelo familiar/militar comum aos germânicos e análogo ao romano, tornou-se político na Inglaterra do século XVIII ou na França pós Revolucionária de 1789
para logo tornar-se econômico e dar lugar a uma terrível crise de cultura e identidade, semelhante aquela vivenciada por Platão. Karl Polanyi Resta dizer que o liberalismo político é uma construção comum, assim como o liberalismo religioso e o liberalismo moral. Há afirmações suas na Espanha, na França, nos EUA, na Inglaterra e mesmo, pasmem, na Rússia Csarista; pelo simples fato de ser um princípio Cristão.
Curiosamente a França revolucionária ou se preferirem jacobina construiu um modelo de democracia despótica - no sentido de que poderia ser imposta externamente a uma determinada sociedade - análogo ao modelo ateniense ou ainda mais virulento ora assumido pelos EUA. Bem antes do Comunismo e do Anarquismo revolucionário, e do fascismo o jacobinismo desesperou da Educação e da Cultura i é do Espírito, assumindo um deplorável formalismo, inspirado no materialismo crasso.
Posteriormente, foi a mesma visão bizarra de uma democracia imposta por golpe ou oferecida por uma minoria, legada ao positivismo, o qual por sua vez inseriu-a em nosso pais... Onde democracia brota como Atenas da cabeça de Zeus, de um golpe militar, assumindo um viez militarista. Donde resultam todos os nossos problemas, assim os sucessivos golpes reencarnados e avatares ditatorais, filhos de uma democracia mal consolidada, meramente formal, sem espírito, consciência, cultura; numa só palavra - profundidade. Filha do jacobinismo é nossa democracia superficial.
O Comunismo percebeu a incongruência do jacobinismo, manteve o golpe, eliminou a liberdade e jamais compreendeu a dinâmica da cultura... Quanto ao liberalismo é certo que a França promulgou os direitos do homem e do cidadão, mesmo quando concedeu a doutrina da vontade geral uma abrangência tal que dificilmente encontraria apoio nos escritos daquele que a formulou e a ponto de tornar esta vontade totalitária. Numa perspectiva democrática mais direta admitimos que a 'vontade geral' seja internamente soberana em sua esfera - pública ou política - mas não que seja totalitária, a ponto de imiscuir-se no que diga respeito ao privado... A separação entre o público é o privado é princípio de que não podemos abrir mão, assim o espaço sagrado da pessoa humana face a estatolatria. Ficamos assim entre o totalitarismo estatólatra e o individualismo, condenando veementemente a ambos, pois como declarou o Filósofo: Os extremos sempre se tocam.
Após ruminar tais pensamentos, colhidos neste ou naquele autor -
Fustel de Coulanges, Crane Brinton, Hannah Arendt, K Popper, John Gray, R Nisbet, Ortega Y Gasset, P Sorokin, Victor Brochard, Alfred Weber, Antonio Piccarolo, Nicolas Berdiaeff, V G Childe, Harold J Laski, Jacques Maritain, Emanuel Mounier, etc - entrega-mo-los ao juízo do amigo leitor...