sábado, 27 de outubro de 2018

O pai e o avô do Leviatã... e o Cristianismo II - A Inglaterra hobbesiana...

 


Resultado de imagem para Thomas Hobbes



Homem algum produz ideias a partir do nada... As ideias de um homem são resposta sua a problemas existentes no meio em que vive. E como o homem busca superar ou solucionar o problema podemos compreender as coisas em termos de 'oposição' a um dado modelo social...

Já vimos como as coisas se passaram com Platão. Cuja obra maior é por assim dizer, uma reação face a anomia produzida pela corrupção do ideal democrático. Sem querer justificar Platão ou concordar com ele podemos tentar compreende-lo e não apenas a ele mas a Hobbes, a Rousseau, a Marx, a Freud, etc Com certeza, a busca desta compreensão tornará nossa inteligência mais sólida!

No entanto se em Platão damos com alguém que delineia um possível futuro, em Hobbes damos com alguém que em certa medida ao menos reporta ao passado e a um passado não muito distante. Uma vez que Hobbes escreve cerca de 1651 mas nasce em 1588. Portanto meio século após a morte de Henrique VIII. De fato após o pequenino Portugal converteu-se a Inglaterra no primeiro Estado unificado da Europa e logo num Estado total ou absoluto, como Portugal jamais fora ou seria. Sem ter sido feudal teve Portugal seus cavaleiros a combater os Mouros, teve a Igreja romana com sua poderosa hierarquia e teme inclusive cortes e liberdades municipais. De modo que o poder do soberano luso estava longe de ser absoluto...

Willian no entanto, após conquistar aquela Ilha, exigiu juramento de submissão a cada senhor. Tampouco havia o municipalismo romano ou como querem, a Djemaa árabe, naquele pais. A velha nobreza fora em parte dizimada pela recente guerra entre as duas rosas. O quanto restava fora de controle na Inglaterra as vésperas da reforma protestante eram as universidades, as guildas e acima de tudo a toda poderosa Igreja romana, com seus mosteiros espalhados por todo pais, de modo que o poder do monarca, inda que substancioso, não era absoluto ou ilimitado. De fato por poderoso que fosse, especialmente após o fim da guerra das rosas, Henrique VII sequer podia sonhar com o poder que um dia seria acumulado por seu segundo filho.

Antes de prosseguirmos sejamos justos. Henrique VIII jamais foi protestante ou reformador como declaram ridiculamente algumas publicações romanistas. Separando-se de Roma ele jamais rompeu com a fé Católica e se mandou dissolver os mosteiros é porque eram a um tempo fiéis a Roma papal e a outro imensamente ricos. Teólogo, jamais compactuou com os princípios canonizados por Lutero ou Zwinglio os quais encarava como hereges pestilenciosos e não hesitou em remeter os luteranos e zwinglianos ou protestantes de modo geral,a fogueira. Uma anedota refere que folgava amarrar um protestantes e um romanista no mesmo poste e incendia-los juntos. Diante disto não poucos concluíram que na verdade não passava de um incrédulo, o que por sinal é bem possível. Formalmente foi o que os papistas costumam classificar como cismático, o que aproxima-o de nós Católicos Ortodoxos... Tudo quanto ele fez foi aproveitar-se das condições provocadas pela reforma para separar a Igreja inglesa da igreja Romana, sem que com isto altera-se nimiamente sua estrutura. E permaneceu não apenas Católica quanto a fé, mas episcopal e hierárquica.

Teólogo como já dissemos ele certamente estava muito bem informado a respeito de Justiniano e dos demais basileus que tentaram usurpar o poder eclesiástico em Bizâncio. Tais seus modelos. E foi mais bem sucedido que eles, obtendo do clero inglês, com algumas poucas exceções, uma submissão reverente. Submetendo a Igreja nacional converteu-a em repartição de Estado, tal e qual descreve Hobbes no Leviatã. Desde então teve sua inquisição espanhola. E pode controlar não apenas as guildas e universidade como o Parlamento, convertendo-o em quintal seu. A partir daí exerceu um poder absoluto e inconteste, e tantos quantos ousavam objetar qualquer coisa perdiam a cabeça.

Sintomático que tenha feito passar mais leis pelo Parlamento do que todos os seus predecessores. Ele de fato tudo aspirava controlar. Assim sua filha Maria, a sucessora desta Isabel e por fim Tiago I, teórico absolutista. Todos estes monarcas avançaram na direção apontada por Henrique, embora Isabel tenha mostrado mais prudência ou pudor. Seja como for, desde Henrique as leis inglesas atribuíam tal poder ao monarca.

Enquanto os reis absolutos comandaram a Inglaterra contaram com o decidido apoio da Igreja Anglicana ou Anglo Católica e com a oposição marcada de dois grupos bastante ativos: Os romanistas, representantes da antiga religião e os protestantes, já calvinistas, já anabatistas chamados de modo geral não conformistas. Ambos os partidos assacavam constantemente as fileiras anglicanas buscando desfalca-las e obter a hegemonia. Os romanistas temiam a preponderância dos sectários não conformistas e os sectários não conformistas temiam a influência dos romanistas. Os anglicanos ou realistas eram considerados aliados dos protestantes pelos papistas e dos papistas pelos protestantes embora de modo geral fossem por si mesmos. Segundo diversos autores o grupo anglicano era mais político do que religioso e muito pouco sincero e comprometido, enquanto que os extremistas - de um lado e do outro - eram movidos por convicções fortes.

O quanto de pode dizer a respeito daquele tempo e do que aconteceu é que os anglicanos, que até então formavam o Centro, foram sendo paulatinamente conquistados pelos papistas e pelos protestantes, disto resultando um profundo desequilíbrio. O rei, a corte e a alta nobreza pendiam cada vez mais ao partido do papa, a burguesia ao calvinismo e pelo menos parte dos mais pobres ao não conformismo. Até que o próprio anglicanismo viu-se cindido entre as duas correntes: Alta ou anglo Católica e baixa ou puritana, reproduzindo-se a mesma cisão fora da Igreja oficial. Cerca de 1625 achava-se a Inglaterra cindida entre as duas facções extremistas. A partir daí romanistas e anglo Católicos a um lado (realistas) e sectários ou revolucionários do outro iniciaram as hostilidades que levaram a Guerra civil ou a assim chamada Revolução, contando Hobbes com cerca de trinta e sete anos. Esta situação prolongou-se até no mínimo 1660 - i é seja por cerca de trinta e cinco anos - ou, segundo outros até 1688, ou seja, até a deposição do rei Jaime.

Foram cerca de sessenta anos de turbulência e instabilidade. Período muito semelhante aquele que fora vivenciado por Platão de 404 até sua morte, em Atenas. Até o advento da Reforma protestante achava-se a Europa espiritual ou religiosamente unificada, enquanto separava-se politicamente. Após o advento da Reforma, interpretado por muitos como a decadência do Cristianismo ou ao menos do Cristianismo ocidental ou latino, a separação entre as nações europeias tornou-se total, i é a um tempo religiosa e a outro política.

Particularmente no que diz respeito a Inglaterra, o advento da Reforma protestante propício as circunstâncias necessárias para cimentar a Unidade Política e respaldar o Absolutismo. Pois o sagaz Henrique VIII, tornando-se 'cismático' (sic) sem tornar-se protestante, logrou, pela espada ou pela força extinguir as dissenções religiosas e manter o reino espiritualmente unido em torno do trono e do anglicanismo episcopal, o que foi um golpe de mestre. A bem da verdade Henrique VIII tirou proveito da politicagem que envolvia o papado aquela época, a qual desagradava inclusive parte dos Católicos. No entanto a partir do momento em que os tutores de Eduardo introduziram os princípios protestantes no pais os próprios Católicos fossem romanos ou anglicanos tornaram-se mais comprometidos. Desde então um grupo opoz-se tenazmente ao outro.

E este estado de oposição entre consideráveis minorias Católica e Protestante amortecidas por um anglicanismo ou episcopalismo formal jamais cessou. Isabel no entanto, reeditou com sucesso a solução de compromisso de seu pai, apelando já a espada, já ao patriotismo... E mais uma vez obteve a conciliação entre os partidos, embora não na mesma medida que seu pai, alias mais intolerante. Henrique certamente encarava os extremistas papistas e protestantes como fanáticos, enquanto estes encaravam-no como um incrédulo ou oportunista, o que talvez não fuja a verdade. Izabel era do mesmo tipo, conciliatória e sagaz, quiçá descrente.

No entanto durante todo seu reinado e durante os dois que se seguiram os 'comprometidos' ou crentes foram não cessaram de concentrar-se nos 'extremos' debilitando cada vez mais aquele centrão anglicano e predispondo a sociedade ao conflito iniciado em 1620. Desde então as facções Católicas - Romana e anglicana - congregadas sob o signo do realismo, e protestantes, chegaram as vias de fato, e a Inglaterra conheceu o inferno. Praticamente todo século XVII foi isto.

Alguém que, imaginemos Th Hobbes, ama-se a paz e a tranquilidade odiaria viver na sociedade Ateniense do seculo V, na sociedade romana do século I a C ou do século V d C, na Sociedade europeia dos séculos X e XI ou na Inglaterra do século XVII... Conhecendo a fundo as causas das situações problema enfrentadas por estas Sociedades nosso homem construiria soluções na direção radicalmente oposta. E como cada uma delas remete a dissolução e ao conflito nossos críticos promoveriam a unificação e a paz, pagando tributo a autoridade.

Platão incriminou a democracia e por isso delineou um estado despótico, em que os vigilantes exercem rigoroso controle sobre os demais setores da Sociedade, comandando-os. Hobbes face a turbulência promovida pela religião chegou, muito provavelmente a uma incredulidade que a seu tempo não era prudente assumir. Recriminou não apenas o protestantismo por ter canonizado o livre exame - Método que brilhantemente relacionou com a discórdia e a confusão doutrinal - mas o próprio sentido universal ou Católico da fé Cristã, o qual encarou como uma finalidade política e anti estatal inadmissível.

Hobbes deve ter pensando do Cristianismo o que a maior parte de nós hoje pensa sobre o Mercado. Que equivale a uma espécie de besta fera a ser enjaulada. Para ele a anarquia social de seu pais era fruto de uma religiosidade ou fé que fugira ao controle. Portanto Hobbes só pode conceber o Cristianismo como uma instituição submetida ao poder estatal ou seja nos mesmos e exatos termos que Henrique VIII ou Isabel reinados cujo histórico ele bem conhecia e para os quais suas vistas estavam voltadas, como que para uma Era de ouro.

Escrupuloso Hobbes tende a desconfiar, em menor medida, de todas as comunidades ou associações não políticas ou intermediárias, dando por certo que elas debilitam o poder do soberano, ameaçando, consequentemente a paz. A existência de guildas, universidades, colegiados, etc só pode ser admitida quando estritamente necessária e a guiza de concessão ou seja enquanto algo autorizado pelo soberano. De 'per si' não teem tais comunidades direito a existir. Frente ao Estado, corporificado no soberano, existe apenas o indivíduo, nenhum outro tipo de entidade.

Agora como justificar metafisicamente tal estado de coisas?

Diante do que testemunho no curso da primeira metade do século XVII, concluí Hobbes que o homem seja um lobo, um predador, uma fera; sempre disposto a devorar o outro homem. Como o Freud da maturidade ou da velhice, o totalitário inglês, postula que o homem é dominado por um impulso de agressividade. Onde estiver mais de um indivíduo a tendência será o conflito, não mero conflito classista, como queria Marx. Para o autor do Leviatã o conflito é individual e inevitável...

E no entanto este homem, e damos com Freud novamente, agressivo, aspira pela paz e pela tranquilidade.

Como chegar até ela?

Por meio do contrato as partes, tendo em vista este bem maior, que é a paz, devem abrir mão de suas liberdades e entregar-se a tutela de um soberano forte. Uma vez que todos sejam controlados com mão de ferro pelo soberano e nivelados pela submissão, o conflito generalizado cessará.

Encarado deste modo não é o Leviatã algo mau ou indesejável, mas algo verdadeiramente bom e desejável, enquanto caminho único para a aquisição da paz social ou da estabilidade. Da submissão ou obediência ao Estado e suas leis é que advirá o equilíbrio. Da servidão voluntária resultará a harmonia. A partir da qual a pessoa humana poderá cultivar suas habilidades. Já o exercício do que chamamos liberdade produzirá inevitavelmente a discórdia ou a guerra, a qual impedirá que o homem de realizar-se enquanto tal. Aqui uma espécie de denominação comum face a Platão: Qualquer situação de liberdade ou democracia resultará, necessariamente, em anomia, anarquia ou conflito. Diante disto a alienação da liberdade e o recurso a autoridade absoluta são requisitos exigidos por uma sociedade bem ordenada.

Por ai se vê que podemos discordar de Hobbes mas de modo algum duvidar de sua sinceridade ou negar a coesão de seu pensamento.

Nem podemos estar totalmente certos de que em situações sociais semelhantes as que ele ou Platão vivenciaram discordaríamos deles. A menos que nos presumamos mais habilitados ou inteligentes...




O pai e o avô do Leviatã... e o Cristianismo I - Ao fim da Idade Média...


 Resultado de imagem para Francisco Suarez





Mesmo quando repudiamos a origem divina do papado e reconheçamos a origem humana do Patriarcado - surgido pela primeira vez em Alexandria, sob Heraclas -  ao contrário dos fanáticos e sectários não podemos deixar de admira-lo ao menos quanto a certo aspecto. Apesar de estar em contradição com ele, o papado jamais deixou de reconhecer ou de afirmar a universalidade ou a Catolicidade da religião Cristã, enquanto instituição irredutível em termos de política ou de unidade nacional. E isto a ponto de identificar sua própria igreja particular, de Roma, com a mesma Igreja Cristã e Católica, da qual o romanismo fizera parte até 1054 ou até 1336... evidentemente que a identificação é absurda posto que a parte não pode ser o todo, nem uma igreja apostólica particular corresponder a Catolicidade.

A confusão foi terrível mas pior ainda teria sido substituir de pronto a noção de Catolicidade ou universalidade da divina Revelação por um espírito nacional ou sectário. Isto a igreja de Roma não fez... Verdade seja dita.

Direi mais. Apesar de sua origem humana e de seus crimes - porquanto o papado certamente cometeu crimes terríveis (a Reforma cometeu ainda mais - palavras de um ex protestante) - bem como dos delírios acalentados pelos curialistas em torno de uma asquerosa monarquia direta ou teocracia ao menos por um instante alguns teóricos do papado, como o Cardeal Nicolas de Cusa e o teólogo Francisco Suarez elaboraram uma solução engenhosa no sentido de dar aplicação ao 'jus gentium', setor específico da Lei natural. Este 'just gentium' é que esta na base de nosso direito internacional e a própria corte internacional de Haia sequer poderia existir senão como decorrência ou desenvolvimento destes conceitos elaborados primeiramente pelos estóicos, reassumidos pelos juristas romanos e incorporados formalmente pelo pesamento Cristão, especialmente com Aquino, Cusano, Vitória e Suarez, até chegarem a Hugo Grotius posto que Grotius é pensador racional ou essencialista. O relativismo cultural ou o direito puro/positivo jamais resultariam em algo semelhante a uma legislação universalmente válida. O direito internacional não pode abrir mão de tais pressupostos...

Nem nos importa aqui a trajetória ou o sentido deste direito, mas a construção de mecanismos, universais, que permitissem sua aplicação.

Naturalmente que após a afirmação dos diádocos e epígonos semelhante ideal tornou-se impossível aos gregos. Atendo-se cada nação ou pais a sua lei, positiva, por assim dizer. E nem se cogitou num tribunal internacional. Outra a condição do Império romano. Posto que centralizado na figura do Imperador ou daquele que possuindo o 'imperium' controlava o exército e administrava o poder, conferindo-lhe mais e mais um aspecto pessoal e arbitrário, não era o Imperador tolo e tampouco seus conselheiros. Assim se ele buscava introjetar em todos os súditos, por meio da religião um espírito se submissão as instituições romanas e, por meio da educação, formar esse espírito; nem por isso ignorava como os povos e nações eram ciosos quanto a suas leis e costumes. E o Império era isto: Ao menos em sua perifeira uma mosaico de estados, nações e culturas, alguns por sinal, bastante venerandos como o Egito, a Síria e a Grécia... Buscar impor a lei romana, derivada da cultura romana a todos estes povos seria uma política desastrada, coisa que os judiciosos romanos jamais intentaram fazer... E já sabemos porque este Império atravessou tantos séculos. Afinal os decretos imperais, via de regra, limitavam-se a regular a coleta de impostos, abstendo-se de imiscuir-se em questões de ordem religiosa ou cultural, exceto no caso dos cidadãos romanos ou dos italianos propriamente ditos. Era a palavra do Imperador a Lei seja em Roma, na Itália ou no que tange aos cidadãos romanos... Em outros lugares apenas o básico ou sumário sobrepunha-se a Lei positiva...

E no entanto, ao menos em algumas situações, precisava o poder romano ou o Imperador, julgar alguns cidadãos ou mesmo estrangeiros quanto a tais questões ou questões co relatas. O que levou os juristas, na esteira dos estoicos, a buscar um elemento comum nas legislações dos diversos países ou nações. Tais as fontes do 'jus gentium', aplicado pelo Imperador ou em nome do poder imperial. Tal noção, no entanto, ao menos por algum tempo, morrer com o Império ou após sua dissolução. Até reaparecer no dealbar da baixa Idade Média ou ao tempo de Aquino, pouco mais pouco menos. Na medida em que a Europa vai entrando em contato com diversos povos, nações e culturas ou constituindo-se ela mesma em diferentes nichos políticos, reaparece a demanda em torno de uma Lei comum ou de um 'jus gentium' alias assente nas Institutas. Mormente após a descoberta da América ou a redescoberta do extremo Oriente, torna-se tal necessidade imperiosa e é claro que os eruditos vão as Pandectas ou ao direito romano em busca de respostas ou de soluções.

Os subsídios intelectuais ou doutrinais estavam a mão.

O problema dava-se no domínio da praxis. Quem ou que instância, após a queda do Império Romano e a remoção da figura Imperial, seria capaz de julgar, não pessoas ou indivíduos, mas unidades políticas, países, estados ou nações em conflito. Quem haveria de julgar ou de disciplinar as guerras por sinal mais mortais e catastróficas na medida em que os Estados se iam unificando e tornando maiores? Atualmente se nos ocorre um parlamento supra nacional uma espécie de Liga das nações ou de ONU. Aquele tempo no entanto...

É possível que ocorra a alguém a figura do Imperador, titular do Sacro Império Romano Germânico desde Carlos Magno, coroado pelo Papa romano desde 800.

E no entanto este Império de nome ou de papel só teve alguma força enquanto os países ou nações da Europa eram pequenos ou cindidos em diversos senhorios influentes, que limitavam o poder do soberano. Na medida em que vão surgindo unidades maiores e centralizadas em torno de um senhor poderoso a autoridade do Imperador se torna ainda mais vaga ou teórica e até podemos dizer que sua autoridade se vai limitando aquele Mosaico de principados chamado Germânia (o qual englobava a atual Aústria)  com as pretensões italianas... Portugal, Espanha, França e Inglaterra foram se desprendendo dele ou permanecendo fora no decorrer do tempo. O que limitava bastante a possibilidade do Imperador julgar os reis, uma vez que ele mesmo constituia uma parte interessada.

A partir da inviabilidade manifesta de se atribuir semelhante incumbência ao sucessor de Carlos Magno, da demanda prática que se impunha - percebida bastante claramente por Francisco Vitória - e da redescoberta do 'jus gentium', alguns teólogos forjaram a primeira solução moderna que ao menos de longe reporta a uma ONU e consistiu ela em atribuir essa arbitragem, a respeito das guerras e conflitos travados entre as diversas nações europeias ao Papa ou Patriarca de Roma, cuja autoridade legitima - ao menos quanto ao patriarcado - estendia-se a maior parte do Continente. Tais sugestões foram nomeadamente elaboradas por Cusano e Suarez tornando-se clássicas sob Joseph de Maistre, isto numa Europa religiosa ou confessionalmente cindida em diversos credos, e de cuja cisão alias, decorreram pavorosas guerras. É Maistre um retardatário ou reacionário ingênuo. Uma vez que após o advento da reforma protestante o recurso a arbitragem papal se torna absolutamente inviável. Como se deduz a partir dos conflitos religiosos citados e de outros conflitos que se vão tornando mais comuns e graves.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Cristianismo, Bíblia, Direito Romano e absolutismo


 


Quero compartilhar, por meio deste artigo, algumas reflexões sobre a afirmação do Absolutismo no contexto Cristão e suas fontes. A bem da verdade quero estabelecer comparação entre os Catolicismos e o Protestantismo no que concerne ao Absolutismo ou melhor dizendo a sua defesa.

Via de regra tendemos a identificar o romanismo como principal promotor desta forma odiosa e entre nós um pastor protestante, equilibrado e de imensa cultura, foi por este caminho, a saber, Guaracy Silveira em Lutero, Loyola e o totalitarismo. Quiçá tenhamos de repensar nossos preconceitos.

Devido a patacoada do libre exame, tendemos - e a relação é francamente absurda - a relacionar o protestantismo com a democracia ou mesmo com o liberalismo político/pessoal. A superficialidade faz com que passemos a largo do discurso de Lutero a respeito dos camponeses insurretos, bem como da nova Genebra 'criada' por J Calvino e descrita pelo insuspeito Pierre Van Paasen como o 'Primeiro campo de concentração da humanidade'. Ora esta Genebra fora democrática sob o domínio da fé romana... E assim diversas cidades e cantões suíços durante boa parte da baixa Idade Média, antes que a Reforma protestante sequer fosse pensada. Temos de repensar nossas avaliações.

Longe de mim negar a existência de uma doutrina ou crença absolutista no seio da Igreja antiga. E temos de saber que ela ai está e que a encontramos já nas obras de Adam de Iona o qual floresceu no século VII, primo de Columba e contemporâneo de Beda, o venerável. Além disto, no Oriente, temos o exemplo da prática. Assim Justiniano praticou com sucesso o cesaropapismo. Não Constantino - que segundo S Eusébio jamais intrometera-se em assuntos teológicos e sempre respeitara os Bispos - mas Justiniano, o herético, aftardoceta e capacho de Teodora, foi quem pela primeira vez tratou os clérigos como servidores merecendo ser apresentado como tirano cruel por S Isidoro Hispalense. De fato ele foi o primeiro a tentar submeter a Igreja de Cristo e a controlar o clero, e o único a ser, até certo ponto, bem sucedido. E fato de que as Institutas ou Pandectas tenham sido elaboradas por ordem sua não deve passar em branco...

Constantino como já dissemos apenas observou o quanto os Bispos faziam, respeitando a liberdade deles e da Igreja. Teodósio submeteu-se reverentemente ao juízo de S Ambrósio portando-se como filho da Igreja e assim os Basileus do quinto século, cujas figuras empalidecem face as do astuto Cirilo, do sábio Leão, do mártir Flaviano e de outros líderes que puderam traçar, livremente, os caminhos e destinos da Igreja.

Justiniano todavia era iniciado no 'Imperium' ou seja em tudo quanto os juristas romanos escreveram sobre a autoridade política e seus limites a partir de César Augusto. Basta dizer que este direito lisonjeiro não apenas colocava o soberano acima da Lei como dava sua vontade por inquestionável e absoluta. E não nos devemos espantar, pois para os antigos romanos era o Imperador um deus... a exemplo do Faraó, filho de Rá, entre os egípcios. Justiniano certamente não tinha opinião demasiado humilde a respeito de si mesmo... Em Roma teria dado um excelente deus, a exemplo de Augusto ou de Calígula. No contexto Cristão teve de contentar-se com ser representante de Deus... Acontece que o Deus Jesus Cristo tomara doze pescadores por representantes e não Augusto César. Justiniano não prestou lá muita atenção neste grave detalhe ou não quis leva-lo a sério, e assim seus pretensiosos sucessores como Zenon (o do Henotikon), Heraclio (o da Ekthesis), Leão; o Isaurico, Constantino Kropronikos, etc os quais pretenderam governar a Igreja de Cristo e poluir-lhe a Santa doutrina...

No entanto enquanto a pentarkia foi mantida e os demais patriarcados estiveram em comunhão territorial e política jamais puderam ser bem sucedidos em suas intrigas. Por outro lado após o triunfo do islã e a impossibilidade de congregarem concílio gerais frustrou-se para sempre o intento de impor suas opiniões como Dogmas de fé ou de abusar do Concílio. E apenas a Igreja de Constantinopla permaneceu como feudo deles. Venceram mais uma vez ao impor, com objetivos políticos, o palamismo. Mas não sem terem enfrentado feroz resistência em sua própria cidade... E nem sempre a sorte lhes foi propícia face a autoridade patriarcal. Pelo que jamais conseguiram submeter nossos Ortodoxos ao papa romano ou uni-los por via da força a Igreja latina... Até que Mohamed IV, filho de Amurat, quebrou-lhes o cetro orgulhoso. O patriarcado no entanto subsistiu...

Em suma, apesar das circunstâncias o Basileu nem sempre logrou manipular e controlar a Igreja Bizantina. E sempre houve um número significativo de clérigos e dignidades que se opuseram a seus desígnios politiqueiros.


Significativo que no contexto Oriental ou Ortodoxo os Basileus não tenham recorrido sistematicamente a Bíblia com o objetivo de firmar sua autoridade absoluta, ao menos em política e o douto Anthony Kaldellis avança, ao identificar elementos democráticos ou parlamentares no Império Bizantino. Temos de le-lo, sem dúvida.

Outro foi o caso do Ocidente latino, onde as mentes inclinavam-se para o Livro muito precocemente. Assim Carlos Magno é repetidamente apresentando, por seus teólogos como um 'Novo Davi', sem que no entanto pretenda tratar a Igreja local como um Basileu constantinopolitano. Nas Gálias, como na Hispania, o metropolita continua a reger sua Igreja aristocrática ou democraticamente, i é por meio dos sínodos, os quais mantiveram-se até a ascenção do papado. Carlos Magno, a exemplo de Constantino não entra em assuntos teológicos ou propriamente religiosos. Usa indevidamente a espada para promover a fé, mas não é um Justiniano.

No Ocidente como é sabido, as coisas se sucedem em sentido inverso, e o patriarca ou papa é que se converte em rei dos reis ou Imperador, num Imperador da fé, embora com fortes conotações políticas, até a soberania temporal e a teocracia.

É evidente que em semelhante contesto, de uma Igreja monárquica com fortes pretensões ou políticas, dificilmente prevaleceria a doutrina do direito divino dos reis ou do absolutismo régio. Aqui o Papa deve ser compor com o Imperador, o Imperador com os reis, os reis com os senhores ou a nobreza, os senhores e nobres com os cavaleiros, estes com os monges ou clérigos e todos com as cidades livres... E temos a velha noção de autoridade em círculos concêntricos até certo ponto autônomas, das comunidades intermediárias enfim. Tendo sido dito inclusive que nossa liberdade e nossos direitos correspondem a um nicho aberto pela luta travada entre essas diversas comunidades, que objetivavam submeter com exclusividade a pessoa. Quanto a esta tese teríamos de examinar tanto mais de perto o triunfo do absolutismo para, em seguida, valida-la ou não. Tal não é a proposta deste artigo.

Tudo quanto queremos dizer é que durante algum tempo os defensores do direito divino dos reis ou do absolutismo monárquico, tiveram de manter-se a margem da Igreja romana. Assim Wycliff... Posto que Marsiglio de Pádua, se bem que jurista, sustentou a doutrina da soberania popular, antecipando Locke e Rousseau. E em tempos mais adiantados Maquiavel, o qual de modo algum recorre a Bíblia, pelo simples fato de ser incrédulo.

Acho significativo que Wycliff tenha sido absolutista, biblista - como se diz - e precursor da Reforma protestante. O que de pronto nos levaria a Lutero, Calvino, Th Erasto, Tiago VI, Hobbes por terem bebido na mesma fonte. Filmer apesar de não ser protestante (Era episcopal ou anglicano) não foge a regra...

Tornemos assim a Bíblia.

E a política nela inspirada. Começando pelo antigo testamento. Tão caro a nossos protestantes, formados na crença de um Corão 'cristão' (I é na crença em sua inspiração linear e plenária).

Como sói a respeito de praticamente tudo não existe acordo entre as partes do Antigo Testamento a respeito do poder. Pelo simples fato de que não existe um antigo testamento unitário, exceto nas mentes dos fanáticos. O que existe ali são diferentes perspectivas conforme a mentalidade do autor de cada um dos registros. Apesar disto prevalece nitidamente uma orientação teocrática. A qual bem pode ser definida como reação sacerdotal face a uma realeza independente. Não estou, em momento algum, referindo-me a um governo naturalista, laico ou liberal (seria absurdo) mas apenas a um poder que não é diretamente exercido pelo sacerdócio ou controlado pelo templo. A um poder que até deseja promover a unidade religiosa ou servir a fé, e que no entanto é próprio e até certo ponto autônomo.

A impressão que se tem a ler os crimes e pecados da realeza é que Samuel, porta voz da teocracia, estava certo. A realeza exercida por profanos correspondia a uma decadência... Os hebreus deveriam ter permanecido sempre debaixo das asas do clero ou da tutela do sumo sacerdote de Jerusalém, o qual continuaria a subministrar-lhes as decisões e decretos de Jao. Temos aqui um governo de inspirados ou profetas orientados diretamente pelos céus. Tal o ideal do antigo testamento. Não um rei que representasse ao deus, mas um Sacerdote que desempenha as funções reais em nome do deus. E temos aqui algo muito pior do que a monarquia absoluta, temos um califado!

Assim todo biblista que conhece profundamente o testamento velho e professa ser ele pura palavra de deus assume uma perspectiva teocrática.

Devemos confessar no entanto, que desde Dawid, não é ela a única perspectiva vetero testamentária. Existe uma outra, paralela ou rival em torno do trono de Davi ou da dinastia davídica, a qual tornou-se cara aos cristãos ou predileta devido ao fato do Senhor Cristo ser descendente carnal de Davi. A partir daí a propaganda davídica ganhou os corações de muitos cristãos devotos. Davi seria o rei conforma o coração de deus e modelo da realeza agradável. Segundo esta concepção também o rei pode servir ou mesmo representar a deus, da mesma maneira de o sumo sacerdote. Aqui o rei piedoso, que imita Davi, converte-se em ministro de deus.

Tal a perspectiva mais comum ao tempo de Jesus Cristo pelo simples fato de que os fariseus odiavam profundamente os saduceus, representantes do partido sacerdotal. Afinal os saduceus, guardiães da Toura sabiam que seus adversários haviam adicionado elementos espúrios - como anjos, imortalidade da alma, ressurreição, etc - a fé ancestral, e folgavam espalha-lo aos quatro ventos, exasperando os rabinos... Destarte a versão teocrática achava-se desacreditada entre os fariseus e entre as massas por eles controladas. Prevalecendo a mística em torno do trono de Davi ou de seu descendente carnal, o Messias... A bem da verdade o grosso dos judeus aspirava pela independência sob a tutela de um rei, tal e qual as outras nações. Sendo assim eles criaram uma tradição ou uma linha de pensamento segundo a qual todo rei piedoso era um ministro de deus...

Gamaliel era certamente porta voz desta doutrina, a qual comunicou a seu aluno Paulo de Tarso, chegando ela a Romanos 13,1 - 7, donde passou a Wycliff, Lutero, Erasto, Calvino, Tiago I, Hobbes, Filmer e mesmo ao Bispo romano J B Bossuet... Embora haja outro eco seu em I Pedro 2,13. Assim a doutrina do direito divino é apostólica ou pertencente ao antigo testamento. Como a doutrina da teocracia é bíblica, por constar no velho testamento.

Tornam-se por isso Cristãs, sagradas e incontestáveis, a maneira de dogmas?

Como queria os personagens acima citados? Partidários do Corão Cristão...

Como não estou compondo um ensaio religioso, mas político, limitar-me-ei a perguntar: Mas e Jesus? E Jesus Cristo? Teria ele ensinado tais doutrinas?

Chegado a este ponto abro meu Evangelho e leio: A César o que é de César e a Deus o que é de Deus - Assim as coisas de Deus não são de César e as coisas de César não são de Deus. Pois se as coisas de César são de Deus por que as coisas de Deus não seriam de César... Assim se o César faz política em nome de Deus, Deus bem pode atuar por meio de César. E chegamos a monstruosidade absoluta: Foi Deus mesmo que fez os Césares pagãos perseguirem seu povo e extermina-lo. E quando os Cristãos eram sadicamente torturados no fim das contas era o bom deus que os torturava através de seu servo o Imperador.

Evidentemente que os atos de César nada tem a ver com os atos de Deus e vice versa. Nem são os governantes deste mundo servidores ou ministros de Deus, nem é Deus autor da política mundana. Temos de ser honestos e de confessar que os apóstolos, reproduzindo as opiniões dos fariseus, escribas e rabinos estavam redondamente equivocados. Temos de abandonar Pedro e Paulo para seguir a Jesus Cristo e assim reconciliar-nos com o mundo civilizado. Nem petrismo, nem paulismo mas Cristianismo puro e simples, pautado no Evangelho.

Temos aqui os dois fundamentos do pensamento teocrático: O direito romano e os escritos apostólicos ou o antigo testamento, a Bíblia enfim. Uma fonte é politeísta, devendo por isso mesma ser corrigida a luz da divina Revelação e da razão. A outra é judaica ou rabínica, fazendo jus a mesma correção. Nenhum deles parte do Evangelho ou da palavra de Cristo, e já podemos dizer que nem o direito divino dos reis, nem o absolutismo monárquico são legitimamente Cristãos. São doutrinas anti Cristãs e anti Católicas mais próximas do biblismo e do paganismo antigo.

Agora por serem bíblicas não puderam elas deixar de florescer no contesto protestante de par com a ilusão nacional, e enfim de par com a mística nacionalista. Grosso modo nacionalismos, absolutismo e capitalismo constituem-se juntos a sombra de um Cristianismo dividido ou do protestantismo. Ora pretende o Capitalismo substituir o Catolicismo Ortodoxo enquanto elemento comum ou unificador, embora Durkhein tenha deixado bem claro que o econômico, socialmente compreendido é um fator de desagregação ou dissolução, mormente quando associado ao nacionalismo e ao sectarismo religioso. Daí a presença das guerras no continente Europeu até 1945 e após a queda do muro de Berlim novamente.

Compreenda, amigo leitor, que os homens sempre tem buscado um elemento comum, capaz de aproxima-los ou de unifica-los - As religiões antigas ou pagãs, depois as grandes religiões universais, a Divindade naturalmente percebida, a Lei natural, a Razão... O ideal 'Católico' de Sócrates, Platão, Aristóteles, Alexandre, Zenon, etc jamais fora posto de lado pela cultura europeia. Era um ideal civilizatório. Impulsionado pela instituição Cristã... E todos sonhavam com este Uno ou com esta unificação, que os modernos, a exemplo de Crane Brinton, Berlin e Gray, tem em conta não apenas de falta mas de nefasta.

Por 1500 anos os Cristãos levaram adiante este sonho. Até o momento em que o alemão Lutero rasgou a túnica do Senhor. Não com suas opiniões sobre a salvação, fossem quais fossem eles, mas com o método individualista, subjetivista e relativista do livre exame. Produziu ele, no corpo de Cristo, uma ferida que jamais foi fechada e ela se chama divisão. Desde então o Cristianismo definhou e multidões perderam a fé... Pela porta da Reforma com suas seitas e credos beligerantes a incredulidade instalou-se na Europa. Agora imaginem os senhores o impacto que esta visão produziu nas mentes daqueles que mal haviam saído da Idade Média.

Na Inglaterra, precocemente unificada e centralizada, o monarca aproveitou-se do momento para conquistar o poder absoluto numa escala jamais pensada ou nacional. E para tanto, partindo da 'Bíblia' - i é de Paulo e Pedro - e tomando o exemplo de Justiniano e dos basileus, proclamou-se chefe da Igreja local ou Inglesa, que logo passou a chamar-se anglicana. E não se tome o termo chefe por alegórico mas em seu sentido literal. Como a igreja inglesa não possui-se um patriarca Henrique VIII assumiu modos de papa e patriarca, de dono, senhor ou proprietário duma igreja cujos verdadeiros líderes, os Bispos, isolados uns dos outros, não podiam fazer-lhe frente.

Se compreendemos um monarca absoluto como alguém que tudo controla, diretamente, Henrique VIII foi o primeiro deles. Pois ao abater a Igreja Romana abateu todas as instituições medievais ou comunidades intermediárias. Com a Igreja tombaram mosteiros, guildas de comerciantes, universidades, corporações de cavaleiros, etc Desde então qualquer convívio dependia da permissão ou chancela real para existir... convertendo-se assim em feudo do rei. Do contrário eram tais comunidades postas fora da lei e exterminadas.

Na vizinha França era a situação bem outra. Achava-se tanto mais descentralizada ou dividida, inclusive politicamente. Imaginem então este quadro adicionando-se a divisão religiosa? Seja como for, os contemporâneos de Bodin, desesperando de uma Unidade religiosa ou Cristã, acalentaram a esperança da Unidade nacional, territorial ou política. Na Alemanha os pequenos principados medievais, agora cindidos igualmente quanto a fé, surgiu um mosaico religioso e este mosaico religioso tornava a unificação política impossível.

Paradoxalmente nos principados - Grandes ou pequenos - adquiridos pela nova religião o poder político adquiriu um 'status' bastante elevado. Afinal a Reforma fora impulsionada por ele. Devia agora pagar tributo... E Lutero pagou com um servilismo raramente testemunhado nas crônicas da História, sempre apelando a Romanos 13,1... Aquino, com as devidas precauções e João da Salisbury - no Policraticus - haviam defendido o tiranicídio ou o direito de rebelião por parte dos cidadãos oprimidos e esbulhados de seus direitos. Lutero, fundador do protestantismo ou como se diz 'reformador' sanciona a tirania e o despotismo em nome de deus. E temos aqui uma doutrina sumamente agradável aos ditadores...

Por toda Alemanha, onde quer que o luteranismo triunfe é o episcopado eliminado, convertendo-se o senhor ou governante cívil em única e absoluta autoridade. Na Inglaterra o rei atua através dos Bispos. A Alemanha o senhor é o Bispo. Além disto, e exiguidade dos principados luteranos tornava possível a aniquilação total dos dissidentes e a imposição da uniformidade. Com o Bispo, nos cantões luteranos, é eliminada a única autoridade que fazia sombra ao senhor e limitava suas ambições. Durante toda Idade Média puderam os oprimidos e descontentes recorrer ao Bispo... Desde então, todo e qualquer recurso tornava-se impossível entre as populações luteranas, em que os pastores eram funcionários públicos pagos pelo senhor. Não poucos autores consideram que durante este período os camponeses alemães ou melhor luteranos converteram-se em escravos do príncipe, vindo a conhecer um regime ainda mais duro que o medieval, o qual prevaleceu por quase duzentos anos após a decapitação do soberano inglês Carlos II... Noutras palavras - Até a conquista napoleônica.

E enquanto o Pe Jesuíta Mariana - em 1598 - com escândalo e agrado de reis protestantes e papistas, endossava a doutrina comum do tiranicídio ou seja do direito de insurreição por parte dos súditos oprimidos, apelando alias a clássica doutrina da guerra justa, o teólogo zwingliano Tomas Erastus, sustentava que a disciplina eclesiástica não precisava ser administrada pelo 'novo clero' - protestante - mas pelo principado secular, desde que Cristão. Donde se segue que os delitos propriamente espirituais ou eclesiásticos podiam ser punidos pelo soberano. Ele foi incapaz de perceber o quanto seu sistema aproximava-se da Inquisição espanhola enquanto mecanismo de poder nas mãos do Estado. Hooker deve te-lo compreendido muito bem, incorporando diversas de suas teses ao estatuto da igreja anglicana, enquanto repartição política...

A controvérsia atinge seu ápice, e não deixa de ser significativo, em 1598, quando o futuro Tiago I da Inglaterra, publica 'A verdadeira lei e liberdade das monarquias livres' o qual é, por assim dizer o mais completo manual absolutista de que se tem notícia. E foi escrito meio século antes das obras clássicas de Filmer e Hobbes. Basta dizer que ele encara o ofício dos reis tal e qual a sucessão apostólica dos Bispos e a si mesmo como um Bispo secular ou civil. E proclama-se, muito naturalmente, dono ou proprietário da igreja nacional, na mesma perspectiva que Henrique VIII meio século antes. Curiosamente, levanta armas contra ele, o cardeal Roberto Belarmino, que partindo da lei natural assume perspectivas notadamente democráticas. Isto a ponto de sua Resposta ao rei de Inglaterra, ter sido lida e anotada por Jefferson, um dos teóricos da democracia Norte americana.

Seguem as obras de Hobbes - a quem dedicaremos um artigo a parte - e de Filmer o qual em sua obra "O patriarca" rivaliza com o precedente para ver quem melhor defende o poder absoluto dos reis. E como Hobbes segue por uma via marcadamente naturalista, ele Filmer, fixa-se nos exemplos do antigo testamento e folga tirar sua política da Bíblia. E para melhor coroa-la, apresenta a democracia ateniense como um mercado em que a justiça era vendida...

Por outro lado, mais uma vez, temos um jesuíta - Francisco Suarez (De Legibus) assumindo valores democráticos de modo absolutamente claro e, após a autorização ou juízo do papa romano, justificando não apenas a deposição mas o extermínio do tirano em termos de uma Guerra justa.

Que dizer agora de Bodin a quem os democratas protestantes e os maus católicos, totalitários, costumam apresentar como o primeiro teórico do absolutismo? Quando a Bodin limitar-me-ei a responder: Antes de repetir bobagens, leiam o segundo capítulo de R Nisbet sobre a formação da Comunidade política. Pois uma coisa é ter definido com precisão que seja soberania e pugnar pela unidade territorial de seu pais, e outra totalmente distinta, sustentar a doutrina absolutista. Bodin escreveu sua obra - A República - em 1576, e numa realidade que não chegara a atingir aquela da Inglaterra de 1643. Ademais viveu apenas meio século após o advento da Reforma protestante, e trás ainda lealdades medievais ou certo respeito pelas comunidades intermediárias, como a família, os colegiados, as corporações... cuja existência defende. Sonhava com uma unidade política forte e centralizada, sucedâneo da Unidade Católica, mas não era um iconoclasta atrevido...

Vejamos agora que saíra deste balaio régio...

Da mesma maneira como entre os 'papistas' decepcionados o ideal da Unidade política ou nacional substituiu o ideal da Unidade europeia ou universal fundamentada na fé entre os protestantes a fé na igreja nacional foi sendo cada vez mais substituída pela fé na superioridade nacional ou por uma mística nacionalista. Isto porque, graças ao livre exame, a divisão e a confusão eles acabaram perdendo a fé muito antes do que os romanistas... A bem da verdade foi esta fé transferida ao Estado, ao pais ou a nação e dando origem a um credo tenebroso.

Lutero no seio da fé havia já afagado as susceptibilidades do povo alemão. E a simples ideia de ter sido agraciado com a reforma da da Cristandade mexeu com o ego deste povo. E mesmo quando desampararam a mal sucedida reforma buscaram os germânicos outro tipo de grandeza, fornecida pelos teóricos da raça ariana. Como dissera Santayana ainda aqui a reforma aplainara os caminhos... até o nazismo. Unificada a Alemanha, em 1870, teve o Kaiser de aceitar a partilha do poder com o Parlamento. Os luteranos no entanto, transferiram para ele o mesmo olhar de submissão com que costumavam olhar seus terratenentes até 1810. Napoleão havia pulverizado aquelas estruturas todas mas não a cultura da submissão... Apesar de Henrique VIII, Tiago I, Hobbes, Filmer e outros, o inglês - mesmo anglicano devotado - externamente coagido pela força, jamais se deixará escravizar por dentro. O luteranismo alemão fora bem melhor sucedido, pois ao cabo de três séculos implantará a escravidão no interior do homem. E por isso, a seu tempo, eram aqueles alemães, em virtude da obediência passiva, encarados como animais domesticados. E nem Marx podia acreditar que fossem capazes de rebelar-se sem que antes fossem introduzidos na nova realidade capitalista.

Eis porque devemos considerar com maior atenção as opiniões superficiais e correntes, como aquela que associa o papismo a tirania e o protestantismo a liberdade. Pois elas bem podem ser falaciosas... E de fato temos Marsiglio, Mariana, Belarmino e Suarez francamente pela democracia e Aquino, Cusano e Vitória vinculando a fonte do poder ao povo em termos de lei natural.






terça-feira, 23 de outubro de 2018

As mutações da Comunidade...



Imagem relacionada


Algumas Reflexões sobre Formas de comunidade, Sociedade política, Apogeu, Declínio, Crise, Anomia, Anarquia, Despotismo, Totalitarismo, Democracia, Liberalismo político, etc tomadas as diversos autores.



Muito se tem discutido em torno do termo 'político', o qual a bem da verdade, numa perspectiva mais estrita ou policrática, deveria acoplar-se ao termo 'sociedade'. Todavia é certo que o político e o social movimentaram-se separadamente por muito, muito tempo. Sempre que isto aconteceu o político ou permaneceu apenas em potência ou degradou-se. E a comunidade permaneceu militar - apesar do apelo político - ou tornou-se econômica, deixando de captar a intensidade do político. A Piccarolo e R Nisbet

Precisamente por isso - dando que o político e o social andaram separados por um bom tempo - aqueles que definem a ação política enquanto relações de poder, encaram tanto a monarquia quanto a aristocracia como entidades políticas, no sentido já explicitado, duma estrutura política que não se identifica plenamente com o que chamamos sociedade. Claro que essa política, feita a chicote e espada não pode ser a boa política, mas uma política de segunda classe ou categoria.

A política só adquire qualidade e se torna consciente de si mesma quando se faz democrática ou quando o discurso e a argumentação substituem a espada, enfim quando se busca livremente o consenso ao invés de estabelecer um acordo formal por meio da coerção externa.

Portanto, se num sentido 'lato' temos de considerar a monarquia e a aristocracia como formas políticas, num sentido mais estrito ou purista apenas a democracia o é - e quando dizemos democracia queremos dizer democracia verdadeira: Inclusiva, liberal e direta (inclusiva e liberal por nós e direta pelos gregos rsrsrs) - pelo simples fato de apenas ela comportar cidadania.

Monarcas e aristocratas tem súditos i é pessoas que aceitam submeter-se a um poder externo a si e portanto imposto. Na forma policrática o cidadão identifica-se com o governante manipulando ele mesmo, diretamente, o poder. É ele um co governante com os demais cidadãos membros do corpo social. Daí a identificação - Governo/Sociedade. É exatamente este aspecto que torna a vida democrática intensamente rica em comparação com as formas precedentes, que ressentem a militarismo, a autoritarismo, a coerção, a imposição, a arbitrariedade...

Sabido é de todos ou de quase todos que a Democracia foi criada ou inventada pelo ateniense Clístenes no ano 509 a C, uma data memorável. Claro que não se trata de nossa democracia anglo saxã, obra de John Locke.

O que poucos de nós sabem ou imaginam - e de fato é insólito - é que o conceito de cidadania ou participação política antecede o conceito de pessoa. É a democracia anterior ao que chamamos de liberalismo político. Compreendido como espaço próprio da pessoa ou privado, ou ainda como santuário inviolável da consciência. Já Fustel de Coulanges, na clássica 'Cidade antiga' referia-se a esta verdade. De que nos tempos antigos era a cidade Estado tudo e a pessoa nada... posto que as leis invadiam e regulavam todos os setores da existência humana, de modo que nada tocasse a liberdade ou a autonomia.

Além de exclusiva, no sentido de excluir o escravo, a mulher e o estrangeiro, foi a democracia grega não menos totalitária do que a monarquia ou a aristocracia, e não devemos nutrir ilusões a respeito. 
 
 De fato os gregos conceberam a ideia genial de que polis fosse governada pela totalidade dos cidadãos. O que ele jamais imaginaram é a existência de setores da vida humana que não fossem determinados ou controlados pela polis.

Para as antigas civilizações, anteriores ao advento do Cristianismo, tudo, inclusive a religiosidade, dizia respeito a família ou ao estado, a tradição ou as leis cabendo ao homem amoldar-se. Após ter absorvido a família com suas tradições a polis, por meio da lei escrita, tornou-se senhora absoluta das existências. Um dos primeiros juízos que define e restringe com precisão a esfera e o alcance do político e por ext do social, encontra-se na clássica passagem de Suarez: "O objetivo da sociedade cívil - leia-se estado, poder público, etc - é o BEM COMUM TEMPORAL."

E no entanto estes gregos, que não era tontos, puderam imaginar as decorrências da vida democrática.

Por isso, durante cero tempo, parte dos gregos pôde - ao menos quanto o foro interno da consciência - desprezar as instituições e tradições, inclusive religiosas.

E no entanto esta convenção, que separava a liberdade de pensamento da liberdade de expressão, estava longe de corresponder ao nosso Liberalismo, filho do Cristianismo e do martírio.

Pois jamais grego algum acalentou a possibilidade assumir publicamente suas negações ou ceticismo. Formal ou publicamente eram todos adoradores dos deuses, todos religiosos, todos devotos... E ofereciam sacrifícios! Os gregos mantinham as aparências ou a ficção com firme zelo, sabiam até onde podiam chegar. Um mínimo desvio, com efeito, implicava beber cicuta, ser exilado (assim Aristóteles) ou arrastado a um processo ignominioso (assim Anaxágoras)... Não havia liberdade alguma para ser diferente ou e tinha os filósofos de suportar a canga da hipocrisia.

Portanto, os refinados atenienses jamais imaginaram um setor qualquer da existência separado da polis ou privado. É justamente este setor da existência, setor pessoal ou privado -  fundamentado num direito mais alto ou natural (Lembre-se de Antígona) - que possibilita a qualquer homem apelar ao tribunal interno da consciência face as ambições totalitárias do poder público (Lembre-se de Creonte). Os antigos atenienses não tinham para onde apelar. Nós reconhecemos que a existência corresponde a duas esferas bem distintas, uma privada e regulada pela própria pessoa e outra pública, regulada pelo poder político. E admitimos que cada uma delas seja soberana em sua própria esfera. De maneira que o privado/pessoal não se sobreponha ao público na esfera do político e que o público não invada a esfera privado/pessoal. Os gregos nada conheciam neste sentido.

Assim se Locke concebe uma democracia capenga ou representativa - Inventando um processo por meio do qual o poder é transferido do povo para alguns poucos representantes - ao constatar que os produtores não podiam não podiam participar integralmente da atividade política - como na polis grega - sem causar graves danos a atividade econômica, ou que trabalhando excessivamente não podiam fazer a boa política, Platão opta pela solução radicalmente oposta. E - ao menos quanto aos viligantes - eliminando a família busca atingir a vida privada em seu coração. Desde então o estadista platônico poderá consagrar-se por completo a atividade pública ou política. 

Se o inglês, comprometido com o capitalismo emergente, restringe a esfera da coisa pública, falseando a ordem democrática (Arendt), o grego de ombros largos cogita suprimir a esfera do privado, caindo, é claro, em mais uma utopia, corrigida, posteriormente através das 'Leis', obra do Platão mais maduro e realista.

Bem, chegamos a Platão, e Platão é sempre um tema interessante.

Karl Popper na Sociedade aberta e seus inimigos, divisa em Platão o Patriarca das sociedades fechadas e busca relaciona-lo com o quimérico passado de Atenas. O equívoco salta a vista pelo simples fato da antiga sociedade ateniense ter sido do tipo familiar, enquanto que Platão, como vimos, preconizava uma Sociedade sem famílias. Acerta no entanto ao alista-lo entre os teóricos da sociedade fechada e alias como seu primeiro grande teórico. Alias Platão já foi classificado como fascista, comunista, etc

Que Platão seja decididamente social ou comunal cheira a obviedade. Apesar disto não sei se poderíamos classifica-lo como socialista. Os socialistas assumem a liberdade humana, Platão... Tampouco era ele comunista ou fascista...

Então que era ele???

Era platão totalitário e despótico, assim como os comunistas e fascistas. Nem por isso era comunista ou fascista pelo simples fato de ignorar supinamente o quanto seja característico de tais sistemas. Totalitário e despótico sim, e por isso não poucas vezes odiado... Platão de fato exaspera os liberais e os democratas. Todavia devemos tentar ser justos com ele e buscar compreende-lo, inserindo-o no quadro a que pertence. Pois compreendendo os medos de Platão estaremos aptos para diagnosticar nossa própria época.

E para compreender o homem devemos situa-lo em seu tempo e situa-lo com exatidão.

E que é este Platão senão um testemunho eloquente da decadência de Atenas e de uma democracia em colapso?

De fato se compreendemos que Atenas atingiu seu apogeu ou zênite entre 509 e 429 - assim por cerca de oito décadas - saberemos que Platão nasceu - em 427 - quando ela principiara a morrer... Lavrava a pavorosa guerra do Peloponeso, ganha em 404 pelos espartanos. Os quais impuseram a indômita Atenas 51 tiranos. A princípio Platão acreditou que eles saneariam moral e politicamente sua querida cidade... E no entanto que fizeram eles senão justiçar precisamente aquele que melhor conhecia os problemas em questão? Paradoxalmente aquele Sócrates, que criticando honestamente a democracia, poderia te-la seneado...

De fato todo caminho precorrido por Platão, da morte de Sócrates a sua própria morte foi um caminho em direção a Esparta, não a Atenas da tradição ancestral, mas a militar, belicosa, despótica e totalitária Esparta. Afinal não esmagará ela a brilhante Atenas???

Eis um evento que impactou poderosamente as mentes de todos os gregos, sem falar nos próprios atenienses.

Importa saber que Platão jamais o perdeu de vista...

Quanto a nós, esforce-mo-nos por relacionar a nova ordem policrática com o novo padrão de pensamento, racional.

Já dissemos que imperava a convenção, que as aparências deviam ser mantidas e que nem todas as tradições reconhecidas pela Polis podiam ser formalmente negadas. O equilíbrio social exigia um tal sacrifício ou uma tal restrição.

Resultou disto uma estabilidade bastante precária e posteriormente - após o fim da Idade Média - viemos, nós mesmos, a conhecer semelhante estado.

Mesmo buscando alguns compromissos a razão nem sempre podia abster-se de questionar os mitos e mesmo o surgimento da alegoria ou do simbolismo - que buscava amortece-lo - o choque chegou a ser traumático. Platão ousa clamar contra Homero e Hesíodo, educadores das gerações precedentes... Sócrates tampouco pode admitir que os deuses praticassem imoralidades e acima deles sobrepõem um Ente racional, invisível, ilimitado, etc Entidade a respeito da qual Xenófanes, Anaxágoras, Apolônio e outros já haviam insistido, inconvenientemente...

Após a religiosidade praticamente tudo foi submetido ao crivo da razão e logo, em alguns casos, a experiência. A medicina já havia ensaiado tais passos... Desde então os rios se convertem em fluxos d água e os astros em pedras flutuantes... com grande agravo de Diopeites e das massas populares que clamavam contra tais impiedades. Afinal de contas a identidade social, o sentido de pertencimento, os princípios, os valores, tudo enfim, repousava sobre tais crenças... critica-las era como golpear a raiz de uma árvore... Num determinado momento parte das pessoas sentiram-se desenraizadas, confusas, fragilizadas, desprotegidas, ameaçadas.

Em Atenas, como observamos, este movimento pode assumir uma forma marcadamente política através da democracia e desenvolver-se. Noutras cidades, onde exasperou os monarcas e tiranos, foi violentamente suprimido. Pitágoras queimado vivo em sua Escola, Zenon moído vivo numa mão de pilão, etc Como não existisse um Basileu em Atenas, esta situação de crítica se foi acentuando mais e mais... E os intelectuais se tornando cada vez mais ousados.

Por algum tempo, tempo daquele equilíbrio e são 'realismo' que caracterizam o apogeu de qualquer civilização (Sorokin), a razão e a sobriedade lograram manter-se no controle, alias respeitando a ficção ou tentando substitui-la discretamente.

Em seguida porém, cindiu-se aquela sociedade em dois grupos radicalmente opostos. E a ruptura, seja dito, não partiu dos conservadores ou tradicionais mas dos próprios filósofos ou melhor dizendo, de sua ala mais radical; os sofistas que agora voltavam-se contra o critério comum da razão. E antes que a razão substituiu-se a fé ou a tradição era já solapada por eles...

Agora veja o leitor - De um modo ou de outro lograram a razão e a experiência, inserir-se num espaço até então completamente dominado pela tradição, ensaiando os primeiros passos do pensamento naturalista e do conhecimento científico. Os sofistas no entanto, antecipando Hume e Kant, levaram o processo crítico a razão, que era o elemento comum porque os essencialistas buscavam substituir a superstição e a autoridade. E o resultado disto foi a elaboração de uma teoria subjetivista e relativista, a princípio e, em seguida totalmente cética. Isto num ambiente cujas estruturas eram totalitárias, despóticas e solidárias.

Não 'a humanidade' através do elemento comum da razão, mas o individuo isolado, converteu-se em medida de todas as coisas, produzindo sua verdade parcial, pela qual bem podia pretender guiar-se, e assim matar ou roubar, caso tivesse tais ações em conta de boas... Observe a extensão de um problema que é nosso e que hoje se exprime pela negação de uma Lei Natural, único fundamento plausível de uma Ética objetiva ou universalmente válida, para homens de todos os tempos e lugares.

Foi em oposição a esta maré individualista, subjetivista, relativista e cética que levantou-se a maré conservadora ou reação, tudo engolindo pela frente, inclusive o genial Sócrates, mesmo porque, o grande público ou a massa, alheia aos grandes temas da Filosofia, era incapaz de discernir entre uma corrente e outra. Destarte toda Filosofia, compreendida como sofística, tornou-se ameaçadora. Mesmo sem terem conhecido o liberalismo político, os gregos tiveram uma experiência de liberalismo metafísico extremo (epistemológico e ético) a qual não lhes foi nada agradável, e chegou a aterroriza-los...

Na medida em que o ensinamento dos sofistas era assimilado pelos elementos mais jovens da comunidade o pouco que restava dos laços sociais anteriores a afirmação da comunidade política principiou a dissolver-se muito rapidamente, dando lugar a uma situação de anomia, de anarquia, de caos, de conflito generalizado... face a qual parte significativa da sociedade sentiu-se nostálgica quanto a um passado já em parte idealizado.

De modo geral os atenienses do século IV a C não estavam preparados para testar aquele futuro ou para ver até onde as coisas chegariam... Sabiam intuitivamente que sem religião, fé, Deus, deuses... cada individuo converter-se-ia em padrão absoluto de bem e mal, e deduziram as consequências sociais desde individualismo crasso.

Quanto aos culpados, como já dissemos, foi bastante fácil identifica-los com a Filosofia e a Democracia, cuja relação, aos olhos eles, era bastante nítida. O elemento racional comum a ambas era o elemento por assim dizer corruptor, que envenenará a Sociedade. Não a crítica a razão ou a metafísica... Eles não sabiam distinguir racionalidade de empirismo crasso ou ceticismo...

Assim a anti comunidade de Platão é idealizada em oposição a 'comunidade caótica', anômica ou anárquica dos sofistas (Nisbet) identificada com a comunidade democrática ou como consequência dela.

O remédio aqui era olhar para a polis vitoriosa, Esparta, cidade militarista e fiel a suas tradições, que jamais se deixará desviar pelo fantasma da razão, pai filosofia e da democracia. É nesta perspectiva e em oposição ao veneno instilado pelos sofistas/filósofos que Platão escreve seu clássico. Não é a democracia que ele leva combate, mas a sua forma decadente e corrompida... A qual no entanto, para ele, é consequência dela.

Isto não foge a experiência que ora vivenciamos ou ao choque entre as diversas formas - corruptoras - de individualismo, assim: Relativismo, subjetivismo, ceticismo, anarquismo individualista ou ANCAP, liberalismo econômico, plutocracia, democracia meramente formal ou representativa, etc a um lado, e as soluções totalitárias, como nazismo, fascismo e comunismo a outro... É um dilema bastante parecido.

A Democracia perdeu seu espírito, acomodou-se estrutural ou formalmente, deixou-se dominar por outros setores (não políticos), desvinculou-se do essencialismo ético, deixou-se impregnar pelo individualismo, foi abalada pelo ceticismo, etc, etc, etc Entrando em declínio, o qual ora vivenciamos... Em que pese os arroubos de jacobinismo típicos dos EUA...

O fato é que nossa democracia por descuido educativo ou formativo quanto o espírito, não consolidou-se. Antes, colonizada pelo capitalismo, converteu-se em instrumental do poder econômico e não do bem comum, como queria Aristóteles. Tudo quanto temos hoje é demagogia, plutocracia, oclocracia... não democracia, pois não há cultura democrática, espírito, profundeza. E essa forma instrumental ou espúria é a que tem sido propagada pelo jacobinismo yankee, posto que os N Americanos como os ingleses, não distinguem um liberalismo do outro, tomando liberalismo por uma coisa só.

Destarte tem sido o liberalismo político, que é essencial a vida democrática  - juntamente com o liberalismo religioso e o liberalismo moral - sucessivamente traído pelo liberalismo econômico e sacrificado em seu benefício e já aludimos ao sacrifício primordial quando nos referimos a Locke e ao que Arendt definiu como um esvaziamento do político em benefício do econômico ou ainda do público e comum em benefício do privado.

Não atingimos ou perdemos nosso ponto de equilíbrio. A balança tem pendido decididamente para o individualismo, com as mais terríveis consequências... E os EUA alimentado doentiamente este padrão.

Mas já se pode observar um fenômeno análogo ao observado durante o período entre guerras que é a reação totalitária e despótica ou o renascimento das diversas culturas de morte, como fascismo, comunismo e nazismo, as quais tem entrado em choque entre si, com o anarquismo, com a democracia formal e com as teocracias, disto resultando um clima próximo ao caos - EIS A ATENAS DE PLATÃO... Eis a decadência da cultura democrática e a total perda do equilíbrio... A um lado um materialismo que chega ao ateísmo, ao nihilismo e como já dissemos ao relativismo e a anomia (em termo sociais) e a outro um idealismo - não poucas vezes representado por formas primitivas e obscuras de religiosidade - tão totalitário e despótico quanto o de Platão. O ateísmo/materialismo pela anarquia absoluta e o Idealismo/fideísmo pela repressão e pelo controle absolutos. Uma Era de extremos. Quiçá a sofisticada Atenas do século IV a C tenha vislumbrado este cenário.

Agora, ao tempo de Platão não era, a solução totalitária ou despótica, tão variegada quanto a nossa mas, até certo ponto unitária e portanto tanto mais sedutora. Platão emprestou-lhe as tintas de poeta e moralista, mas não pode ver sua realização.

A um tempo a democracia estalou, veio abaixo e caiu, dando espaço ao Imperialismo de macedônico. Alexandre inspirava as melhores esperanças, pois havia sido aluno de Aristóteles... e Aristóteles, como já dissemos, ao menos quanto a política e suas estruturas não era metafísico mas empirista, realista ou relativista. Tudo quanto ele fazia era associar o ideal de 'bem comum' a determinada estrutura e assim legitima-la. Sob este aspecto era a monarquia tolerável, e até desejável, caso tivéssemos em mira a destruição do império persa. Esperava-se inclusive que Alexandre tivesse assimilado as lições do Filósofo e que inaugura-se uma nova era da ouro. Eram expectativas gerais, que malograram logo após sua morte. Sucedendo-se o inferno dos diadocos e epígonos... E a crise filosófica representada pela afirmação, ainda mais decidida, do ceticismo (cf V Brochard).

Agora como aproxima-se este Platão de Esparta se os tiranos, empossados pelo poder Espartano deram cabo de seu Mestre?

Ao tempo em que Sócrates fora condenado a beber cicuta o equilíbrio entre as facções era precário ou melhor dizendo delicado. Górgias de Leontinum e Protágoras haviam assestado golpes não apenas contra a razão mas também contra a tradição posto que eram uns iconoclastas nihilistas... Por outro lado temos o discípulo ingrato de Sócrates, Alcebíades, fazendo das suas... E sobretudo Aristófanes, que representa o sentir geral, não só ridicularizando os sofistas mas apresentando Sócrates como um deles, o que ele de modo algum era...

Já a entente conservadora precisava obter um bode expiatório e correr com ele da cidade, para dar exemplo. Em geral os Filósofos, uma vez acuados, fugiam... Era necessário fazer um deles fugir e Sócrates, em função das circunstâncias acima descritas, foi o escolhido. Ele no entanto não era o que dele pensavam. Não estava disposto a fugir, não fugiu e por isso mesmo converteu-se em mártir, não da democracia, a qual criticava positivamente, mas do pensamento crítico ou da liberdade de expressão. Ele insistiu muito nisso e podia ter aberto um 'nicho' favorável a pessoa... Disto beneficiariam-se igualmente os radicais. Portanto Sócrates tinha de ser imolado.

Em certo sentido Sócrates foi o único representante do liberalismo pessoal ou político em Atenas. Foi o dissidente, foi a objeção de consciência, foi o elemento discordante e acreditava ser direito seu portar-se assim. Certamente esta irrupção do pensamento liberal numa Atenas que sequer era democrática chocou há muitos e exasperou os ânimos. Sempre podia ser explorada pelos individualistas, anômicos, nihilistas, etc como sói ainda hoje. Mas os atenienses não estavam dispostos a arcar com o ônus social que semelhante exigência implicava.

Ainda hoje, e com plena razão, os extremistas irracionalistas, individualistas, relativistas... que tomam carona no liberalismo político ou moral, produzem escândalo entre os elementos ponderados da Sociedade e mesmo alguns distúrbios isolados. Tentem conceber a sensação que estas remoras ou sanguessugas da democracia produziram nos Atenienses há dois mil e quinhentos anos... Comprometeram e ainda comprometem as instituições democráticas esses extremistas e radicais, pelo que merecem ser ferozmente impugnados no plano das ideias.

Identificado, de um modo ou de outro, com os sofistas e portanto com o mal, foi Sócrates imolado pelo partido da ordem ou conservador. E no entanto era ele o médico... O único que criticando positivamente as falhas da democracia podia ter lhe dado vigor e vida. Pois a democracia precisa justamente de críticas construtivas e seus melhores amigos são aqueles que apontam seus defeitos. Pela que o democrata fanático ou formalista, de ontem ou de hoje recuse-se a percebe-lo.

Ainda aqui genial, Sócrates percebeu o descompasso - e como já dissemos isto é atual - entre uma boa estrutura e a falta de preparo ou de capacidade dos homens que a compõem ou que nela estão inseridos.

Não foi contra a democracia mas a favor de uma aristocracia aberta que Sócrates posicionou-se. De uma aristocracia potencialmente democrática, de uma aristocracia do saber, de uma aristocracia do mérito ou da competência, franqueada a tantos quantos buscassem dignificar-se. 

Sócrates percebeu o óbvio. Percebeu que a democracia demanda preparo por parte dos homens ou dos cidadãos de modo a não transforma-se numa oclocracia. Postulava que os juízes fossem escolhidos, dentre aqueles que conhecessem as leis... Postulava que os generais fossem escolhidos, dentre aqueles que conhecessem a arte da guerra... Postulava que aqueles que tivessem conhecimento a respeito de determinado tema ou assunto fossem levados em consideração pelos demais... Queria trazer qualidade a vida democrática. Suas críticas no entanto foram muito mal compreendidas e os democratas fanáticos jamais o perdoaram...

O próprio Platão pode ter tomado a crítica de seu Mestre noutro sentido. No entanto não há qualquer evidência de que Sócrates fosse tão totalitário ou despótico quanto seu pupilo. Seu liberalismo político coadunas-se mais com a forma democrática. De um modo ou de outro foi Sócrates um democrata lúcido ou crítico, que conhecia os defeitos ou vícios do sistema e buscava elimina-los. Por isso, ainda hoje é ele consumado modelo de polícrata para nós... Que sabemos faltar cultura ou espírito onde sobejam estruturas... prenúncio de morte.

Resta esclarecer que Atenas, quanto o passado, é o que temos mais próximo de nós. Nela podemos observar uma trajetória social bastante parecida com a nossa. Digo das sociedades 'políticas' que tendo ultrapassado o modelo romano, calcado no Digesto, tornaram-se ao menos formalmente democráticas.

Atenas surge, a exemplo das demais cidades, como uma comunidade familiar, que se faz militar e logo democrática com Clístenes, até aproximar-se por fim de algo como um mercado desregulado ou de um liberalismo econômico que sem embargo não se faz pleno. Pois os resíduos familiares, religiosos, militares e políticos o sufocaram; até que esta trajetória foi por assim dizer 'cortada' por Alexandre, seguindo outros rumos.

Atenas não nos segue ou acompanha até o fim embora a sucessão de formas comunitárias porque passou seja a que mais se aproxime da nossa. Por isso o estudo da civilização grega ou ateniense e seus problemas é tão fecundo para nós.

Roma não. Roma é outra coisa.

Associamos Roma a Grécia, porque após sua vitória em Queroneia tornou-se Roma província cultural de Atenas. E isto a ponto de tomar Platão por guia ao descrever o poder Cesáreo. Neste sentido Roma é grega, enquanto platônica no campo da política.

E nossa Renascença foi muito mais romana do que Grega ou ateniense. Aulo Gélio já o havia dito. Roma não manteve o sentido humano da coisa, descambando num eruditismo pedantesco e frio. Assim os humanistas da Renascença.

Roma, a exemplo de Atenas, começa como uma Sociedade familiar ou tradicional e militar na qual aos poucos - i é durante a República - vai se formando uma aristocracia aberta em posse de uns instrumentos semi policráticos quais sejam os plebiscitos e referendos. Tal seu elemento característico ou seu diferencial.

Roma sempre fora militar e jamais deixou de se-lo para tornar-se política.

Admitido que existiu nela uma orientação para a democracia, ao menos num determinado momento de sua trajetória, é necessário reconhecer que ela frustra a si mesma, embota-se e fica sem realizar-se. Roma jamais se tornará democrática. Através do Império Roma retorna ao ideal monárquico em termos ainda mais enfáticos e já foi sugerido (Antonio Piccarolo) que o Imperador associou-se as massas com o objetivo de suplantar aquela aristocracia senatorial que num dado instante fechou-se em si mesma.

Fato é que o impasse entre as aspirações populares e as aspirações acalentadas pela elite senatorial resultou numa pavorosa guerra civil, a qual perdurou por quase um século.

E como durante as revoluções e guerras a parte mais vulnerável é sempre a mais humilde, não nos devemos admirar de que, num determinado momento as camadas populares, fatigadas, se tenham inclinado a paz... Júlio Ceśar e Otaviano, que eram mentalidades genais, captaram muito bem esta situação propícia e buscaram explora-la em favor de si mesmos, colocando-se desde então ao lado do povo e contra o Senado.

Eles também eram lideres militares muito bem sucedidos e até mesmo estimados.

Diante disto o Senado, em situação de isolamento, apelou a ficção, passando a validar tudo quanto desejava o 'Imperador'. O Império nada mais era do que o comando supremo das forças armadas ou do exército e uma instituição belicosa... A paz augusteana foi mais uma paz interna do que externa, embora a paz externa tenha sido imposta pelas circunstâncias, assim pelo desastre de Teutburg, onde Varo perdeu suas legiões. Com Roma jamais entramos na política e jamais saímos da caserna. Assim após sua morte é Augusto divinizado, e quase nos sentimos no antigo Egito... Essa Roma que é a um tempo familiar, religiosa e militar, jamais se torna propriamente política, em termos estritos. Porque jamais se faz democrática.

Importa que todos estavam felizes: Os militares porque vigiavam as fronteiras colossais do Império em troca de soldo, a casta burocrática dos funcionários públicos, a hierarquia religiosa, o povo romano que recebia benefícios ou moedas de ouro e até mesmo o Senado que mantinha uma aparência de autoridade 'respeitada' pelo Imperador... Sendo assim Augusto tinha mesmo de ser canonizado ou divinizado. Era o arquiteto de algo mais ou menos estável trezentos anos após Alexandre. É como se todos estivessem dispostos a pagar pelo fim do conflito com o sacrifício da liberdade e dos direitos, i é com  submissão e este é o grande dilema das democracias formais parasitadas pelo capitalismo ou do estado mínimo o qual nada oferece as massas, o que torna essas democracias desinteressantes para elas e o odiado Comunismo, atrativo...

As liberdades abstratas e utópicas não atraem estômagos vazios ficando esta democracia censitária ou economicista sempre ameaçada pelos totalitarismos, desde que saibam manejar um simples prato de comida. A combinação democracia e miséria não é nada propícia aos valores democráticos.

Assim, se a jurisprudência romana coloca o Imperador acima da lei a redescoberta das Institutas ou do Digesto (Pandectas) durante a baixa Idade Média servirá para justificar ideologicamente o absolutismo ou o direito divino. Ainda aqui foi Roma uma fonte de atraso, estagnação social e inquietação para nós.

E quanto a economia?

Teria a sociedade romana atingido o mesmo grau de desregulamentação que antiga Atenas?

Talvez ao tempo de Augusto ou durante o século I, enquanto o poder Imperial ainda estava sendo construído. Pois desde o século II esse poder se vai ampliando e invadindo todas as esferas da vida humana - inclusive a religiosa, a ponto de conflitar com o Cristianismo nascente - até absorve-las por completo.

Temos assim, ao cabo do século III diversas leis destinadas a regular a atividade econômica. No entanto, por esse tempo, avança já a crise simultaneamente econômica e social, provocada pelo escravismo, pela estagnação territorial e pelo abolicionismo Cristão; dos quais resultou a inflação, o aumento de impostos, etc. O grande problema da economia romana foi o escravismo. A Grécia, de modo geral, não parece ter passado por isso...

A bem da verdade, a impressão que se tem é que na Atenas do século IV a C ou na Grécia antiga o número de pequenos ou médios empreendedores livres sempre foi maior. Assim o número de trabalhadores livres... tradição que parece prolongar-se no Império Cristão Bizantino. É uma hipótese a ser averiguada.

Em Roma temos, ao que parece, a macro empresa formada por um imenso número de escravos sob a tutela de um só homem. E um bando de homens teoricamente livres sustentados pelo imperador ou pelo poder público. Eu até ousaria dizer que Roma faz lembrar o capitalismo de Estado... não fosse a forma escravocrata. Em Atenas as coisas não se dão em tais termos...  

Seja como for, graças ao histórico do Império sabemos que não existe uma ordem fixa ou metafísica de sucessão quanto as formas de comunidade, e que nem sempre as coisas se sucederão como em Atenas.

Quanto a sociedade europeia contemporânea temos a ligeira impressão de que tendo partido de um modelo familiar/militar comum aos germânicos e análogo ao romano, tornou-se político na Inglaterra do século XVIII ou na França pós Revolucionária de 1789 para logo tornar-se econômico e dar lugar a uma terrível crise de cultura e identidade, semelhante aquela vivenciada por Platão. Karl Polanyi Resta dizer que o liberalismo político é uma construção comum, assim como o liberalismo religioso e o liberalismo moral. Há afirmações suas na Espanha, na França, nos EUA, na Inglaterra e mesmo, pasmem, na Rússia Csarista; pelo simples fato de ser um princípio Cristão.

Curiosamente a França revolucionária ou se preferirem jacobina construiu um modelo de democracia despótica - no sentido de que poderia ser imposta externamente a uma determinada sociedade -  análogo ao modelo ateniense ou ainda mais virulento ora assumido pelos EUA. Bem antes do Comunismo e do Anarquismo revolucionário, e do fascismo o jacobinismo desesperou da Educação e da Cultura i é do Espírito, assumindo um deplorável formalismo, inspirado no materialismo crasso.

Posteriormente, foi a mesma visão bizarra de uma democracia imposta por golpe ou oferecida por uma minoria, legada ao positivismo, o qual por sua vez inseriu-a em nosso pais... Onde democracia brota como Atenas da cabeça de Zeus, de um golpe militar, assumindo um viez militarista. Donde resultam todos os nossos problemas, assim os sucessivos golpes reencarnados e avatares ditatorais, filhos de uma democracia mal consolidada, meramente formal, sem espírito, consciência, cultura; numa só palavra - profundidade. Filha do jacobinismo é nossa democracia superficial.

O Comunismo percebeu a incongruência do jacobinismo, manteve o golpe, eliminou a liberdade e jamais compreendeu a dinâmica da cultura... Quanto ao liberalismo é certo que a França promulgou os direitos do homem e do cidadão, mesmo quando concedeu a doutrina da vontade geral uma abrangência tal que dificilmente encontraria apoio nos escritos daquele que a formulou e a ponto de tornar esta vontade totalitária. Numa perspectiva democrática mais direta admitimos que a 'vontade geral' seja internamente soberana em sua esfera - pública ou política  - mas não que seja totalitária, a ponto de imiscuir-se no que diga respeito ao privado... A separação entre o público é o privado é princípio de que não podemos abrir mão, assim o espaço sagrado da pessoa humana face a estatolatria. Ficamos assim entre o totalitarismo estatólatra e o individualismo, condenando veementemente a ambos, pois como declarou o Filósofo: Os extremos sempre se tocam.

Após ruminar tais pensamentos, colhidos neste ou naquele autor - Fustel de Coulanges, Crane Brinton, Hannah Arendt, K Popper, John Gray, R Nisbet, Ortega Y Gasset, P Sorokin, Victor Brochard, Alfred Weber, Antonio Piccarolo, Nicolas Berdiaeff, V G Childe, Harold J Laski, Jacques Maritain, Emanuel Mounier, etc -  entrega-mo-los ao juízo do amigo leitor...