sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O ateísmo, o agnosticismo, a Kalokagatia e a morte da estética II

Continuação


"A beleza salvará o mundo" Dostoeffsky




Após Baumgarten ter retomado o tema da estética, foi Kant que pela primeira vez propôs sua revisão ou releitura à la 'Germânica' quero dizer, a moda alemã.

Não foi sem razão que I kant foi descrito por alguém como sendo o 'Copérnico' da Filosofia.

E já veremos que se trata de um Copérnico as avessas ou invertido. Afinal Copérnico avançou da terra ao Sol, desbancando o geocentrismo, o qual em última análise era apenas disfarce com que se ocultava o nosso insopitável antropocentrismo. Queríamos ser o centro das atenções. Queríamos que nossa terra constitui-se o centro do universo. O diácono polonês deslocou o centro do sistema para o astro rei, merecendo inclusive  os insultos de Martinho Lutero.

Non Kant...

Kant fez o percurso oposto no campo da Filosofia, ou melhor da epistemologia, colocando o homem ou sua vontade no lugar do Objeto ou da coisa, enquanto centro do processo cognitivo. O qual fica sendo precipuamente psicológico, subjetivo ou voluntarista, não sensorial, não racional e tampouco conceitual como supunham os helênicos em sua maior parte.

É verdade que parte dos críticos Católicos tendem a espinafrar com o francês Descartes e com o inglês F Bacon, buscando responsabilizados pela balburdia subsequente e futuro descrédito da Filosofia. Assim o Pe Leonel Franca, em seu curso de Filosofia editado pela Agir, assim Tasso da Silveira em diversas de suas obras de crítica literária.

Tampouco os Católicos, assim Jacques Maritain, no Humanismo integral e um Ortodoxo, Berdiaeff na Nova Idade Média abstiveram-se de assestar suas baterias contra o Renascimento. Afinal como poderia um agostiniano ou alguém influenciado pelo agostinianismo ou por qualquer tipo de antropologia negativa ou pessimista compreender o Renascimento, o dealbar do espírito científico ou mesmo a doutrina social da Igreja???

A respeito de Bacon e Descartes, tudo quanto tentaram dizer a seus contemporâneos é que a ciência empírica não podia sair da Metafísica. Não se tratou aqui de negar radicalmente a Filosofia, a especulação ou a razão e a formulação de conceitos; mas de criar-se um nicho específico para a ciência e de fornecer-lhe um aparato metodológico próprio assim a dúvida metódica, Descartes e Bacon jamais postularam a dúvida  metafísica ou invencível de Pirro, Timon, Carneádes, Enesidemo, Montaigne ou Hume. Mas dúvida construtiva e provisória no campo da ciência.

Grosso modo Descartes limita-se a tomar Agostinho quando elabora uma metafísica imanente a partir do eu e portanto psicologista, sem no entanto negar o valor da antiga. O 'Penso logo existo' e portanto a consciência de si como ponto de partida para a demonstração do mundo externo e de Deus já se encontra presente na obra de Agostinho e temos de admitir que é uma abordagem válida. Ademais Descartes desenvolve-a sempre segundo os princípios da razão - assim suas Meditações sobre a existência de Deus - jamais contestando os princípios da lógica formal (como o de contradição) ou pondo em dúvida as conclusões sacadas as premissas.Toda esta argumentação é escolástica ou metafísica e tradicional.

E Hume? Hume é uma reedição inglesa e tanto mais sofisticada de Pirro ou melhor de Enesidemo. Por Victor Brochard somos informados que quase tudo dele já estava lá, presente em Arcesilau, Carneádes, Enesidemo...

E Kant?

Kant não.

Kant faz uma metafísica cerrada em torno do irracionalismo e tenta demonstrar racionalmente a incapacidade da razão, ao menos para metafisicar.

É verdade que ele reconhece que nossa ciência é válida quando descreve fenômenos, sabendo que os fenômenos não passam de aparência. A ciência não toca a realidade íntima das coisas. Nada toca.... Ficamos conhecendo aquilo que ao menos em parte elaboramos uma vez que a realidade externa do ser é em parte ao menos elaborada por nossos sentidos ou por categorias impressas por nós. Fabricamos, ao menos em parte, a realidade externa do mundo. Nossos sentidos não nos informam sobre a coisa ou o objeto, alteram-nos, transtornam-no e portanto enganam-nos... O quanto podemos dizer sobre a ciência é que por vezes funciona e não que nos informa fielmente sobre o ser, o ser fica sempre oculto, misterioso e intangível.

Julgamos ter diante de nós um objeto externo que é o universo, mas temos apenas uma ideia ou uma elaboração da nossa vontade. Eis o sr voluntarismo ou idealismo, filho do psicologismo crasso ou da epistemologia subjetiva e antropocêntrica responsável pelo deslocamento do processo cognitivo do objeto ou da coisa conhecida para o elemento cognoscente. Foi de fato uma Revolução, uma Revolução germânica, uma Revolução individualista, filha legítima da Reforma protestante. Uma contra Revolução caso tomemos por parâmetros a escolástica ou a Filosofia clássica. As raízes de tudo isto remontam é claro a Agostinho, passam pelo sunitas Achari e Gazalli, confluem para Ockan e os franciscanos e chegam a Lutero, o qual toma Aristóteles por seu supremo inimigo após o papa romano e a racionalidade por uma prostituta louca. Afinal não fora este homem transtornado pelo pecado original? A ponto de assemelhar-se a um pedaço de pedra ou de madeira...

No entanto como se sustentarão a ética e a estética sem uma epistemologia objetiva ou realista que lhes sirva de suporte? Não se sustentarão. Pois o kantismo ou criticismo e o positivismo lançarão dúvidas cada vez mais sérias sobre tudo quanto não seja absolutamente empírico.

É sempre a aplicação dos mesmos princípios e reedição da mesma teoria irracionalista. A fonte da sensação estética nada tem a ver com a contemplação racional de formas definidas conforme determinado cânone estético. É subjetiva, irracional e portanto arbitrária. A fruição da beleza estética é puramente subjetiva ou melhor solipsista. Sou eu que julga algo belo ou feio com critérios psicológicos válidos apenas para mim. Resta nos perguntar por que a rebelião modernista demorou tanto tempo para ocorrer? Se as portas já estão abertas para o dionisíaco de Nietzsche i é para as emoções, os impulsos, os instintos, os desejos... enfim para tudo quanto seja psicológico ou oposto a razão, até que a uniformidade racional seja comparada a uma tentativa de controle ou a uma espécie de autoritarismo. Pois esta arte puramente psicologista não conhece quaisquer regras.

O mundo a ser reproduzido aqui não é mais o mundo externo reduzido a hipotéticas formas puras, mas o mundo interno da mente, do inconsciente, da fantasia, da imaginação desbragada, do sonho ou mesmo do pesadelo, onde cada um reformula a realidade externa e é regra absoluta para si mesma. Este mundo interno que a razão pretende controlar é emancipado por Kant, ao menos no terreno da arte e da estética. E nada mais existe de absoluto neste terreno, o feio e o belo são eternos relativos.

A pouco nos perguntamos sobre que evento teria impedido ou evitado um desabrochar do modernismo logo após Kant? Por que tivemos de esperar até Nietzsche? Por que a perspectiva, a rima e os arranjos não tombaram de imediato e saíram logo de cena ao cabo do século décimo nono?

Aqui, paradoxalmente, o positivismo recusou-se a seguir Kant ou a acata-lo. Mas como se deu isto? Aqui a estética foi mais feliz do que a Ética, pois esta carecia mais do que aquela de um fundamento superior ou invisível. E esses mesmos sequazes de Comte, que liderados por Litreé repudiam a ética essencialista e toda ética, apresentando-a como absolutamente relativa ou cultural, recusam-se a privar-se da beleza em sua expressão clássica definida, e sentem necessidade dela. Eles simplesmente tomam os cânones estéticos da civilização clássica e afirmam sua objetividade em termos universais, sem no entanto levar em consideração os fundamentos metafísicos desta elaboração clássica levada a cabo por Platão e Aristóteles. É como uma cabeça separada de um corpo ou um castelo desprovido de seus fundamentos, a estética  neo clássica dos positivistas tem sua base no ar ou no nada, e por isso tomba miseravelmente ao primeiro sopro da rebelião modernista com seu ideário psicologista.

E pensar que esses positivistas, cientificistas, ateus, agnósticos, materialistas... ergueram magníficos templos a 'religião da humanidade' nos mesmos moldes que os antigos templos pagãos e que as igrejas Católicas. E que elaboraram um ritual secularizado com que substituir as cerimônias pagãs ou a missa... Eles assumiram um aparato estético e não o fizeram a toa... Sabiam o que estavam fazendo. Embora o positivismo fosse um programa quase que completo - pelo simples fato de negar a dimensão ética da existência - tinha sérios defeitos estruturais e por isso veio a tombar após um efêmero esplendor.

Fora das velhas igrejas, ora convertidas em baluartes do quanto havia de clássico sobre a face da terra, o modernismo campeou triunfante. Em poucas gerações nosso homem fatigou-se da feiura oferecida e chegou a crer, e ainda cre, que a estética ou a contemplação da beleza é algo supérfluo ou dispensável. Cem ou quarenta mil anos após a elaboração das primeiras obras de arte no recôndito das florestas ou das cavernas, homens há que tem feito o caminho oposto. E eles até se vangloriam de estar em posse de altas Verdades, desvinculadas da ética e da estética, perdendo de vista o ideal da kalokagatia.

No próximo capítulo diremos o que pensamentos a respeito de tais ideologias, porque nos frustram e que esperávamos delas.

Continua -

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