quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Os erros e acertos do Sardinha (Antonio in 'Glossário dos tempos' 1942) - Prólogo





Sempre interessados pela literatura - Tanto quanto nos interessamos pelas ideias... e portanto em Gil, Camões, Bernardes, Vieira, Garrett, Herculano, etc resolvemos folhear 'O testamento de Garrett (Opus cit p 53).

E ao folhear topamos ali com a costumeira mistura de luz e trevas com que topamos e toda obra humana ou ideológica. Posto que os criticantes, como Sardinha, presumem estar muito acima dos criticados como os liberais políticos, constitucionais ou democratas ou, em termos atuais, os comunistas e anarquistas. 

Porém, considerando tudo em seu conjunto, ou como sistemas fechados, acabados e prontos, Comunismo, Anarquismo, Fascismo e Capitalismo são praticamente a mesma coisa, embora acredite eu que o último ou quarto modelo seja o mais tenebroso, eu que em POLÍTICA, sou ultraliberal intransigente ou policrata.

Já expus em diversos artigos aquilo que alguns teóricos chamam liberalismo, em singular, não existe ou é grosseira ficção construída por ideólogos e panfletários. Existem liberalismoS, como existem renascimentoS, ReformaS e SocialismoS... Alias liberalismos em conflito como assinalaram Polanyi e Arendt dentre outros, tendendo o Liberalismo econômico, a restringir o espaço do Liberalismo essencial - O político - e a reduzir-lhe a qualidade, por onde, com sua educação ineficaz, a miséria e o fundamentalismo religioso chegamos a OCLOCRACIA e jamais a democracia.

E de fato muito do que os autoritários ou fascistas, e comunistas, e outros liberticidas tem criticado e combatido, não é democracia (E menos ainda policracia.) mas pura e simples oclocracia ou comando de massas acríticas manipuladas por uma elite econômica sem consciência.

Sócrates combateu, não a democracia, porém o espectro da oclocracia ou sua ameaça ao apontar os defeitos de uma democracia demasiado ingênua (A nossa é puramente formal ou como dizem 'positiva' - Vício análogo), e por isso foi morto. Prestou porém imenso serviço a causa democrática, como prestam todos os críticos que apontam os defeitos que a tornam vulnerável. De modo que as críticas deles - Exceção feita aos teocráticos ou fundamentalistas com suas citações de livros! - sejam comunistas, fascistas ou anarquistas devem sempre ser examinadas com todo cuidado e levadas em consideração caso queiramos produzir uma democracia de qualidade na qual a Liberdade e a Autoridade, o Direito e o Dever, a Pessoa e a Lei, caminhem juntas num estado ideal de equilíbrio.

Tornando aos sistemas fechados, temos no Comunismo o defeito supremo da Ditadura do proletariado, pelo simples fato de que Marx, lúcido crítico da estrutura capitalista ou de mercado, era coxo no terreno da ciência política não sendo digno de desamarrar as sandálias de um N Poulantzas... Apesar disso os comunistas, como os socialistas - E quem o diz ou confessa são os sisudos padres romanos ou tridentinos a exemplo de um H Chambre, de um Bastos de Ávila, de um Lebret ou de um Abbé Pierre (Assim o leigo Tasso da Silveira em seu artigo sobre M Gorki)  - Tinham sensibilidade suficiente para perceber que a pessoa humana estava sendo triturada pelas estruturas econômicas importadas da Inglaterra ou dos EUA, o que até hoje é rejeitado pelos partidários cegos ou apóstolos do liberalismo econômico.

Negam inclusive, e escrevo-o em 2023 - as transformações climáticas de caráter antrópico impulsionadas por seu modelo e ainda mais: Mostram-se totalmente céticos face a degradação ambiental, desastres, calamidades e extinção de formas de vidas ultra milenárias deflagradas pela cobiça insaciável de alguns... Chegando a atribuir tais fatos a imaginação de seus adversários ideológicos, em especial aos comunistas, apelando a solução conspiracionista como qualquer ideólogo vulgar ou como os sectários religiosos. Assim tem se portado os defensores do liberalismo econômico, e diante disso não posso absolve-los da pecha de mau caratismo...

Por sua falta de consciência humana, ética, empatia, senso de justiça, sensibilidade, etc não posso deixar de encara-los como piores do que os comunistas totalitários, mesmo quando considero todas as crueldades e misérias do comunismo, as quais não são poucas. No entanto para assassinar, matar ou suprimir vidas sequer é necessário derramar pequena gota de sangue e menos ainda extrair vísceras ao modo dos partidários do antigo regime ou dos revolucionários mais atilados... Pois é coisa que se faz por omissão inclusive. Com privações e excesso de trabalhos torna-se o assassinato banal e nem se percebe a inanição ou a fome, fenômenos que por assim dizer passam batidos.

E se alguém compôs um livro negro do comunismo este bem poderia ser dado em troca do outro livro não menos escuro e sinistro, o do capitalismo ou do mercado. Não seria um livro vermelho, escarlate ou rubro como a bandeira dos comunistas apenas porque não teria havido efusão de sangue, mas isto não significa que não houve luto em abundância. 

Parece-me que o único mérito do liberalismo econômico é ventilar o problema da liberdade econômica ou da livre iniciativa privada no setor econômico, tese com a qual não podemos deixar de concordar desde que se trate de uma liberdade limitada - Alias como todas as mais liberdades, pois ao contrário do que queria Sartre não existe qualquer liberdade ilimitada no mundo em que os seres humanos são múltiplos. - reduzida, controlada e posta a serviço do ser humano ou das necessidades humanas. Claro que quando falamos em controle não nos estamos referindo a um controle necessariamente político e menos ainda ditatorial, mas antes de tudo num controle democrático interno sob a forma de colegiado a exemplo da Idade Média e quando postulamos um controle político ou um planejamento é claro que supomos um modelo político democrático ou melhor policrático, direito e exercido pelos cidadãos.

Não pode haver setor algum da atividade humana desvinculado do Bem comum ou alheio a uma finalidade social. O que remete-nos sempre a um controle político, enquanto veículo dessa estrutura social. Que o econômico aspire separar-se do político é pura falácia, pois uma tal aspiração implica sempre uma dominação e portanto uma subversão a partir da qual passa o Bem comum a segundo plano e os interesses puramente particulares, insaciáveis e egoístas passam ao primeiro plano. Tal a Sociedade econômica, essa carroça posta diante dos cavalos ou bois.

Desarvorado o econômico absorve e destrói o político ou o liberalismo político e logo em seguida o humano ou a esfera de nossas liberdades privadas seja por meio do moralismo sectário ou do controle militar dos quais depende para impor-se e manter-se. 

Apesar disso reconhecemos a premissa liberal de uma liberdade econômica relativa ou não absoluta. 

E quanto o anarquismo...

O anarquismo tem por virtude uma consciência política muito mais acurada ou refinada, pelo simples fato de opor-se a quaisquer modelos totalitários ou a quaisquer ditaduras de direita ou esquerda, do tal ditadura do proletariado aos golpes 'liberais' responsáveis pela derrubada de quaisquer regimes democráticos que se afastassem da ideologia capitalista visando controlar o mercado. 

Notável é o anarquismo quanto declara que nosso modelo democrático é muito pouco democrático necessitando ser aprofundado ou ampliado. É uma visão grandiosa essa passagem da democracia formal ou anglo saxônica para uma democracia real, semi direta, direta ou policrática mesmo quando suponha a demolição do macro Estado e a construção de pequenas comunidades políticas.

Apenas os anarquistas não percebem que esse ideal, quando suponha a criação de centenas ou milhares de micro estados, é incompatível com a existência de um colossal império econômico como os EUA, o qual não teria mínimo escrúpulo em incorporar pela força bruta todas essas comunidades livres, fortalecendo ainda mais seu imperialismo sórdido. Por isso um crítico lúcido já observou que a demolição do macro Estado, se necessária, deveria começar necessariamente pelos EUA que é o centro do poder político e econômico atual.

Outro defeito grave do anarquismo - E pelo qual esta ligado ao Comunismo e ao Fascismo hodierno - é a sanha revolucionária ou o ideal jacobinista legado por Robespierre, Babeuf ou Blanqui. Em sua maior parte os adeptos do movimento anarquista recusam-se a admitir que se possa ampliar a democracia que temos por dentro ou institucionalmente i é por meio de leis e antes delas por meio de greves, protestos, referendos, plebiscitos ou mesmo algumas conjurações oportunas. Iconoclastas, postulam uma demolição total das estruturas sociais vigentes de cujas cinzas surgirá como a Fênix uma nova sociedade. Creem numa transformação radical por meio de uma efusão de violência e não numa possível evolução orgânica.

Um terceiro defeito desse modelo é o furor pela inovação, o que os situa no terreno oposto do conservadorismo acrítico e ingênuo. Estes querem tudo conservar, e a exemplo de Zenon suprimir o movimento ou a transformação. Aqueles, a exemplo de Heráclito, mergulhar a sociedade na instabilidade absoluta pela negação de tudo quanto remeta ao passado enquanto construção histórica de uma cultura. 

O quanto defeito implica por fim em transpor o anarquismo, enquanto uma espécie de rebeldia sem causa ou negação total do passado histórico, para todos os setores da existência humana. Cessando ele de ser uma solução política derivada do princípio da liberdade para converter-se ele mesmo num princípio metafísico compreendido como um 'culto a novidade'. Destarte migra ele, o anarquismo iconoclástico, para outros campos, como a arte e a literatura ou a arquitetura, a ética, etc endossando acriticamente a rebelião modernista engendrada pelo CAPITALISMO, e ampliando seus danos ao infinito até atingir o centro da pessoa.

Este último aspecto do anarquismo, por onde toca o modernismo e o pós modernismo, quiçá seja seu defeito mais grave ou seu ponto mais negativo, pois chega a tocar a gnoseologia e a epistemologia, logo a apreensão da realidade e o sentido, até - Caso seja levado a seus termos finais. - destruir a própria indignação, o modelo ideal, a fé revolucionária na transformação, etc e desembocar no nihilismo crasso.

A revolução devora a Revolução e a subversão aniquila a subversão.

Quanto aos defeitos do Fascismo ou do integralismo formam um cacho... E seus adeptos de tanto criticarem o liberalismo político, o comunismo e o anarquismo tornam-se incapazes de olhar para o próprio umbigo e de contemplar a própria miséria. Certamente não me refiro aqui a abominação nazista com o grosseiro critério de raça... mas ao fascismo bem compreendido.

Antes quero repisar o que sempre tenho dito com absoluto destemor, o Fascismo tem uma compreensão muito mais realista e saudável da cultura e portanto da formação das estruturas político sociais em conexão com outros elementos. É precioso, é a anti tese do anarquismo alienado, mas não passa disso. 

E seu pecado original é a ideia de submissão cega a autoridade, a qual dá vezo a todos os achaques de autoritarismo, tirania, despotismo, opressão, domínio e controle arbitrário que esmagam a pessoa humana. Daí sua admiração pelo modelo militarista e a necessária antropologia pessimista muitas vezes bebida a Agostinho ou a teóricos irracionalistas e deterministas protestantes como Lutero e Calvino. 

No liberalismo absoluto ou crasso - Assim no capitalismo, e no anarquismo temos a ideia de um ser humano angelical ou totalmente bom em sua condição original, e ao qual não se deve impor quaisquer limites ou restrições, o que reporta em parte a J J e aos pós freudianos (Não a Freud, o qual por ser bastante realista e criticava apenas alguns aspectos ou excessos da repressão, jamais ignorando o que fosse educar.). Para tais teóricos, ultra otimistas, a causa de todos os males era justamente o controle ou a restrição em qualquer grau.

Ao lado diametralmente oposto damos com todos os totalitarismos despóticos ou ditatoriais seja o Fascismo ou o Comunismo. E aqui topamos sempre, na raiz ou na base, com Agostinho, tributário por fim de Manes, do que resulta uma antropologia negativa ou pessimista, enfim a ideia de que o ser humano é limitado, incapaz ou malevolente por natureza. Daí a necessidade de controle, tão ardorosamente defendida pelos jansenistas. 

Antes que algum modernista ouse corrigir-me apontando para Pirro de Elis e seus sucessores, com o objetivo de afirmar um pessimismo antropológico naturalista e grego, remeto o leitor a Victor Brochard, e advirto-o de que Pirro de Elis, tendo estado com Alexandre na Índia, tomou seu pessimismo antropológico e sua ataraxia ou quietismo, aos Bicos budistas que por lá deambulavam e portanto duma fonte religiosa ou credal, o que foge aos termos do naturalismo. Buda acreditava que a vontade do ser humano era a fonte do mal, e não preciso dizer mais nada quanto a isso.

Aqui Buda, ali Agostinho ou Manes ou Elchai, sempre esse exótico e místico Oriente, nada de concreto, de empírico ou de racional.

Parece uma ideia ingênua não... Admito que pareça. 

As consequências no entanto foram as piores possíveis. 

Pois a partir desse modelo antropológico pessimista é que João Calvino inaugurou o primeiro imenso campo de concentração da História (cf Pierre Van Paassen) na infeliz Genebra. Quis transformar o mundo inteiro num mosteiro ultra rigorista ou melhor numa imensa caserna movida por um disciplina mecânica e cega, e seu ideal podre foi secularizado pelos fascistas. 

Continua



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