terça-feira, 22 de junho de 2021

A função ético existencial da morte.

Em memória de meu amado filho canino ou 'bebê velho', Neguinho - 2008 a 22/06 de 2021, o qual hoje fez sua passagem e recuperou sua visão. 



Costume nosso encarar a morte como algo mau.

Isto pelo simples fato de trazer separação, saudade e sofrimento.

Mesmo aqueles que admitem a imortalidade da alma ou a sobrevivência do espírito não deixam de sofrer por ocasião da morte e a derramar lágrimas, não por julgarem que tudo acabou inexoravelmente, mas, como disse, devido a essa ruptura a que chamamos separação. 

Ver-se e estar repentinamente privado da companhia de algo ou alguém que amamos é sempre doloroso e muitas vezes sabe a um golpe.

Sofremos, suspiramos e choramos pelo simples fato de não termos mais aquele ser em nossa vida. Porque aquela criatura já não está mais conosco na dimensão do tempo e o espaço. Porque não mais poderemos partilhar os momentos de felicidade ou de tristeza com ela. Porque o espaço da experiência comum é fugaz.

Desde então teremos de viver sem aquela pessoa que fez parte da nossa História e da nossa vida. Que compartilhou de nossas memórias. Que caminhava junto, que nos consolava, que nos enchia de contentamento e alegria.

Certo é que morremos aos poucos nos outros, naqueles que carregam nossas memórias ou um pouco de nós.

Caso coloquemos amor num gato ou num cão nos sentimos morrer com eles.Tal e qual morremos em nossos pais e com nossos filhos.

Cada experiência de morte ou de separação é uma espécie de morte, uma antecipação, um preparo.

Sim, um preparo.

Quando somos pequeninos ou demasiado jovens, nós que fomos amados e cuidados por nossos pais, não cogitamos viver sem eles ou sobreviver a eles, o que no entanto corresponde a Lei da natureza.

Os mais velhos partem antes dos mais jovens. 

Recordo ter ouvido nas aulas de Religião que certo passo do Antigo Testamento continha a seguinte observação: "E veio a falecer ele estando seu pai ainda vivo."

Devo dizer que não creio na inspiração plenária do Antigo testamento, tampouco gosto muito dele e penso que contenha muita besteira - Não o caso da frase acima, a qual os fanáticos certamente dão pouco valor. Eu no entanto acho preciosa.

Se perder alguém que amamos é sempre causa de dor ou sofrimento e, neste sentido trágico, perder um filho é além disto anti natural. De modo que não poucos sucumbem a semelhante carga de dor.

É porém coisa que de pequenos não entendemos, crendo que quando perdermos nossos pais haveremos de morrer juntos.

Qual criança ou adolescente que não teve esse tipo de sensação.

De fato filhos há que não suportam tal golpe... A imensa maioria no entanto sobrevive.

Mais trágico seria se nossos velhinhos ou filhos do coração (Nossos pets) morressem depois de nós. 

Afinal nossos 'bebês velhos' sejam humanos ou caninos, precisam de cuidados. 

Egoísta seria deixa-los em situação de desamparo.

Ocorre-me a grande atriz Zezé Macedo, uma cuidadora amorosa ou mãe de alguns anjos de quatro patas. A qual estando doente e internada não pode morrer em paz pelo simples fato de pensar no futuro de seus 'bebês'.

A tarefa dos mais jovens, não nos enganemos, é também, depois de ter cuidado, sepultar e sofrer. Assim a tarefa do tutor.

Doloroso seria partir confortavelmente daqui deixando um cão ou gato idoso e vulnerável.

Vamos aprendendo isto com o tempo, esse grande mestre.

E por isso a imensa maioria de nós sobrevive a morte do papai e da mamãe, por mais doloroso que seja, especialmente se já passou da adolescência.

Portanto, caso sejamos tutores, estejamos conscientes de que muito provavelmente teremos, mais cedo ou mais tarde, de nos haver com a morte. 

E todavia não desistimos... Acolhendo filhote após filhote. Porque o carinho que nos dão sempre parece compensador. 

Nem por isso desejo romantizar. A morte e sempre dura... posto que é privação, ao menos privação física. E nós vimemos em corpos físicos.

Percebo todavia que exista um processo de adaptação, morte após morte nos habituamos. 

Sabemos que é inevitável, que é natural e que ocorrerá, e então, nos preparamos, juntando forças. Ao menos quando o processo é natural parece que a tempo para que nos preparemos e resistamos.

Outro o caso das mortes acidentais ou repentinas - Cuja situação é bem mais dificil.

No caso do meu cão, o Neguinho, embora não tenha ele sofrido muito (Pois faleceu de patologia cardíaca devido a idade avançada.), podíamos perceber certos sinais - Se bem que discretos - de desgaste. Há um ou dois meses estava fragilizado, diante disto pensei que poderia perde-lo a qualquer momento, e redobrei os carinhos e cuidados, como tentei abastecer-me. Disse para mim mesmo: Quando você o adotou - E foi a contragosto pois foi ganho por minha mãe! - conhecia perfeitamente as possibilidades...

Outro aspecto interessante, e fiz questão de antecipa-lo nas entrelinhas: Cada morte ou elo dessa corrente deve ser para nós - E é - como um ensaio. Destinado a preparar-nos para nossa própria morte...

Imensa é nossa carga de vitalidade. Somos apegados a existência, especialmente quando relativamente boa. Cada morte que se nós apresenta é como um beliscão, um choque ou o toque de um despertador.

Morreremos todos. Também morreremos.

Quando somos mais jovens, não poucos de nós tem aquela gana de viver oitenta, noventa ou mesmo cem anos. Havendo quem sequer cogite morrer... padecendo de auto tanato fobia. 

Diante disto os que nos precedem na grande viajem possuem como que a missão de nos fazer desapegar. Não quero dizer que a saudade deva instilar em nós a vontade de morrer. Uma coisa é o amor a vida, outro o horror insuperável da morte. Uma coisa não querer morrer agora e outra exigir viver cem anos ou mais e inclusive tentar planeja-lo.

Não posso saber como atua e mente de um materialista ou mortalista. Quanto aos que professam a imortalidade no entanto, é como se cada perda desse lado formasse uma reservatório do outro lado. A família se vai recompondo, até que apenas nós faltemos. Então após ter bem vivido e cumprido o dever, aceitamos partir com serenidade, caso não haja outra alternativa. 

Quiçá graças a essa sucessão de mortes, avaliada a luz da sobrevivência do ser, muitos de nós não esperneiem ou se apavorem. Sendo até possível que nos últimos momentos estejamos já contentes, graças a perspectiva do reencontro.

Penso que o ponto de vista, um ou outro, faça toda diferença.

Quando perdi meu cachorro Biscuí, há coisa de uns dezoito anos, muito me desesperei e sofri. Foi um transe intensamente doloroso porquanto, eivado de preconceitos toscos, não admita a sobrevivência animal. Já quando perdi o Et I, a dor foi pungente, porém a crença na sobrevivência daquele ser tão querido atuou como um bálsamo sobre meu coração. O mesmo se sucede hoje, dia em que me despeço de meu filho e companheiro, sinto e sentirei sua falta (Era um animal muito doce!), sem no entanto desesperar-me. 

Tendo convivido com os cães desde que nasci, há quase meio século, e com gatos há cerca de quinze anos, sequer precisaria ter lido o quanto lí sobre a espiritualidade ou a parapsicologia para aduzir a sobrevivência de personalidades tão nobres, tão ricas, tão encantadoras - E admito sim, que em vista do aparato orgânico alguns humanos possam construir personalidades ainda mais ricas! Caso a personalidade de um cão ou de um gato se viesse a perder por completo após a morte do corpo estaríamos diante não apenas de um desastre mas de uma aberração.

E no entanto há nisto tudo uma grande lição de vida, quanto a humanos e a pets, digo quanto a morte de modo geral.

Penso que caso a vida se perpetuasse para sempre neste mundo em que vivemos se tornaria banal.

Em que pese a dor da separação tenho que a vida deva ser assim, limitada pelo tempo para ser valorizada.

Temos que pensar na existência de homens e animais como uma oportunidade. Como uma oportunidade para amar, cuidar, beneficiar, curtir...

Temos de viver sabendo que hoje estão ali, disponíveis ao amor, e no instante seguinte não mais lá estão.

Temos de entende-lo como um estímulo.

Amemos intensamente nossos filhotes e cuidemos deles porquanto é esta vida curta como um suspiro e as deles mais do que as nossas.

Se é curta vamos aproveita-la para fazer o bem em máximo grau, para beneficiar, dar carinho, amar e cuidar. 

Hoje, quando por um tempo perdi o Neguinho - Espero pelo dia feliz do reencontro e tenho-o por certo - fico a pensar sobre como poderia ter sido um tutor melhor ou um pai melhor. Sempre pensamos assim, nada mais humano... Poderia ter abraçado mais, beijado mais, acolhido mais e, ralhado menos, brigado menos, ignorado menos... Faz parte do processo. E fará de mim um tutor ainda melhor.

Dirão alguns que talvez fosse interessante clona-lo.

De fato era ele lindo - Um colírio para os olhos que se renovaria.

E no entanto a clonagem não passaria de insulto aquela personalidade única com que tive a ventura de conviver por quase quatorze anos.

Meu cão era mais do que seu corpo, era uma personalidade, produto de relações complexas e irrepetíveis. Jamais haverá outro igual e o contrário disto não passa de simplismo abjeto.

Uma personalidade não é um corpo e um corpo não é uma personalidade.

Por isso afirmo a sobrevivência de meu cão enquanto pessoa, e partindo desta percepção esperarei serenamente pelo dia do reencontro.

Bora cuidar dos que ficam, do Marley, do Et, do Jasão...

Também a morte é uma mestra, oxalá possa eu aprender suas lições.

Até breve Neguinho, até logo meu amor.


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