domingo, 25 de janeiro de 2015

O necrológio de uma alma simples






Hei de iniciar aqui um exercício muito comum nos grandes sodalícios e acadêmias; e instituições culturais; publicar o necrológio e fazer o elogio de alguém que acaba de partir...

Não, não era cientista, nem erudito, nem artista consagrado... nem era pessoa demasiado conhecida ou famosa; mas pessoa do povo, gente humilde e simples como tantos e tantos que partem sem deixar rastros, ao menos visíveis.

Direi no entanto, com Jung, que esta manhã a humanidade sofreu um tremendo golpe e que ficou tantinho mais pobre com a partida da nossa querida Maria Isabel.

Mas quem era esta tal Maria Isabel para merecer nossa atenção e cuidado?

Começarei dizendo que era como tantas e tantas neste mundo: filha desvelada, esposa dedicada (já viúva), mãe exemplar, avó coruja, vizinha maravilhosa, etc É dizer pouco penso eu.

Então direi que Maria Isabel fazia parte de um grupo seleto de almas sensíveis, delicadas e disponíveis, sempre atentas e prestes a aliviar a dor alheia.

Era ela alguém que se identificava com o outro e que sabia por-se em seu lugar.

Alma prestimosa. Gosto de defini-la assim.

Pois ao cabo de quase sessenta anos poucos foram aqueles, que no Catiapoã, em S Vicente, deixaram de sentir os eflúvios de sua generosidade, alguma mercê, algum favor, alguma atenção, algum cuidado...

Mulher de sentimentos nobres e elevados não podia ela permitir que a imensa caravana dos desvalidos, que sofrem e padecem neste vale de lágrimas, passasse pela porta de seu humilde sobrado sem prestar-lhe algum tipo de assistência.

Não, não pensem que fosse milionária ou abastada.

Não, não era. Eram seus pais pequenos comerciantes ou proprietários de diminuto empório, daqueles nos quais há trinta ou quarenta anos ainda era possível marcar a 'conta' na caderneta. Era sua mãe - ainda viva - Dna Helena, senhora de ungida bondade, a qual jamais permitia que nós pequenos, saíssemos da quitanda sem alguns caramelos nas mãos.

Recordo-me alias de Dna Isabel há cerca de uns trinta e cinco anos (eu era um molecote de uns cinco anos!) ainda jovem e recém casada, atendendo os clientes com o C Alberto (recém nascido) nos braços e um sorriso aberto nos lábios. Costureira tarimbada e mulher elegante, lembro do quanto preocupava-se com a boa aparência e dos vestidos sempre coloridos e engalanados...

Durante toda infância - meus pais eram clientes da quitandinha - jamais ouvi de sua pessoa qualquer palavra amarga ou injuriosa.

Sei no entanto que ao cabo da vida experimentou os mais dolorosos baques: a morte repentina do filho mais velho, o cárcere (embora fosse inocente!), a prolongada enfermidade do marido (do qual cuidou com extremo desvelo até o fim), o afastamento dos pais (os quais transferiram-se para um sitiozinho no interior), a pobreza e misérias ainda maiores, a respeito das quais convém silenciar... Apesar disto, baque após baque, seu coração permaneceu sempre puro e aberto as necessidades do próximo.

Lastimavelmente, no entanto, foi ela buscar algum conforto na bebida e esta, após minar-lhe a saúde e drenar-lhe as forças, acabou levando-a ao cabo de breve enfermidade. E no entanto ela jamais queixou-se ou dignou-se a pedir ajuda... mesmo aqueles que como eu passavam quase que diariamente diante de sua porta em demanda do trabalho. Apenas um acenar de mãos, um cumprimento, as vezes um sorriso... o mais, aquele imenso rosário de dores, guardado ficou em seu coração como num cofre...

Estávamos na Seduc por sinal, quando veio a infartar e só fomos informados a respeito quando chegamos em casa a noitinha. Queríamos ir ao ambulatório para ve-la ainda pela última vez enquanto partia - pois estava já desenganada - mamãe no entanto disse que não podia receber visitas, além disto choveu a cântaros nesta região.

Pretendíamos ir ao ambulatório ainda hoje e, com a permissão de nossos ex alunos, que lá trabalham, dar uma olhadinha nela... reanimando a pouca esperança. Não foi possível.

Pela madrugada despertamos sobressaltados após termos sonhado com as letras de seu nome desaparecendo num torvelinho... assim tornamos a adormecer certos de que ela havia partido, como de fato fomos notificados ao despertar da alva.

Solidária, fez-nos esta sra obséquios que dinheiro algum no mundo poderia pagar.

Há treze anos, quando meu pai veio a enfartar repentinamente em casa e tivemos de leva-lo as pressas, desmaiado, até o Hospital S José, ficando nossa mãe idosa e meu irmão em casa, apavorados; foi ela que em menos de quinze minutos lá apareceu conduzindo minha veneranda mãe... e lá permaneceu até falarmos com a Dra Sofia, e acompanhou-nos pela noitinha de volta a casa, e só saiu de lá após ter serenado o espírito inquieto de minha progenitora e mandado um bom prato de sopa...

Oh Jesus bendito, quanto amor havia naquele coração.

Morto meu pai, no dia seguinte, lá estava ela no velório para o que desse e viesse. Assumindo com outras vizinhas, o cuidado de auxiliar minha pobre mãe.

Passaram-se alguns anos...

Tendo minha mãe de passar terríveis crises de lombociatalgia, cujas dores eram por assim dizer lancinantes e exigiam uma série de cuidados especializados, que meu irmão e eu optamos por - apesar de ter um bom plano de saúde - dispensar em casa, por temermos a infecção hospitalar. Mais uma vez quem é que veio oferecer seus cuidados??? Sopinhas, frutas, vitaminas, bolsa de água, travesseiros especiais, etc A Dna Isabel... até um aparelho de inalação emprestou-nos, quando o nosso repentinamente quebrou e minha mãe estava a passar mal com falta de ar (havia contraído pneumonia)...

Por fim quando alguns parentes nossos precisavam de um local para acolher-se (uma tia minha cuja filha havia expulso de casa com o irmão agonizante) e nós mesmos, tendo em vista o temperamento deles não ousamos recebe-los em nossa residência, lá veio a dona Isabel (viúva e com a maior parte da casa desocupada) colocar sua casa a disposição deles e isto apesar das advertências que havíamos feito. E lá ficaram instalados minha falecida tia e primo por quase três meses muito bem cuidados...

Além disto jamais permitiu ela que minha veneranda mãe passasse pela porta de sua casa sem presente-la com ao menos um cacho de bananas, enviado do sítio por seus pais. Quase todos os Domingos, a volta da feira, aparecia minha mãe com alguma prenda oferecida pela Dna Isabel...

Ignoro se fosse 'católica', 'espírita' ou mesmo indiferente, pois mesmo sendo lusitano descendente e mandando dizer missa pelo filho e esposo, não costumava frequentar nossa Matriz. Diziam alguns que costumava frequentar um centro Kardecista ou mesmo uma tenda de umbanda, a respeito do qual nada sei... a mim parecia que era dessas pessoas indiferentes, que faziam de sua religião o supremo culto da Bondade e da Caridade....

Exemplo imortal e imperecível neste triste tempo em que pessoas 'religiosas' matam, torturam, sequestram e estupram em nome de deus, semeando o ódio e multiplicando os sofrimentos alheios. Modelo de virtude esclarecida e de legítima espiritualidade nesta Idade de trevas em que confessar a fé parece equivaler a invadir os templos e agredir os adeptos das religiões rivais...

Ao invés de em nome jave, alla, Moisés, Maomé, Lutero, Calvino e outros deuses com seus profetas. aumentar as rudes dores experimentadas pela pobre humanidade neste tenebroso báratro, optou esta mulher simples, esta mulher do povo por ser solidária e exercer, quiçá em nome do Cristo, mas de seu Cristo; a suprema e sublime lei do amor.

E pela cota de amor e bondade que entre nós soube esparzir, pela imensa falta que faz e dorida saudade que deixa, registro estas poucas mas verdadeiras palavras.

Certamente brilha mais uma estrela de primeira grandeza nos céus da eternidade.

Não morres de modo algum pois viverás e permanecerás sempre viva em nossos corações chorosos!

Resta o vazio da ausência e a tristeza por testemunharmos o surgimento de um novo mundo cada vez menos fraterno.

L'eterno riposo dati Gesù Dolce, Gesù Pio
Splenda ante si la perpetua luce!!!

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