segunda-feira, 5 de junho de 2017

Relações entre a teologia Ortodoxa e a Filosofia antiga

Sibila de Erétria, Sólon, Pitágoras e o divino Sócrates


Julgo que tantos quantos amam o pensamento clássico ou a filosofia antiga deveriam encarar o Cristianismo antigo, o Catolicismo, a Ortodoxia com ao menos alguma gratidão.

Que seria de nós caso tivéssemos perdido nossa herança grega?

Não a perdemos por pouco, muito pouco.

Bem antes que os árabes e germânicos travassem as primeiras batalhas contra um Império já arruinado uma grande guerra havia sido travada e decidida nos domínios do pensamento. Foi um conflito memorável, inda que conhecido por poucos. No entanto quando Jesus de Nazaré fez sua primeira aparição neste mundo os rumos da Filosofia e da cultura estavam já traçados. Após três séculos de disputas encarniçadas podemos dizer que cerca do século I desta era o rumo ou a direção era platônica. Aristóteles, o Liceu e portanto o próprio realismo haviam perdido a batalha! Apesar do quanto haviam produzido até algumas décadas antes...

Agora no entanto prevalecia o academicismo, as sucessões platônicas, o imaterialismo, logo o neo platonismo e enfim a teurgia, isso mesmo amigo leitor, a teurgia, a feitiçaria! Até aqui nos trouxe o ilustre acadêmico - aos cultos de mistério, ao gnosticismo, ao pitagorismo, a mistagogia, aos pés de Alexandre de Abonotica, Apolônio de Tiana, Plotino e Jamblico.
Assim quando Justiniano ordenou o fechamento da acadêmia no século VI ela já não passava de uma espécie de tatwa ou círculo esotérico... Foi Jamblico por sinal, que apregoando a inacessibilidade do Transcendente por via racional ou especulativa, introduziu a magia no platonismo, a qual por meio de Proclo acabou assumindo o controle da acadêmia.

Observem só a tragédia: Primeiramente foi o aristotelismo suplantado pelos delírios platônicos, o platonismo - Após diversas sucessões - suplantado pelo neo platonismo e este substituído pela pajelança!!! Tal o fim inglório da acadêmia após quase nove séculos de existência.

A perspectiva é demasiado triste porém somos obrigados a admitir que a Filosofia seguiu este curso descendente ou seja para baixo, até desaparecer.

Em seguida chegaram os árabes e os germânicos e com eles o caos.

Ademais, num primeiro momento os árabes não estiveram nem um pouco interessados nessa 'coisa pagã' chamada Filosofia.

Assim quando os 'traidores' Mutazzilas tomaram contato com ela e reproduziram parte de seus documentos - cerca do século VIII/IX - não foi aos originais gregos que se reportaram mas a traduções aramaicas produzidas pelo clero Ortodoxo pré calcedoniano, fosse pelo siríaco ou pelo assírio. Foram os Cristãos pré calcedonianos e em seguida os bizantinos que levaram os clássicos até os estudiosos mutazzilas.

Enquanto isto lá do outro lado do mundo, na Irlanda, outros tantos monges ortodoxos, congregados por Columbano, copiavam e salvavam outros tantos monumentos do passado.

Outra não era a realidade na capital grega do Império, Bizancio, cuja magnaura havia sucedido ao Liceu e cuja Biblioteca imperial havia substituído a grande Biblioteca de Alexandria.

Houve portanto do século IV ao X enorme interesse em termos de Filosofia grega por parte do Clero Cristão Ortodoxo.

Mas por que se a Filosofia era patrimônio original do paganismo antigo?

Que teria levado o Cristianismo primitivo ou a Igreja antiga a cultiva-la assim com tanto empenho a ponto de salvar um número não desprezível de obras clássicas?

Qual o interesse do Catolicismo na Filosofia?

Por que os judeus demoraram tanto para cultiva-la enquanto os muçulmanos (mutazzilas) cultivaram-na em tão reduzido número, até abandona-la por completo.

Por que o grau de interesse pelo pensamento antigo não foi igual entre as três grande confissões 'monoteístas' - judaísmo, Cristianismo e islamismo?

Por que os Católicos levaram a palma quanto ao cultivo da especulação racional???

Como se explica isto?

Vamos ver se podemos compreende-lo.

Assinalemos antes de tudo que judaísmo e islamismo são sistemas religiosos de transcendência absoluta ou de um monoteísmo espiritual e descarnado. Destarte não exigem ambas as apologéticas um aparato conceitual demasiado substancioso. Grosso modo a apologética Cristã primitiva, em termos de monoteísmo pode contar com um imenso arsenal de literatura religiosa pagã, assim com Hysdaspe, com as Sibilas, com os textos órficos, com Hermes trimegisto e por ai afora. sequer precisando chegar aos pensadores naturalistas ou mestres de Filosofia.

Já o islã e judaísmo apenas muito raramente se esbateram com os gentios, optando preferencialmente por fazer proselitismo entre os Cristãos e coopta-los, sem necessidade de demonstrar o monoteísmo. De modo que o único adversário episódico com que contavam era o ateísmo, o qual, ao menos segundo o islã, não merece qualquer outro argumento além da espada.

A excetuarmos Aristóbulo e Fílon os mestres judeus, de modo geral, só vieram a fazer petição a Filosofia e a emprega-la sistematicamente a partir de Saadia Gaônides e de sua polêmica com os Caraítas, e ainda posteriormente a título de emulação face aos mutazzila do islã e a nossos doutores escolásticos. Em geral costuma-se dizer que os problemas filosóficos só costumaram a ser tratados isoladamente e com maior atenção pelos Cristãos latinos a partir do século XI, i é, de Anselmo de Aosta, Bispo de Cantuária.

De modo que os infiéis, judeus e mutazzilas, teriam precedido os Cristãos no trato com a Filosofia antiga.

Esta visão é totalmente equivocada.

Pois como ferramente teológica foi a Filosofia empregada pelos Cristãos desde o século II desta Era e numa escala jamais equiparada pelos muçulmanos ou judeus; e isto como vimos, a pontos dos antigos Cristãos terem copiado e preservado os registros filosóficos pagãos de que mais tarde vieram a servir-se muçulmanos e judeus. Foi dos copistas Cristãos arameus, copta, armênios e bizantinos que os judeus e muçulmanos receberam seus textos filosóficos.


S Justino Mártir e o divino Homero!

De modo geral podemos dizer que todos os setores do Cristianismo antigo - desde Justino, Clemente, Orígenes, Atenágoras e Teófilo - serviram-se abundantemente da Filosofia pagã em suas disputas e controvérsias dos gnósticos a Irineu, de Ário aos atanasianos, dos intregracionistas aos nestorianos, dos monofisitas aos diofisitas, dos monotelitas aos diotelitas... o recurso aos modelos de pensamento antigo fio sistemático.

Toda teologia Ortodoxa do primeiro ao segundo concílio de Niceia e mesmo antes foi construída com elementos tomados ao pensamento clássico greco romano.

Nem poderia a Revelação Cristã ou o Catolicismo exprimir sua riqueza espiritual senão a partir dos elementos dispostos pelo que havia de mais amplo e profundo em termos de pensamento humano, i é, o patrimônio filosófico grego.

Este encontrou ou associação não foi meramente acidental mas providencial e absolutamente necessário.

A teologia Ortodoxa jamais poderia ter sido elaborada pela Igreja e seus Bispos caso não tivesse sido precedida pela Filosofia grega, a qual forneceu-lhe os recursos de que precisava.

Agora qual a razão deste encontro?

A razão deste encontro inusual esta no próprio mistério da Encarnação de Deus no mundo ou no fundamento pétreo da religião Cristã.

Afinal de que modo e a partir de que conceitos poderia ela exprimir com absoluta exatidão as relações existentes entre as categorias humana e divina de Cristo?

Em que termos havia de por os elementos da Trindade Santíssima - Pai, Filho e Espírito Santo senão em termos de essência Una e pluralidade de pessoas?

Termos que tomou ao pensamento antigo.

A teologia Católica como um todo desde Teófilo, Atenágoras e Tertuliano teve de servir-se dos elementos conceituais oferecidos pela Filosofia pagã para explicitar com precisão o Mistério da Excelsa Trindade - Daí as construções Trinitas, pessoa, essência, natureza, e mais tarde com relação a Jesus: Substância, co substancialidade; e quanto a Unidade de Cristo: pessoa, natureza, vontade, comunicação, etc Todos estes termos e muitos outros foram tomados pelos padres conciliares ao pensamento antigo com o objetivo de expor com máxima clareza os dogmas de nossa imaculada fé.

O que por si só denota um íntimo trato ou afinidade com o terreno da Filosofia e de modo algum animosidade, desprezo, repúdio...

Todo este secular trabalho de apropriação conceitual por parte da Teologia antiga, supõem um conhecimento considerável ou melhor gigantesco em termos de literatura antiga por parte de nossos mestres e doutores a partir de Clemente Alexandrino e Justino de Roma, pioneiros neste trabalho penoso de assimilação.

Como o judaísmo jamais fizeram ideia a respeito de uma Trindade divina e de suas relações, não era a ele que os padres antigos deveriam recorrer. Tampouco encontrariam qualquer coisa com relação a Encarnação de Deus - E consequente sobre sua humanidade e divindade  - no que chamam de Bíblia ou antigo testamento. No Novo testamento dariam certamente com os conceitos mais remotos e gerais; mas não com os decorrentes e menos ainda com as expressões destinadas a expressa-los com a mais absoluta exatidão.

Impossível elaborar-se uma teologia trinitária ou cristológica a partir do antigo testamento ou da Bíblia. Eis porque os protestantes excluindo o domínio da tradição - E consequentemente a elaboração teológica dos ancestrais - e apelando exclusivamente a Bíblia, nada puderam fazer no sentido de substituir esta teologia por qualquer outra coisa. Resulta disto terem retornado ao padrão teológico antigo e através dele cada vez mais ao Catolicismo ou repudiado tais dogmas tornando-se nestorianos, monofisitas ou unitários, em que pese o fato dos antigos nestorianos, monofisitas e arianos tentarem argumentar como a igreja ou seja filosoficamente e não biblicamente apenas. O protestantismo no entanto, por via da judaização, chegou a precipitar-se num fideísmo cego e irracionalismo absoluto, fazendo galas da própria ignorância e inabilidade teológicas.

Dentre as camadas mais baixas do protestantismo mesmo aqueles que se apresentam como trinitários ou integracionistas já não sabem exprimir com exatidão e rigor tais mistérios, e consequentemente a própria fé, por isso já não se entendem uns aos outros e disputam sobre as expressões e os nomes, ainda quando afirmam professar a mesma fé. A dissolução da alta teologia entre eles resultou em falta de comunicação e entendimento, de modo que já não se compreendem uns aos outros prevalecendo a confusão.

A Igreja, no entanto, graças ao esforço comum executado no primeiro milênio e aos elementos da Filosofia grega, logrou construir um vocabulário teológico absolutamente seguro e até diria, perfeito, no sentido de expor os dogmas contidos no Evangelho e no Novo Testamento.

Foi a particularidade ou especificidade da doutrina Cristã - e portanto das crenças na Trindade Santíssima e na Encarnação de Deus - face as fés judaica e muçulmana que determinou sua aproximação do pensamento grego, o qual já estava acostumado a trabalhar com a pluralidade e a imanência, embora noutro sentido.

O que não deixou de beneficiar amplamente a própria Filosofia, encarada com simpatia e carinho pelos Mestres e doutores Cristãos - Com raras exceções - e cultivada em nossas escolas. Primeiro a Filosofia manteve-se dentro dos domínios da Teologia, enquanto ferramente, tal a perspectiva de João Damasceno no século VIII. Posteriormente, já entre os latinos, passaram os problemas filosóficos, ainda no corpo da teologia, a serem examinados isoladamente ou em si mesmos; caracterizando a assim chamada teologia escolástica e exprimindo já certa ideia de autonomia ou de objeto próprio, o qual veio a afirmar-se especialmente a partir de Ficcino, Maquiavel, Erasmo, Vitória; até chegarmos a Bacon, a Descartes, a Spinosa e a uma Filosofia autônoma. A qual sempre poderá se usada pela Teologia, ou não...

Os padres mais antigos focalizando especialmente na Ética, mas profecias e no monoteísmo, tiveram forçosamente de identificar-se com Platão. No entanto, quando a polêmica fez-se intra Cristã, em termos de correntes ou heresias, a construção de um aparato conceitual Cristão Ortodoxo orientou nossos elderes cada vez mais a Aristóteles ou ao estoicismo. A começar pelo herético Ário até Aquino, passando por João Damasceno. 

Evidentemente que a corrente mais primitiva, a platônica, jamais foi completamente erradicada, seja entre os gregos ou os latinos, alias, o citado Ficcino, sacerdote florentino que floresceu no século XV, era, com muitos outros, decididamente platônico. Mesmo assim a maior parte de nosso vocábulo teológico, procede mesmo do Liceu, sendo a síntese tomista, por sinal, bastante admirável ao menos sob alguns aspectos.

Portanto se no tempo presente podemos deleitar a mente e alimentar o espírito partindo de tais escritos ou das obras de Platão e Aristóteles penso que não possamos deixar de ser gratos ao Cristianismo antigo com seus Bispos ávidos por uma boa leitura e seus monges copistas. Imagine só que cenário teríamos caso o Catolicismo tivesse sido de fato como costumam pinta-lo algumas pessoas muito mal informadas: Hostil ou indiferente a Filosofia. Neste caso que teria restado???

O divino Homero, Tucídides, o divino Aristóteles, Platão e Plutarco de Queronea 

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