Posso comparar sem medo de errar o Positivismo com a ideologia que inspirou-o o Catolicismo e até certo ponto classifica-lo como uma espécie de Catolicismo dessacralizado. E nem posso deixar de escrever o nome de seu fundador A Comte ao lado dos de: Darwin, Freud, Marx e Weber ou seja como uma das personalidades mais relevantes e ricas da civilização ocidental contemporânea.
Grosso modo até podemos dizer que Catolicismo e Positivismo partilham as mesmas grandezas e misérias. Misérias comuns a todas as organizações humanas. Grandezas até certo ponto singulares.
Nem posso ser mais uma vez, posto sob o pau de arara e classificado como pequeno burguês, apostata, traidor, etc, etc, etc por até certo ponto fazer justiça a este sistema. Isto pelo simples fato de que Marx muito reproduziu dele, como havia reproduzido, acriticamente, diversas teorias de origem liberal (capitalista). Assim os dogmas da ditadura do proletariado, o éthos materialista, o golpismo violento, a visão do futuro, etc
Nem por isso o sociólogo barbudinho detestado polos liberais, é classificado como liberal ou positivista por ter se apropriado destes elementos. E se ele não o é, tampouco nós o somos... embora nos apossemos de materiais distintos.
Alias não é apenas a sociologia de Weber que se nos parece mais ampla e profunda que a de Marx. Também a de Comte nos parece mais sólida. Não repudiamos a Marx enquanto crítico do capitalismo - chorem liberais! - mas tampouco estamos de acordo com sua visão (superficial e limitada) de sociedade. Comte e Weber aceitaram o desafio da complexidade!
Como registrei acima Catolicismo e Positivismo tem muitos elementos em comum.
Um deles e bastante relevante por sinal se dá na relação entre cultura imaterial ou ideal e cultura material.
Todos os materialistas sustentam que a cultura imaterial não passa de um epifenômeno da cultura material ou que as relações de idealidade sejam frutos de relações econômicas de produção. Apenas até certo ponto esta certo, na medida em que o economicismo liberal afirma-se nas sociedades moderna e contemporânea, absorvendo - como descreveu Karl Polanyi - as demais instituições e plasmando uma nova ideologia e uma nova cultura 'materialistas'.
Nas Sociedades pré capitalistas no entanto, sejam primitivas ou antigas, a relação não se dá nos mesmos termos i é em termos unilaterais e economicistas. Não é que o material ou econômico sejam irrelevantes. São absolutamente relevantes como salienta V G Childe. No entanto o já citado Polanyi explica muito bem como tais sociedades criaram mecanismos com o objetivo de conter o econômico ou de enjaula-lo, como dizia Keynes.
Apenas no século XVI foi aberta a jaula. Pelo protestantismo... ficando este espírito ou demônio do economicismo, livre para circular e absorver quase que por completo os demais setores da vida humana. Pelo que Berdiaeff observa e com razão um paulatino empobrecimento cultural após a magnífica florada dos Renascimentos, conduzidos, no caso, pela igreja romana.
Principia Comte descrevendo o ceticismo crasso como sintoma de uma crise cultural em termos de civilização e não podemos deixar de concordar com ele. Observa em seguida, com a mesma acuidade, que a crise que se estende seus dias ao momento presente, ressente da fragmentação do mundo do espírito, em termos de princípios, valores e crenças orientadoras. De fato o capitalismo logrou remover as bases da civilização européia, em termos de idealidade greco romana mantida até certo ponto pelos Catolicismos, mas.... como o protestantismo, não obteve sucesso em substitui-la como elemento gerador e unificador.
Nem poderia faze-lo por ser um 'espírito ou ideal de materialismo' que jamais atinge a profundidade das coisas. O Catolicismo atingiu-o e unificou-o, concretizando o ideal dos antigos gregos, o protestantismo falhou porque fragmentou-se e o capitalismo porque fragmentou-se igualmente suscitando oposição e resistência. E ficou a civilização fragmentada e sem bases espirituais ou imateriais; melhor dizendo, ferida em sua dimensão cultural!
Percebeu Comte antes de todos que faltava a cultura européia de Lutero, Smith, Kant, Nietszche, etc um espírito orientador que desse suporte a cultura material. O homem estava perdido porque havia perdido o sentido.
Concluiu o pensador francês que a crise não era apenas material. Não é que ignorasse a materialidade da crise, não é isto. Apenas queria significar que era mais profunda porque faltava aos homens um imaginário coletivo, ideário comum, sentido coletivo; enfim uma certa unidade cultural; e que se encontravam dispersos. Não havia elemento coordenador naquele momento. Comte ainda teve o mérito de olhar para trás, de indagar a história, de perscrutar as fontes ancestrais de cultura e assim pode perceber, que o Catolicismo apenas, DANDO CONTINUIDADE AO HELENISMO (apud Etienne Vacherot 'A escola de Alexandria') havia concretizado este propósito.
Foi quando se deu a transposição.
Tão criticada.
Condenada por Littré...
Ridicularizada pelos próprios católicos.
E no entanto tão plena de sentido.
Apesar de ser anti metafísico e de julgar que as causas primeiras e os fins últimos eram inacessíveis ao entendimento humano, nem por isso Comte pode deixar de constatar a imensa influência exercida pela religiosidade ou pela espiritualidade sobre a conduta humana. Antes percebeu Comte um aspecto marcante da dinâmica social ou seja da religiosidade enquanto forjadora da cultura, o que já havia sido mais ou menos exposto por Fustel de Coulanges.
E no entanto este Comte não tinha fé.
E este Comte, tributário de Kant, nutria prevenções invencíveis contra a metafísica.
Neste caso que fazer?
Concebeu a ideia, para muitos louca, de criar uma religião natural ou sem deus e sem imortalidade. Disto resultou a 'religião da humanidade' em que Deus é substiuído pelo gênero humano ou pela sociedade. Quiçá tenha lido algo sobre o caráter agnóstico da religião budista. E a forma que ele escolheu para sua religião outra não foi que a forma Católica. Removeu Deus ou Cristo mas manteve uma sombra de Catolicismo: uma liturgia, paramentos, uma espécie de comunhão dos santos, um tipo de calendário eclesiástico, imagens ou figuras de homens ilustres, etc Todo um aparato simbólico destinado a substituir a religião antiga enquanto elemento unificador e gerador de cultura.
Nem se pode deixar de convir que foi uma ideia arrojada.
De fato o Comunismo, com sua estrutura eclesial calcada no Vaticano, tem a quem puxar.
Agora ficamos aqui pensando: Se positivismo e - inconscientemente é claro - o comunismo, reproduziram tanto do Catolicismo, como dizem seus adeptos que este Catolicismo seja essencialmente mau???
Aqui justiça seja feita. Ao menos aos positivistas, na medida em que Comte e Litreé, reconheceram a excelência dos catolicismos no plano social. E como homens eruditos que eram não podiam ter deixado de faze-lo. Apenas parte dos críticos protestantes, comunistas ou anarquistas deixam de faze-lo, por puro espírito de partido ou preconceito.
Positivistas ou não temos de aplaudir de pé este homem - Comte - genial, capaz de tocar aos fundamentos de uma crise que passados século e meio, muitos ainda julgam misteriosa. Entramos em crise porque nossos modelos: Protestantismo, Capitalismo, Comunismo, Nazismo... falharam um após o outro, fazendo perecer as mais belas esperanças ou convertendo-as em pesadelos assombrosos. Outras ideologias sequer fizeram qualquer coisa, jamais saindo do plano das discussões intermináveis e, atualmente, de pedaladas, coreográficas exóticas, alucinogeos, etc
Entramos em crise porque as bases de nossa cultura foram privadas de um elemento comum ou unificador de modo que os homens já não se reconhecem mais uns aos outros como semelhantes. Porque não mais possuímos uma fé coletiva, um imaginário coletivo, um núcleo comum de princípios e valores. Porque não mais nos identificamos com o outro e nos alienamos por completo uns dos outros, chegando a anomia...
Diante disto, visando prover a comunidade de um elemento unificador Comte elabora, não uma simples ideologia em termos de escola ou corrente filosófica como queria Litreé; mas uma religião sem deus ou um catolicismo sem Cristo! Nem podería ter deixado de imitar um sistema que no passado dera certo...
Sucede porém que seu arremedo de Catolicismo, após ter feito estrondoso sucesso por cerca de meio século, tomba no pó do esquecimento! Uma doutrina que pretendeu, como o protestantismo, o capitalismo e o comunismo, substituir o espírito do Catolicismo... agora desce a mesma fossa comum, tumba de todas as vaidades...
Talvez hajam coisas que sejam insubstituíveis! Talvez hajam elementos que devam ser resgatados! Talvez uma cultura deva ser reforçada! Talvez uma ética deva ser restaurada!
Do contrário a crise lançara os homens angustiados nos braços de outros elementos unificadores, cujo vulto já assoma nos confins do Oriente. Diga-se o que se disser do islã, sobre todos os aspectos repugnante! Mas contem um elemento unificador e coordenador de ações!
Fora o islã onde procurar este elemento???
Não me culpem os homens por ousar voltar minhas vistas já cansadas para o Catolicismo ou seus fragmentos!
Falhou o catolicismo de Comte por prescindir de Cristo, dos sacramentos, de um princípio imaterial operante, que atue em sintonia com a criatura racional, sustentando suas forças. Talvez o Catolicismo original e integral, restaurado e expurgado dos elementos protestante e da cultura de morte não venha a falhar, mas a congregar o que esta ainda disperso e a restabelecer as fontes ancestrais de uma cultura humanista, libertária e justicionista. Ouso ter esta fé! As vezes oscilo! As vezes duvido!
No entanto me parece uma esperança bela.
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