domingo, 25 de outubro de 2015

A lição de Julien Benda

Há quem deplore a acidez de nosso espírito crítico.

Admiramos algo é bem verdade. Mas não afagamos...

Não passamos a mão sobre as cabeças daqueles que erram.

Mas com amor e por amor buscamos advertir e corrigir.

Se somos Católicos ou nos identificamos com o espírito dos Catolicismos, nem por isso, com Berdiaeff, deixamos de tecer as devidas críticas aos ramos da igreja (Ortodoxia, romanismo e anglicanismo) ou as igrejas particulares, quando necessário de faz.

Via de regrar as pessoas não podem simpatizar com o médico que as diagnostique caso estejam tomadas por um cancro maligno. No entanto a única esperança para a cura do cancro é justamente o diagnóstico precoce da doença... ignorada a presença do cancro no organismo estará ele fadado a morte!

Logo aquele médico que diagnostica o cancro e recomenda sua retirada deve ser encarado não como um algoz ou vilão mas como um herói e benfeitor.

É que pessoa alguma gosta de receber más notícias!

No entanto a civilização conta com tais médicos para salva-la da terrível crise por que passa e qual estende-se já por uns dois séculos.

Dentre os diversos médicos que dignaram-se a examinar a questão da crise da cultura, salientou-se o francês Julien Benda, autor da 'Traição dos clérigos' e falecido na era de 1956 com 88 anos de idade.

Aprecia-mo-lo como autor e ensaísta for fazer parte do seleto grupo dos incompreendidos, injustiçados ou satanizados aos quais atribuí-se 'sem mais' doutrinas que jamais ensinaram.

Assim Darwin; o qual jamais sustentou ser o homem descendente dos macacos ou advogou o 'darwinismo social', assim Voltaire que jamais aderiu ao 'ateísmo', assim K Marx que jamais arquitetou algo semelhante a partidocracia leninista, assim Bakhunin e Kropotkin que jamais apoiaram o individualismo ou promoveram a anomia, assim Paulo Freire que jamais pretendeu alfabetizar crianças, assim Piaget que jamais condenou uma 'orientação' prudente e sensata...

Querem saber o que de fato foi ensinado por determinado pensador?

LEIAM, ESTUDEM, EXAMINEM suas obras!

Jamais poderei esquecer a seguinte alocução de minha professora de Filosofia Maria Aparecida Rollo Del Rio: "Vocês podem discordar de um determinado autor e argumentar contra ele; mas devem faze-lo honestamente e jamais atribuir-lhe algo que jamais disse ou ensinou!"

Tal a base e fundamento do que qualificamos como probidade intelectual.

Fujam aos autores superficiais que reproduzem boatos e afirmações estapafúrdias!

Como ia dizendo mais acima Benda foi um destes autores mal compreendidos pelo vulgo, embora a lição por ele ministrada não seja lá muito difícil de se compreender.

Buscou discorrer em torno dos homens, das teorias, das oposições e das paixões que azedam a vida promovendo transtornos, quiçá irreparáveis.

Seguindo a mesma linha que o Bispo de Hipona: "Detesta as doutrinas mas ama e compreender os homens."

E propondo um roteiro mais racional, sóbrio e sereno do que apaixonado.

Discorria assim a respeito das paixões de crença, raça ou classe, sem todavia justificar a NEUTRALIDADE face a situações de injustiça e malignidade.

Jamais sustentou que era necessário tolerar o mal ou compactuar com ele.

Quis salientar no entanto que a nível doutrinal ou ideológico, apenas muito raramente, algum teórico tem a consciência de estar agindo equivocadamente ou trabalhando conscientemente pelo erro.

Então pessoas honestas e boas sempre podem defender equivocadamente péssimas teorias. Então pessoas não se tornam más apenas porque defendem ou sustentam doutrinas más cogitando serem boas ou verdadeiras. Pessoas podem estar sinceramente equivocadas...

É o que a paixão ou o fanatismo são sempre incapazes de perceber.

Na medida em que substituem pessoas por rótulos: o católico, o protestante, o japonês, o negro, o comunista... querendo significar que todos os que pertencem aquela ideologia ou segmento que reputamos 'má' tornam-se não humanos ou inumanos pela contaminação ou assimilação da maldade.

Desde então passamos a etiquetar, rotular e classificar os seres humanos em bloco. Como se não pudessem enganar-se honestamente e fazer jus ao benefício da 'sinceridade'.

Opor-se ao protestantismo, ao capitalismo, ao subjetivismo, ao relativismo, ao bolchevismo, ao fascismo, etc não nos autoriza a crer ou supor que os advogados de tais doutrinas sejam pessoas essencialmente malvadas, a odia-los ou propor que sejam violentamente reprimidos.

Mesmo diante do erro devemos tentar manter a calma, a racionalidade, a sobriedade e levar em consideração que estamos diante de seres humanos, logo falíveis. E sobretudo pensar que o outro esteja a buscar honestamente a verdade. Devemos encara-lo como inocente e buscar dialogar com ele.

Então o que Benda denuncia e condena com plena razão é sob o termo de paixão é o fanatismo com seu conteúdo cego e irracional. Mesmo quando supostamente posto a favor da justiça o fanatismo tende a cegar-nos e transformar-nos em apóstolos da injustiça e da opressão.

Importa após o choque, o impacto ou a indignação refletir. Distinguindo o sistema ou a ideologia das pessoas, em sua maior parte alienadas e inocentes.

Sistemas anti humanos como o protestantismo, o comunismo, o nazismo, o fascismo... só sabem encarar os heréticos, os opositores, os dissidentes como ímpios, conspiradores e maléficos, segundo a maneira de ver do fanatismo e dos fanáticos.

Para os quais a pessoa não é nada absolutamente nada.

Não se trata aqui de defender o erro, a heresia, a injustiça, a opressão, a maldade, etc a tudo isto devemos condenar e combater civilizadamente no plano espiritual das idéias, argumentando, debatendo, refutando...

Mas de supor que nosso adversário ideológico herético, dissidente, adversário, opositor... possa ser de fato uma pessoa boa e honesta sinceramente equivocada; e não um sabotador sem consciência ou um degenerado!

Não se trata de respeitar o erro, de silenciar perante ele, de relativizar ou de minimizar sua gravidade; mas de compreender aquele que erra e de jamais tomar o erro por engano ou mentira.

Pois se há mentirosos e sabotadores também há homens honestos, probos, sensíveis, retos, admiráveis, nobres... em todos os grupos, partidos e organizações humanas: no comunismo, no liberalismo, no protestantismo, no islamismo, no fascismo...

Sendo assim não podemos julgar as pessoas ou trata-las como se fossem doutrinas abstratas.

Doutrinas podem e devem ser classificadas como falsas, inexatas, malignas... homens não. Podem suster doutrinas más e sem embargo disto ser bons, pois é do homem, especialmente quando jovem, confundir as coisas e equivocar-se.

Importa submeter todas estas questões e desencontros em torno da cultura, do estado, da fé e mesmo das classes sociais ao veredito e sentença de um valor eterno qual seja a justiça ou o bem.

Mesmo diante da opressão exercida por uma classe rica e poderosa sobre outra mais fraca, embora tomando posição ao lado dos mais fracos e oprimidos jamais seria lícito relativizar o conceito de justiça ou de fazer justiça a um membro ou defensor da classe opressora que a ela faça jus! Não podemos imolar o sentido da justiça nas aras do partido ou da religião... justiça é algo que se deve a todos os seres humanos independentemente de suas crenças ou opiniões.

Assim quando em nome da verdade ou de qualquer ideia saudável e redentora, pugnamos contra o ideal eterno da justiça, prestamos um desserviço a verdade, a qual sem a justiça não se sustenta.

A tônica aqui não consiste em ser neutro. Caso exerçamos neutralidade face a injustiça nos tornamos injustos. O tônica aqui é jamais perder a serenidade e ser justo até o fim, em todos os sentidos. Implica saber que a busca pela justiça social não deve servir de pretexto para perder-se de vista a justiça pessoal e para proceder com justeza face ao discordante! Temos de ser honestos e muitas vezes benevolentes mesmo para com aqueles que opõem-se as nossas crenças e idéias! O ser humano faz jus a tal atribuição pelo simples fato de ser humano.

Implica isto antepor certa dose de humanismo a qualquer de nossos ideais sejam religiosos ou seculares; políticos, sociais ou econômicos. Buscar discernir algo de humano ou de bom no outro ao invés de julga-lo, sentencia-lo e condena-lo como ímpio ou conspirador antes mesmo de conhece-lo, tendo em vista suas ideais com as quais não concordamos.

Implica não sair por ai agredindo as pessoas que alimentam outros pontos de vista.

Implica como dizia Xenofonte na 'Memorabilia' recorrer antes de tudo a razão e não a força cega. A persuasão e não a violência. Ao diálogo e não a imposição arbitrária, que mesmo posta a 'serviço da verdade' não deixa de ser uma forma de dominação, logo contra producente.

A verdade e a virtude sobretudo deves ser abraçadas voluntariamente.

Promovidas pela docilidade.

Aquele que esta seguro de seus argumentos não precisa exasperar-se.

Agora se for exasperar-se e acirrar os ânimos alheios, abstenha-se de discutir pois benefício algum pode auferir-se duma altercação azeda.

"Atrai-se mais moscas com uma gota de mel do que com um barril de fel."

Da paixão e do fanatismo sempre decorrem estragos desproporcionais. Sacrifício de vidas e de bens culturais cuja perda sói irreparável.

Nada mais prazeroso do que discutir ideais com um contraditor civilizado e ameno.

É de discussões assim que por meio da dialética atingimos uma claridade mais intensa. Porque o adversário revelando os defeitos embutidos em nossas opiniões, as inexatidões, imprecisões, devaneios, leva-nos a polir as arestas e a adquirir um diamante lapidado.

Importante esta contribuição do Benda a respeito não da indiferença mas da necessidade de tentar permanecer sóbrio diante de qualquer situação e de não se deixar guiar por qualquer discurso apaixonado. De modo que os conflitos e oposições de caráter ideológico ou doutrina não venha a amargar ou o que é ainda pior envenenar nossa existência.

Eu julgo esta lição das mais importantes no tempo presente.

Busquemos exercer uma ética humana e humanista para além das divergências de caráter intelectual.

Superemos as limitações externas e acidentais: do racial, do nacional, do cultural, do credal... pela afirmação do que é comum e essencial: o humano. Subordinemos tudo ao humano e assumamos o primado do humano.





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