terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Reconsiderando o 'conceito tradicional' de deidade II

Fenômeno imensamente curioso este - Os Catolicismos ou a Ortodoxia Cristã produziu uma teologia sistemática coerente e consistente partindo da Encarnação do Verbo, mas jamais arvorou criar uma teodicea 'Cristã' em sintonia com o mistério central de nossa fé, permanecendo sempre atrelado a uma teodicea judaica ou melhor rabínica, muito próxima da teodicea - se assim podemos dizer - islâmica (claro que me refiro a extinta Mutazzila) e impermeável ao sentido da imanência.

E no entanto a concepção Cristã ou Católica de Deus é algo totalmente distinta da concepção semítica, pois aqui a transcendência esta drasticamente apartada do mundo material dos fenômenos e ali em comunhão com ele ou inserida. O deus judaico/muçulmano é ente descarnado, imaterial, puramente espiritual, simples, invisível e separado do mundo que produziu. O Deus Cristão se fez homem de carne e osso ou Emanuel, entrou no mundo material, assumiu-o e incorporou-o.

Eis duas ideias ou concepções diametralmente distintas - ali um deus separado de sua criação e aqui um Deus presente em sua criação. Diante disto a pergunta que se faz é: Por que a teodicea não acompanhou a teologia Cristã fazendo o mesmo percurso? Por que permaneceu a teologia Cristã acoplada a um teodicea não Cristã ou judaica? Afinal será que os Cristãos não tem o direito de rever 'sua' teodicea a luz da Teologia da Encarnação, produzindo uma teodicea Cristã? Por que esta parcela do vinho Novo deve permanecer enfiada nos odres velhos do rabinismo?

Por que ainda não estouramos os odres velhos do rabinismo para dar larga expansão ao vinho novo do Evangelho comunicado pelos céus?

Se um dia a teologia acompanhar a teodicea acabaremos nos braços do unitarismo como parte das seitas protestantes/judaizantes. O outro caminho a ser feito é no sentido da teologia do processo ou do panenteismo.

Lamentavelmente parte dos Católicos tem sido impedida de chegar a estes termos por três palavrinhas contidas no Santo Evangelho e muito pessimamente compreendidas -

Pneuma O Theos
Espírito é Deus
Deus é espírito Jo 4,24

Diante desta passagem da Inspiração, não poucos tem lido:

"Deus é PURO espírito ou espírito PURO." querendo dizer que é apenas espírito e que nada contém de material. O que nos levaria a transcendência absoluta.

De fato a igreja em diversas publicações, inclusive em catecismos, bem como os kardecistas e os protestantes, tem descrito Deus como 'Espírito puríssimo'

Atentemos porém que este Jesus, que sempre exprimiu-se tão bem e tão claramente não diz  que Deus é 'apenas' ou 'somente' espírito. Do contrário teria dito com a igreja: É Deus puríssimo espírito. Poderia te-lo dito, mas... Não o disse?

Teria sido pois a igreja mais exata e mais prudente do que seu divino fundador e Nosso Mestre Jesus Cristo? Aqui, por mais que amemos a Santa Igreja, temos de responder que não, afinal não poderia ela ser superior a seu fundador e arquiteto que lançou-lhe os fundamentos.

Destarte, se não definiu a Deidade como espírito puro é porque sabia que este universo e a matéria estão presentes nesse espírito como meios dispostos a ação ou que a dimensão da materialidade coexiste eternamente com Deus sem ser Deus ou confundir-se com ele. Com Tertuliano, Orígenes, Lactâncio e Arnóbio podemos nos referir impropriamente a este meio ou aspecto da divindade como a um corpo. A expressão no entanto é inexata e simbólica porquanto é a deidade incorpórea, embora haja nela um elemento material, com o qual se relaciona e vivifica. Do contrário teria dito com Zenão de Citium 'Nous O Theos' i é 'Deus é a mente' St Epifânio 'Adv Haeres' 3.2.9 - 1.146 tendo por implícita sua corporalidade.

Atribuir outro sentido a este texto é transformar o divino Mestre em neo platônico. Você sempre poderá definir o rio, o mar ou os oceanos como água - O Mar é água ou é líquido, sem com isso negar os peixes, as algas e muito menos o sal, pois prevalece a água. O deserto sempre poderá ser definido como uma extensão de areia, sem que excluamos espinheiros, cipós e insetos e mesmo lagartos. Uma porta de madeira compõe-se de pregos e não poucas vezes de um visor feito com vidros. Uma roupa de tecido contém botões e um sapato de couro cadarços de pano.

Muito mais significativo para nós é o que Jesus podendo ter dito não disse:  "Deus é PURO espírito' querendo significar que é espírito incorpóreo, mas não 'puro' como querem os neo platônicos e transcendentalistas.

A própria igreja Ortodoxa presume um sentido pré existente e eterno na Encarnação do Senhor, o qual não se restringe a sua vontade ou a seus planos, o que nos remete as relações Espírito matéria enquanto sombra ou ensaio desta Encarnação ulterior sucedida no tempo e no espaço.

Reconsiderando o 'conceito tradicional' de deidade I

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Toneladas de tinta e papel tem sido gastas com o objetivo de refletir sobre as relações existentes entre a deidade e o universo criado ou a matéria e isto desde o tempo dos gregos para os quais a matéria, sendo eterna e incriada, correspondia a um dos aspectos da deidade assim definida como alma ou consciência do mundo.

Os fariseus, escribas e rabinos no entanto apresentaram a deidade como transcendência absoluta e separada do mundo material, como espírito puro ou entidade descarnada (imaterial).

Tal a conjuntura religiosa, de conflito ou choque, em que manifestou-se a fé Cristã, alias num contesto cultural judaico que sempre tendeu a divinizar.

Colossal o esforço da mentalidade Cristã, ao menos desde Filiponos (sec VI) no sentido de apresentar a concepção tradicional de Deus, nos termos do judaismo, como um Dogma Cristão. A apresentação é forçada, senão ímpia. Afinal, no mínimo três Cristãos dos primeiros séculos - dois deles elderes Ortodoxos venerados pela Santa Igreja - opinaram a respeito da eternidade do mundo ou da matéria, a saber, o gnóstico Hermógenes; o catequista e mártir Justino de Roma e o Arcebispo Atenagoras. Segundo a opinião deles a divindade teria organizado a matéria pre existente imprimindo-lhe forma e não produzido a matéria magicamente como se antes nada existisse (ex nihilo).

Felizmente após Galileu e Newton foi o problema da origem do universo e da idade da matéria atribuído em geral a ciência. Ao menos a maior parte dos filósofos e metafísicos e certa parcela de teólogos tem acordado em atribuir esta tarefa a investigação científica. Diante disto alguns suspendem o juízo enquanto outros optam por repousar no berço dourado da fé. Refiro-me a pessoas inteligentes, as quais de modo algum referendam os mitos grotescos do gênesis, limitando-se a supor que a 'grande explosão' que deu origem a este universo também teria dado origem ao elemento material. Portanto, segundo esta concepção, o mesmo evento teria sido responsável pelo surgimento de nosso universo e da materialidade, a qual, antes dele, inexistiria.

Que existiria então?

Apenas a imaterialidade ou a transcendência absoluta, identificada com o Deus produtor deste Universo ou Criador. Criador por ter comunicado existência ao elemento material.

Diante disto que pensar?

Mesmo que a ciência consiga demonstrar a origem deste Universo permaneço bastante cético quanto a possibilidade de estabelecer a origem ou idade do elemento material, o qual sempre poderia pre existir a esta organização ou forma temporal. Da temporalidade do Universo jamais se poderia concluir pela temporalidade da matéria ao menos que houvessem razões bastante sólidas para tanto. O fato é que a eternidade ou a temporalidade da matéria ainda é objeto de amplo debate entre os cientistas.

Permitam-nos portanto especular a luz da razão e dos mistérios peculiares ao Cristianismo ao invés de crer porque os outros creram e repetir tolices.

Longe de mim opor-me a Jesus Cristo, seria o cumulo da incoerência um 'Cristão' professo opor-se a ele. Não sou protestante ou bultmaniano e tampouco biblista ou fundamentalista, apenas niceno ou atanasiano, e coerente. Assim quando ele fala eu me calo, quando ele abre a boca eu escuto, quando ele ensina eu aprendo. Todavia a respeito das coisas sobre as quais ele, o Verbo, silenciou ou nada revelou, farei uso de meus sentidos e da minha racionalidade com plena liberdade, examinando também as opiniões dos sábios da Grécia sem maiores preconceitos. Não vou portanto curvar-me reverente face as opiniões dos profetas, escribas, fariseus, rabinos e lideres religiosos da casa de Israel. Aqui nem mesmo aos santos apóstolos darei ouvidos, pelo simples fato de que estavam inseridos na cultura judaica, a qual tinham em conta de divina. Os mesmos argumentos que empenho contra a mitologia israelita posso empenhar contra a teologia farisaica...

Penso que toda esta questão deva ser examinada liberalmente nos podromos da racionalidade e da tradição peculiar ao Cristianismo, como um problema teológico enfim. Nem ignoro que neste sentido, algumas tentativas arrojadas tenham já sido feitas por figuras como Scott Erigena, Amalric de Benna, Davi de Dinant além do incrédulo Baruch Spinoza. Mesmo os escolásticos tidos em conta de 'Ortodoxos' a exemplo dos padres da Igreja (Origenes, Gregório Nisseno, etc) - Os quais floresceram antes do protestantismo ou da escravidão bíblico/fundamentalista - levantaram e discutiram exaustivamente tais questões sem que fossem ameaçados por anatemas ou palavras amargas.

Então começarei levantando a problemática do 'conceito tradicional' de Deus e levando-a até as origens.

Chega a ser obviedade a primeira pergunta a ser feita: É a doutrina da transcendência e simplicidade absoluta de Deus de origem Cristã ou esta de acordo com os pressupostos fundamentais do Cristianismo?

Neste terreno diversos equívocos tem sido cometidos pelos expositores. O primeiro deles, e o mais tendencioso, tem sido atribuir aos antigos hebreus - que eram henoteistas - o monoteísmo (o qual remonta aos primeiros pensadores gregos, senão a Akhenaton, faraó egípcio) quando sua 'obra prima' é a doutrina da transcendência, simplicidade e espiritualidade de Deus, formulada alguns séculos antes desta nossa Era.

Por sinal cuidam os hebreus que apenas o Dogma Cristão da Encarnação suscite dificuldades face ao conceito tradicional de Deus por eles formulado. Importa saber que a doutrina da Criação não suscita menos dificuldades já quanto a simplicidade do ser já quanto a imutabilidade volitiva. No frigir dos ovos para que Deus fosse absolutamente simples e imutável no sentido estrito da palavra deveria ter permanecido absolutamente inativo, abstendo-se de produzir qualquer coisa. Produção supõem no mínimo certa doze de dinamismo, e partindo-se da tão decantada simplicidade sensível alteração na ordem do Ser. Eis porque tendo em vista a existência do Universo material e da Encarnação repudiamos a simplicidade absoluta do Ser tanto a priori quanto a posteriori, afirmando riqueza em termos de complexidade e multiplicidade de aspectos na Unidade do Ser, a exemplo do mistério trinitariano. Deus é tão rico em sua essência quanto em sua personalidade.

Estamos afirmando que o universo é Deus ou a deidade?

De modo algum. Tudo quanto pretendemos dizer é que a sucessão dos universos materiais corresponde a um aspecto dinâmico inserido no próprio Ser divino ou a uma operação/atividade necessária e portanto eternamente realizada pelo Deus imutável. A matéria pré existe eternamente nele para que ele possa atuar eternamente sobre ela organizando-a e conduzindo incalculável multidão se mundos a posse de seu Ser que é a suprema felicidade e perfeição. Esta saga de sucessivas entidades livres que dele saem e retornam voluntariamente a ele constitui o fim último do universo e a concretização de sua vontade que é a partilha sua bem aventurança. Bem compreendido é um auto desafio e um plano engenhoso. O sentido mais profundo da existência.

Não, o universo material não é Deus, mas um aspecto passivo na divindade, logo algo divino. É um meio posto para que o espírito, ou aspeto ativo/operatório da divindade possa atuar imutavelmente pelos séculos.

É possível que tais cogitações surpreendam e até escandalizem os mais ingênuos e fielmente apegados a 'concepção tradicional' de Deus... Compreendo perfeitamente que judeus e muçulmanos sintam-se desconfortáveis, agora que Cristãos...

Afinal os judeus e muçulmanos tem buscado demonstrar que o mistério da Encarnação opõe-se a doutrina da transcendência e simplicidade absoluta do Ser divino. Admitida a doutrina da simplicidade, é necessário admitir, por uma questão de coerência, que o Dogma da Encarnação seria inviável. Não é o monoteísmo, de modo algum, que se opoẽ ao dogma da Encarnação, mas a opinião da transcendência absoluta.

Por outro lado os Cristãos mais atilados, desde Mar Thimoteos Bispo de Cesareia, levaram a crítica até o fenômeno da 'criação' ou do universo material e esta perspectiva é assaz interessante. Sobretudo se admitimos uma relação estável, constante e perpétua entre o Espírito divino e a matéria - enquanto meio necessário para sua atividade - compreendemos que a Encarnação, longe de representar uma alteração, mudança ou ruptura, representa, muito pelo contrário, uma continuidade e aprofundamento na mesma direção. Deus se aproxima do mundo material, assume-o e manifesta-se nele porque a matéria sempre esteve em contato com ele e ele - "Estava no mundo que foi feito por ele." e o qual amou, a ponto de entregar-se por ele.

Encarnou-se Deus no homem porque de certa forma e em certo sentido sempre este encarnado e em comunhão com a materialidade, produzindo, mantendo e coroando sucessivos mundos. Aproximou-se mais intimamente da matéria porque ela sempre esteve presente nele. Deus jamais foi um espirito puro e simples ou uma transcendência absoluta que num certo dia teve vontade de introduzir a matéria em si mesmo ou de fazer-se homem. Imutável não é Deus sujeito a arroubos ou imprevistos. Alias se é sumamente perfeito como não pode deixar de ser, sequer poderia Deus ser livre. Como veremos mais adiante a liberdade é via pela qual os seres feitos imperfeitos tem acesso a perfeição e não qualidade posta para um ser que já esta em posse da perfeição absoluta. Portanto ele jamais poderia deixar de escolher sempre o melhor ou o mais perfeito, tendo apenas uma única opção. Concluímos que ele jamais podería ser diferente do que é ou mais perfeito e que jamais poderia deixar de atuar sobre um meio material, organizando sucessivos universos, pois esta atividade dimana das fontes de seu Ser, é exigência de sua perfeição. Não podería ser solitário e descarnado, e perfeito. Antes sería um eterno Egoísta. Nem podería ser mutável e existir.

Assim a verdadeira doutrina sobre Deus cessa de ser romântica na medida em que ele cessa de ser imprevisível, caprichoso, arbitrário e antropomórfico; para tornar-se absolutamente previsível e monótono no acesso da razão. E no entanto este 'Deus ex machina' é também autor dos mais nobres sentimentos humanos e de um riquíssimo universo psicológico... podendo ser definido como Bondade, Compaixão, Justiça ou como um Ser ético, fonte de princípios e valores éticos, Legislador supremo, Pai amoroso... Sem com isto deixar de ser coerente, imutável, perfeito, etc

Constatamos por fim que o homem é a imagem e semelhança da deidade porque sendo espírito associado a um corpo físico em que se realiza, foi concebido pela mente que anima este nosso universo material ou pela Alma do mundo.



terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O rastro - Terror brasileiro que surpreende


Assista o trailer de "O Rastro", filme de terror nacional com Leandra Leal e Rafael Cardoso 

Não havia conseguido assistir ao filme Rastro no comecinho deste ano. Circunstância esta que deixou-me bastante chateado. Afinal ao menos para mim tratava-se dum evento bastante promissor.

Curiosamente não consigo me lembrar do que aconteceu...

A bem da verdade a decepção foi tão grande que acabei ficando sem assisti-lo. Ao menos até ontem, quando por absoluta falsa de opção lembrei-me dele.

A crítica já havia lido no começo do ano.

Que o brasileiro tenha preconceito contra o cinema brasileiro é público e notório.

A bem da verdade semelhante tipo de atitude até era compreensível, ao menos até os anos 90.

Glauber Rocha e Zé do Caixão era o quanto tínhamos e nenhum deles me entusiasma...

Nem sou um Policarpo quaresma para babar nos ovos de nossos empreendedores cinematográficos...

Vez por outra aparecia alguma coisa de relevante. Dercy Gonçalves e Marieta Severo foram exceções a regra, ignoro no entanto quem tenha dirigido tanto uma quanto outra.

Terror propriamente dito não tinhamos, mas nosso cinema era um terror.

Desde Central do Brasil(1998) temos progredido bastante, os preconceitos no entanto permanecem de pé.

Especialmente nos domínios da comédia o cinema brasileiro foi muito bem sucedido e feliz. O Palhaço (Shelton Mello), Não se preocupe, nada vai dar certo (Gregorio Duvivier), De pernas pro ar (Ingrid Guimarães), Podia ser pior (Fábio Porchat), Minha mãe é uma peça (Paulo Gustavo), A cilada.com (Bruno Mazzeo), E ai... comeu? são produções que nada ficam devendo as internacionais.

O terror no entanto não deslanchou, até que foi lançado "O Rastro", de modo geral, muito mal acolhido pela crítica 'rancorosa'.

A propósito do 'rancorosa' em nossas plagas já foi o crítico literário descrito como uma galinha que sendo incapaz de por ovos, só sabe ver defeitos nos ovos postos pelas companheiras.

Sejamos justos, de modo geral nossos críticos fazem jus a esta crítica.

E isto a ponto de, entre nós, a crítica ser encarada muito negativamente. O sujeito comeu algo que não lhe assentou bem no estomago ou brigou com a mulher, pronto,destila todo seu azedume num determinado artigo de crítica, bombardeando certo livro, filme ou composição musical. Erros e defeitos é tudo quanto vê este cidadão amargurado, enfezado mesmo...

Crítico tem medo de ser benfazejo.

E no entanto criticar não é apontar apenas equívocos, falhas e senões, mas... sobretudo e antes de tudo  identificar o quanto haja de bom , de belo e de verídico numa determinada obra e, consequentemente elogia, louvar e aplaudir aquele que a produziu. Não sendo assim temos uma crítica tão mutilada e incompleta quanto nosso modelo educacional, caracterizado mais por punições do que por recompensas, mais por censuras e reprimendas do que por elogios.

Penso que a crítica da arte deva ser mais positiva do que negativa e julgo que não tenha sido justa com Rafael Cardoso (excelente ator), Leandra Leal e grande elenco, em que mesmo o sensaborão Filipe Camargo soube representar seu papel com dignidade.

Quem disse que o Rastro não assusta só pode mesmo ser fã de O massacre da serra elétrica, Sexta feira treze, Premonição ou Jogos mortais com a decorrente efusão de sangue, e corpos despedaçados, o que qualquer um de nossos ancestrais anterior a 1789 encararia como banal. O Cel Carlos Brilhante Ustra, soube ser bem mais sádico e violento do que Hannibal Lecter, Jason ou Freddy Krueger, sem ser personagem de ficção... Houve e dá um terror real no Brasil mas não nos assusta. Apenas lobisomens, vampiros, diabos, demônios e possessos, assustam-nos. É cultural...

Claro que há, no Rastro, algo de sobrenatural ou que beira a sobrenaturalidade, mas é, como deve ser, discreto. Talvez mediunidade e certamente assombração, mas sem muita apelação. Quer encontrar o Sétimo passageiro, seu filme é alien, não 'O rastro'.

A par do sobrenatural discreto a temática de 'O rastro' engloba corrupção, repressão policial, mafia e muito mais. Conectado com a vida vivida ou com a realidade 'O rastro' torna-se verdadeiramente aterrorizante.

Terror precisa ser inteligente como o italiano, o espanhol, o francês, o inglês... sem jamais perder seu vínculo com a realidade. E assim fugir a banalidade de um 'Silent Hill' ou de 'O grito'. Parte da produção terrorífica Norte americana e japonesa, feita para o consumo das massas superficiais e impressionáveis. Com o rastro o terror brasileiro adquire a maturidade do terror europeu, façanha alcançada apenas pelo terror mexicano no final dos anos 60. (1968 "O livro de pedra" Marga Lopez)


sábado, 2 de dezembro de 2017

O humanismo de 'Assassinato no expresso do Oriente'

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Confesso que não sou fã de romances policiais.

De uma tia, já falecida, ouvi dizer que sua mãe obrigara-a a ler todas as obras de Aghata Christie para que se tornasse mais esperta, uma vez que era uma mocinha bastante ingênua.

Apesar disto, jamais lí qualquer livro de Doyle, Aghata ou Simenon; Sherlock Holmes, Poirot e Maigret não fazem parte de meu círculo de Amizades, sou mais um Dostoevsky, um Mika Watari, um Robert Graves ou um Gore Vidal e minha predileção é pelo romance histórico.

No entanto quanto os poucos romances policiais que li - li alguns de 'segunda classe' - consegui desvendar o mistério antes do final...

Neste fim de semana todavia fui convidado a assistir a mais recente obra de Branagh 'O assassinato no expresso do Oriente' e como nada me parece melhor, aproveitei a oportunidade e fui. Afinal, tendo nascido no ano seguinte, não poderia ter assistido a gravação homônima de Lumet (1974).

Nada direi sobre a trama em si, afinal não seria de bom tom, estragar o prazer de quem ainda não leu o livro ou assistiu o filme.

Limitar-me-ei a declarar que Branagh é daqueles bons e raros diretores que se mantém fiéis ao livro fonte, abstendo-se de deturpa-lo. Haja visto 'E o vento levou' de Mitchel alterado em 1939, 'O egípcio' de Mika alterado em 1954... Isto quanto aos filmes que assisti após ter lido as obras nas quais os diretores declaram terem se inspirado.

Branagh como disse prima pelo respeito as obras que declara gravar.

Neste caso por que assistir ao filme se já lemos o livro?

Porque ao ler o livro imaginamos enquanto que ao assistir a um filme qualquer, vemos e ouvimos, experimentando outros tipos de sensações.

Assim todo filme fiel é como que um livro 'encarnado' ou corporificado, o que reporta a uma outra dimensão, a dimensão dos sentidos.

Temos aqui um caso de assassinato, ocorrido no expresso, o qual reporta a um outro assassinato, este último marcadamente sádico e cruel.

Uma curiosidade. Quanto a este último assassinato Agatha Christie tomou por ponto de partida um drama da vida vivida - O sequestro e assassinato do filhinho do aviador Norte americano Ch Lindenbergh, o qual comocionou o mundo inteiro no comecinho dos anos trinta.

Uma vez que a composição de primeira classe achava-se fechada Poirot é levado a concluir que apenas um dos doze ocupantes daquela composição poderia ter cometido o crime em questão. Temos portanto doze suspeitos, um mais peculiar que o outro.

A sempre bela e deslumbrante Michelle Pffeifer como a socialite Norte Americana Caroline Hubbard.

O impecável Derek Jacobi como Ed Masterman, o mordomo.

Willem Dafoe como um professor nazista.

As divas Daisy Ridley e Lucy Boynton.A fantástica Judi Dench encarna com perfeição a princesa Natalia Dragomiroff. Por fim a Johnny Depp coube representar o finado sr Ratchett

Portanto, como se vê, temos aqui uma constelação de astros e estrelas, um elenco tarimbado.

Detalhe curioso é a diversidade de nacionalidades, raças e até mesmo de classes sociais incluída nesta primeira classe cujo destino final é Calais. A tensão nacionalista, racial e classista é marcante durante boa parte do filme.

Afinal temos ali um médico negro de origem norte americana e um hispânico muito bem sucedido em seus negócios...

Temos governantas, nobres, secretários, policiais e até mesmo uma freira...

Cenário ideal para que os conflitos aconteçam e multipliquem-se.

E é claro, cenário em que todos se tornam suspeitos em potencial.

Penso que a maioria dos amigos vão adorar acompanhar Poirot em suas conclusões... passo a passo... até o fim.

Bouc principiara dizendo, logo no começo do filme, que numa viagem de trem pessoas que jamais se viram ou verão novamente tem uma única coisa em comum, seu destino... Tudo nesta trama tenderá a demonstrar o contrário...

Importa saber que no fim e por fim o 'criminoso' (Mas será 'o' criminoso mesmo???) é descoberto...

Nem poderiam as coisas darem-se doutro modo estando ali, no 'Expresso do Oriente' o maior detetive do mundo, Hercule Poirot... Dandi ou janota belga cuja perspicácia jamais falha.

Aqui um dilema - Poirot, em tese ao menos, deve entregar tal pessoa a polícia, ou melhor dizendo, a forca. Conclui no entanto não estar diante de um criminoso vulgar, o qual, por assim dizer, mata por motivos banais ou pueris. Há por trás daquele pequeno drama uma drama bem maior...

Bem, o que se espera de uma senhora inglesa nascida ainda na Era vitoriana é que o sentido das formalidades legais predomine, e que o detetive, entregue o criminoso as autoridades, sem fazer qualquer caso da justiça, afinal, como tantos costumam repetir 'Lei e lei' ou ainda 'Dura lex sed lex'. Surpreendentemente é o que não acontece. Pois Poirot adotando um critério ético de justiça, mostra-se humano. Aqui, sem ser comunista ou anarquista, Agatha Christie mostra-se muito mais revolucionária...

Ao parar na derradeira estação foi a composição invadida por um desconhecido, o qual após ter assassinato, por motivos pecuniários sem dúvida, ao sr Harchett evadiu-se sem deixar pistas... Eis o que Poirot diz a polícia, a qual se dá por satisfeita...

Teria sido este o ocorrido??? Do contrário, que motivos teriam levado nosso homem a dize-lo???

Situações há em que a justiça se faz e é feita em cabines de trem, quartos de hotel ou aposentos de uma residência, não nas cortes judiciárias... Situações há em que devemos compreende-lo - como Hercule Poirot compreendeu-o.

Há nisto excelência, elevação e humanidade.