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domingo, 11 de dezembro de 2016

O profundo sentido histórico do livro 'A vida imortal de Henrietta Lacks'





Livros há de vária lavra...

Livros que ensinam e que estimulam a imaginação.

Livros que educam e formam.

Livros que prendem e arrebatam.

Livros que fascinam enfim. ]

E que fascinando despertam o desejo de serem relidos.

Quero registrar e sem contemplação, que tudo isto pode ser dito a respeito do livro 'A vida imortal de Henrietta Lacks' escrito pela bióloga norte americana Rebecca Skloot. 

Após te-lo ganho de presente e começado a le-lo no mesmo dia (07) devorei suas quatrocentas e poucas páginas nos três dias seguintes e já cogito em rele-lo. É obra que pede releitura e reflexão pela amplitude e vastidão dos temas que aborda.

Como não desejo fornecer maiores detalhes sobre tão fascinante história e assim privar o amigo leitor de descobri-los por si mesmo e de por assim dizer encantar-se limitar-me-ei a fornecer-lhe alguns traços gerais, dizendo do que a obra trata ou quais sejam seus enfoques, sem no entanto revelar os detalhes desta narrativa precipuamente humana em que a vida imita a arte.

A tônica do livro, como o próprio título faz supor, gira em torno de uma simples Dna de casa, Sra Henrietta Lacks, esposa, mãe de família, negra e pobre.

No auge da juventude e florescendo para uma beleza exuberante é a sra Lacks tragicamente ferida por um mal que ao tempo de nossos ancestrais era classificado como 'mal maligno' e a respeito do qual pouco ou nada se falava. Alguns se lhe referiam como a 'aquilo' ou 'aquela doença' supondo inclusive que fosse um castigo enviado por deus...

E fico aqui pensando que se o bom Deus punisse seus desafetos com câncer já não seria ele mesmo o diabo...

Mas tornemos a sra Lacks.

É 1951... Os tratamentos são promissores e acenam-lhe com a cura. No entanto a moléstia toma outros rumos e a pobre mulher é levada ao paroxismo da dor... Até hoje o câncer tem destas e basta dizer que em determinado momento a morfina não faz mais efeito e aspirasse pela morte, tal o caso de S Freud e de tantos outros. E quem ainda pode gritar - foi um caso sabido por nós - segue gritando ou berrando até esgotar-se e morrer...

Entrementes a equipe médica responsável por seu tratamento, segundo o costume do tempo, extrai algumas amostras de seus tecidos - mais precisamente do colo do útero (das células cancerígenas) - os quais são logo entregues a um laboratório para serem cultivados.

Pouco tempo depois a jovem mulher vem a falecer deixando marido e cinco filhos, um adolescente e quatro pequenos. Suas células no entanto após terem sido cultivadas com sucesso continuam a multiplicar-se até atingirem e ultrapassarem o volume de seu próprio corpo vivo! Pelo que a sra Lacks em certo sentido ou ao menos parte dela, continua viva e por mais tempo do que lhe foi dado viver naturalmente!!!

Este no entanto é o menor dos problemas, uma vez que sua família de nada sabia e fora mantida na ignorância por quase vinte e cinco anos.

E enquanto a família Lacks era mantida na ignorância as células de sua matriarca eram utilizadas em diversos tipos de experiências com o objetivo de encontrar a cura de diversas moléstias, inclusive daquela que a vitimara, o câncer. Além disto foram suas células enviadas ao espaço, expostas a contaminação atômica, mescladas com células de origem vegetal, etc O que por sinal vai pelo caminho do bizarro.

Seja como for boa parte dos avanços efetuados no campo da genética, da oncologia, da AIDS e de outros tantos setores da pesquisa médica devem-se as pesquisas feitas com as células da sra Lacks.

Diante de tudo isto deveríamos supor que tanto ela - se viva - quanto seus filhos deveriam sentir imenso orgulho de tudo isto...

No entanto como já dissemos os Lacks além de não terem sido informados a respeito de tudo quanto estava sendo feito com as células de Henrietta são pessoas de origem humilde e que sequer possuem acesso a um serviço de saúde satisfatório.

Por outro lado, embora o entusiasta Dr Gey tenha cultivado as células de Henrietta sem auferir quaisquer lucros e enviado tais células graciosamente a diversos laboratórios e pesquisadores não é menos certo que parte destes laboratórios e pesquisadores passaram a cultivar tais células e tecidos em larga escala e com fins meramente comerciais obtendo lucros astronômicos, que orçam a casa dos milhões. Em suma a partir das células de uma negra pobre formou-se uma indústria...

Claro que se trata de um produto do engenho deles, o qual no entanto, tem por matéria prima, as células tomadas a sra Lacks e obtidas sem seu consentimento.

Basta dizer que tais células haviam sido batizadas como HeLa e que graças a este artifício, a doadora sequer pode obter o que cognominamos como simples reconhecimento ou gratidão. Ficando obscuro e ignorado o nome da sra Henrietta Lacks o que por si só já nos parece alarmante.

O livro segue por este caminho descrevendo o impacto causado nos diversos membros da família Lacks após terem tomado ciência de tudo isto em meados dos anos 70.

Como já dissemos parte dos descendentes de Henrietta - por ocasião de sua morte - não passavam de crianças, as quais pouco ou nenhum contato haviam tido com a mãe e que desde então teriam de enfrentar percalços bastante difíceis em suas vidas. Eles já haviam sofrido a perda dessa mãe e seus carinhos mas ainda haveriam de passar por situações de sadismo criadas por uma madrasta rancorosa e de conhecer a privação, a violência, o assédio, etc  passando por um autêntico calvário!

Até que num 'belo' dia são informados de que sua mãe vive (!!!) ou melhor de que as células dela são cultivadas aos zilhões em laboratórios de todo mundo (inclusive de que foram levadas a lua, explodidas, hibridizadas, etc), de que seu patrimônio genético foi responsável por uma verdadeira revolução científica e enfim de que tudo isto implicava lucros em termos multimilionários... Mas não para eles, os Lacks, filhos daquela a que fora tomada a matéria prima em questão, os quais achavam-se completamente desassistidos tendo dificuldade até para obter os medicamentos mais baratos.

Evidentemente que se trata duma situação bizarra!

Agora imaginem o estado de espírito dos Lacks???

Assim enquanto alguns dentre eles insistirão antes de tudo quanto o aspecto financeiro do problema outros, como a filha Deborah, tocarão ainda no mais fundo da ferida que é o absoluto silêncio ou mutismo em torno do nome da mãe, até então uma 'ilustre desconhecida'. Tudo quanto esta filha dedicada e ser humano exemplar buscará deste então será o reconhecimento público para com a memória de sua querida progenitora e nesta verdadeira cruzada por ela empenhada gastará todas as suas energias físicas e mentais empenhando a saúde e a própria vida. Tudo por um ideal de maternidade, filiação e saudade!

Deste então multiplicam-se as situações humanas, do modo mais patético, em que temos uma mulher humilde e simples, forcejando por deslindar os mais complexos mecanismos da ciência contemporânea - quase sempre inacessíveis mesmo ao público leigo medianamente instruído - e por compreender o que de fato foi feito com as células de sua mãe. Impulsionada pelo imenso carinho que dedicava a sua falecida mãe, Deborah se esforçara para assimilar o máximo possível em termos de conhecimentos científicos. E digo que nisto há grandeza infinita e sublimidade!

É aqui que as situações revestem-se dum aspecto em que a vida imita a arte... Os diálogos e cenas bem poderiam ter sido imaginadas, criadas ou inventadas pela sra Skloot. São no entanto tomadas a vida real pois no imaginário dos Lakcs as fronteiras entre a ciência e ficção estão muito mal colocadas e eles são pessoas simples ou gente do povo. Então imagine o que se lhes vem a cabeça após o lançamento do Filme 'Parque dos dinossauros'...

A par disto o livro aborda outros dois assuntos bastante atuais e interessantíssimos.

As relações raciais então existentes entre brancos e negros naquele país com seus coletivos, banheiros, enfermarias, etc classificados por 'cor' ou raça segundo os cânones vigentes do segregacionismo. Um aspecto pouco abordado noutras publicações e aqui ao menos de passagem levantado é o uso de cobaias humanas, especialmente negras, nas pesquisas científicas realizadas por diversos clínicos, em hospitais conceituados inclusive, do que resultou, a construção de um imaginário popular de que faziam parte sequestros e raptos noturnos e certa resistência, por parte dos negros, de recorres aos préstimos da medicina. Pelo que não poucos dentre eles preferiam morrer e definhar em suas casas!

Curiosamente ao ler estas passagens recordei-me de um clássico do cine trash: 'Estranhas mutações'.

Penso que a leitura destas partes do livro possam servir de preâmbulo a leitura de Myrdal sobre o racismo nos Estados Unidos.

Também ocorreu-me uma outra obra não menos fascinante que li a mais de vinte anos e de que jamais esqueci. Refiro-me a 'Enterrem meu coração na curva do rio' de Dee Brown (transformado em filme 2007), obra clássica sobre as relações entre índios e brancos no decorrer do século XIX ou seja nos tempos do Faroeste.

Julgo por sinal que a 'Vida imortal de Henrietta Lacks' não tarde a ser filmada vindo a somar-se com o grande clássico 'Negras raízes' obra em que Alex Hailey buscou resgatar a figura de seu ancestral Kunta Kinté...

Rebecca Skloot, G Myrdal, Alex Hailey
e Dee Brown perfazem roteiro de leitura bastante fecundo para os que aspiram compreender a realidade e as contradições existentes na sociedade norte americana.

O outro aspecto, quiçá mais profundo e mais atual, diz respeito a Ética e ao direito que os pacientes teem sobre a destinação dos materiais que deles são extraídos pelos médicos nos hospitais e posteriormente empregados como matéria médica nas pesquisas.

O assunto é relevante se considerarmos ou levarmos em conta fatores como a consciência, a liberdade, o bem, o sentido da justiça, etc enfim tudo quanto faz parte da condição humana ou do status peculiar ao ser racional.

Em tempos em que com toda propriedade nos preocupamos com os abusos a que são submetidos nossos irmãos irracionais em nome do simples antropocentrismo ou de um pressuposto espírito científico sempre irredutível (cientificista) a considerações de ordem Ética, não há como fugir a questão como livre consentimento ou da clareza em termos de seres humanos.

O mínimo que se pode dizer aqui é que as pessoas tem o direito líquido e certo de saber o que será feito com seu material pelos cientistas. Concordo em parte com o argumento segundo o qual as pessoas deveriam ceder este material tendo em vista a devolutiva que é o progresso científico do qual elas mesmas haverão de usufruir... Concordo em parte apenas porque o argumento é fraco. Fraco porque supõem um sistema ideal em que todos os doadores teriam acesso aos frutos do progresso médico e científico. O que efetivamente não se dá.

É aqui que entra a realidade e a mediação de um Mercado financeiro e justamente aqui que o exemplo da família Lacks torna-se eloquente. Todos supostamente, inclusive os mais pobres e humildes deveriam ser dóceis e permitir que seus tecidos fossem coletados e manipulados. Acontece que a posteriori esta medicina ou seus resultados adquire um valor econômico que os mais pobres e humildes não podem custear ficando seus resultados restritos a camada mais bem situada da população. E quase todo tão acalentado resultado das pesquisas reverte em benefício de uma classe apenas com exclusão dos demais doadores... O que não parece contemplar nem de longe as exigências da justiça.

Se ao menos os que assentissem em doar fossem contemplados com 'planos de saúde' ou com convênios médicos... Seria buscar-se por uma possível saída. Agora exigir que todos doem gentilmente enquanto apenas alguns auferem os resultados concretos por poderem pagar e os próprios cientistas e pesquisadores disto façam um meio de vida é no mínimo bizarro.

Para além da questão financeira, que para alguns é premente e deve ser considerada, para outros tantos - e me enquadro eu mesmo neste grupo - existe a questão sobre o tipo de pesquisas que serão realizadas com o material coletado. Pois nem todas as pesquisas tem por objetivo a medicina ou a terapêutica de determinadas moléstias. Pesquisas há de todo tipo e gênero algumas inclusive relacionadas com armas químicas e biológicas, com técnicas de guerra, aborto, etc Como me oponho marcadamente a todo este tipo de coisas julgo assistir-me o direito de que minhas células não sejam objeto de tais pesquisas... E caso seja impossível estabelecer semelhante distinção na prática, então julgo assistir-me o direito de não doar ou de ceder qualquer material. Pois não desejo nem quero que meu material ou parte de mim, sem meu livre consentimento, seja manipulado por uma cultura de morte cujo propósito é aniquilar ou danificar vidas humanas.

Ciência jamais produziu consciência. Foi o que disse Sócrates há quase vinte e cinco séculos e repetiu Schweitzer há menos de cem anos.

Há uma ciência empenhada em favor da vida, em que pese suas relações nem sempre dignas com o Mercado. E uma ciência que não esta empenhada em favor da vida ou que não reconhece a vida como valor supremo. Esta ciência não poucas vezes se tem colocado a serviço da morte e da opressão, no nazismo evidentemente, mas também fora dele!!!

É todo um mundo novo e inexplorado a respeito do qual ainda há muito que se discutir.

Quero por fim, ao encerrar este artigo já extenso, registrando algo sobre o sentido e relacionando o livro de Mrs Skloot com a História ou a Historiografia uma vez que seu livro não é obra de ficção mas fragmento tomado a vida vivida.

Durante séculos a História limitou-se a perpetuar a memória dos governantes, digo dos ricos, poderosos, afamados e de tudo quanto estava relacionado com eles. Ignorando o homem do povo, o servo, o trabalhador, o camponês, enfim toda gente simples como jamais tivesse caminhado pela face da terra ou existido.

Foi toda uma escola ou corrente positivista que sobrepôs o político ao humano. Mas o político é parte e não todo. Assim o registro da História precisa voltar-se para todas as categorias humanas numa perspectiva global.

Precisamos construir uma História humanista ou total que considere além do diplomata, do politico, do líder, do burguês também o homem simples ou do povo com seu imaginário, suas crenças, gostos, princípios e valores. É História que precisa ser escrita tendo em vista subministrar conteúdos a uma reflexão mais profunda em termos de Ética.

Por mais que amemos como amamos o conhecimento histórico e pesquisa metódica devemos considerar que a História não é o fim de tudo e que não esgota o potencial reflexivo do Homo Sapiens. Há um estádio a frente e creio que corresponde ao terreno da Ética. A História é caminho necessário ou passagem para uma reflexão mais ampla e consequentemente para uma vida Ética e nisto se concentra todo seu valor.

Portanto se nos perguntassem: Para que serve a História? Deveríamos responder sem hesitação - Para nos ensinar a viver e conviver!

Se pesquisamos e escrevemos, e registramos apenas para saber, conhecer, informar, citar e brilhar quão miserável é nossa tarefa. Miserável, supérflua e dispensável.

Tal no entanto não é nossa perspectiva, assim conectamos a História e a vida e sustentamos que seu objetivo é ensinar-nos a viver.

A tarefa dos novos Historiadores será situar a pessoa humana, especialmente os exemplares sempre excluídos, bestializados, oprimidos, esquecidos, vencidos, etc em primeiro lugar. Inverter o esquema positivista de ponta cabeça e forjar uma História de tipos humanos populares, a semelhança da Dna de casa e mãe se família Henrietta Lacks, será a missão de nossos sucessores. Congratulações a bióloga Rebecca Skloot que soube neste rasgo de genialidade, fazer mais pela ciência histórica do que muitos historiadores!

Leiam, leiam e leiam e se gostarem releiam a Vida imortal de Henrietta Lacks e sobretudo reflitam eticamente sobre os problemas ali colocados e que dizem respeito a cada um de nós.