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quinta-feira, 5 de outubro de 2017
Viajando pela cultura com Robert Musil
"Segundo tradições de um passado remoto, foi o século XVI período de intensa fermentação espiritual e momento em que, o home, renunciando deslindar os segredos mais profundos da natureza, segundo o hábito dos séculos e os usos da religião e da metafísica, passou a contentar-se com a superficialidade dos fenômenos... O trânsito que o homem realizou fora da aventura metafísica para a simples observação e descrição dos fenômenos arrastou consigo uma multidão delirante. Se me perguntares como a humanidade pode transformar-se de um tal modo e maneira te responderei que comportou-se como um menino precoce que tentou andar demasiado cedo e que consequentemente levou um tombo e caiu com glúteo estatelado no chão...
E ali vão surgindo uma certa falta de escrúpulos e de inibição, o valor, o prazer, tanto de destruir como de agredir, a exclusão de toda e qualquer cogitação moral, o mercantilismo paciente até os menores benefícios... o culto supersticioso do número, da medida, da massa; associado a um desconforto mórbido face a mínima imprecisão. Assim os antigos vícios ou traços comuns a caçadores, soldados e comerciantes passaram o domínio intelectual transfigurados em virtudes. Indubitavelmente estes vícios foram desassociados quanto a busca de um proveito imediato, individual e grosseiro; e sem embargo disto o mal original, como poderíamos chama-lo, sobrevive a esta transformação mantendo-se indestrutível e eterno, ao menos tão eterno quanto certos ideais ou tendências humanas...
Temos que salientar ainda e sobretudo esta singular predileção do pensamento científico para com as explicações mecânicas e materiais, das quais se diz terem arrancado o coração. Não ver nos atos de bondade coisa alguma além de egoísmo calculado, referir-se aos sentimentos ou pensamentos como secreções glandulares, declarar que o homem nada é além de alguns elementos químicos em água a dez porcento, reduzir todos os atos humanos 'livres' a um conjunto de reflexos, reduzir a beleza a uma boa digestão e as excelentes condições do tecido adiposo, reduzir a procriação e o suicídio a umas tabelas com curvas anuais... tais ideias parecem revelar, de certo modo, essa ginástica mental ou mistificação a partir da qual determinados preconceitos, crenças ou ideologias são vendidas como científicas ou enquanto frutos da experiência em termos de objetividade..." in Der Mann ohne Eigenschaften 1956 (O homem sem qualidades)
Ps Evitamos reproduzir aqui as críticas injustas, abusivas e destemperadas que Musil - da mesma maneira que Max Lerner - endereça a própria ciência, das quais evidentemente não comungamos. Já quanto a sua ampla, profunda e sistemática crítica ao cientificismo, ao positivismo e ao materialismo - Mormente quando introduzidos nas ciências humanas e mais especialmente ainda nos campos da Psicologia e da Sociologia - só podemos reproduzi-la e classifica-la como atual, magistral e insuperável enquanto diagnóstico preciso de uma mutilação arbitrária ou melhor de uma profanação, a que o fenômeno humano tem sido submetido desde os idos do século XVIII.
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