Já foi dito que o que Paulo fez pelo Cristianismo, separando, por assim dizer, essa pequena seita ou ramo do judaísmo e inserindo-o entre as sociedades pagãs, Lênin teria feito pelo marxismo, extraindo-o dos escritos herméticos de K Marx e conferindo-lhes vida própria.
Até certo ponto uma e outra afirmação correspondem a verdade, e paulinismo esta para Cristianismo como leninismo ou bolchevismo esta para Marxismo ou Comunismo. Avanço ainda mais, da mesma maneira como Paulo - pupilo de Gamaliel - falseou a Ética Cristã, Lênin falsificou certos conceitos marxistas como 'Ditadura do proletariado' (cf nosso artigo precedente sobre Rosa Luxemburgo) e 'Revolução'. Sob estes dois aspectos ao menos foi renegado, apóstata, traidor, revisionista... e hipócrita por ter atribuído tais defeitos da Kaustky.
Não é preciso ser um R Nisbet da vida para constatar que Marx vincula a ação individual a oportunidade oferecida pelo processo histórico, concebido em termos materialistas e economicistas. Deve o proletariado consciente acompanhar de perto o desenrolar da História para atuar apenas quando for possível i é no tempo certo. É dever da vanguarda socialista atuar em comunhão com a História para que a revolução seja bem sucedida.
O que implica acompanhar a implantação, o desenvolvimento e o declínio do sistema capitalista numa dada sociedade. Tendo em vista certos defeitos inerentes a sua estrutura o capitalismo devastará as classes médias e proletarizará a sociedade. O proletariado a seu tempo, tirando proveito deste processo e sabendo-se maioria, tomará o poder para si. Disto resultando a ditadura do proletariado. O proletariado servindo-se do poder político alterará radicalmente o regime de propriedade, socializado os meios de produção. Alterada esta relação desparecerá o que chamamos de sociedade classista e com ela o conflito. E como o conflito é o motor da História, chegamos ao fim do estado e do período socialista, para atingir ao que chamam de fase Comunista...
Tal o fim último da Revolução, da qual a ditadura do proletariado de faz meio.
Uma coisa porém é absolutamente certa. Antes da sonhada revolução o capitalismo deve gastar todas as suas forças e desenvolver-se plenamente, pelo simples fato de que a Revolução será - ao menos em parte - o produto final deste desenvolvimento. Ao desenvolver-se o Capitalismo produzirá a expansão da classe operária e da expansão desta classe advirá seu triunfo.
Antes que este ciclo se cumpra a Revolução fica sendo sempre impossível.
Por isso ela deveria acontecer ou ter acontecido, forçosamente, na Inglaterra ou na Alemanha, na medida em que o capitalismo daqueles países havia percorrido o roteiro traçado por Marx enquanto ele ainda vivia e isto a ponto de chamar-lhe a atenção as vésperas da morte. De alguma maneira Marx deve ter intuído o que foi constatado já por Lênin, já por Henri de Man, no século seguinte - Que a atividade político/parlamentar e o sindicalismo tinham o condão, de por meio de reformas, conter o máximo desenvolvimento do capitalismo e portanto de protelar a sonhada Revolução.
De fato os marxistas ortodoxos estão convencidos de que todas as sociedades humanas devam passar pelo mesmo processo. Assim as que se encontram sob qualquer forma primitiva ou pré capitalista, devem forçosamente adotar o modelo capitalista para, ao fim do processo de desagregação do capitalismo chegar a Revolução socialista e, após a ditadura do proletariado, atingir o paraíso comunista. Foi por uma questão de coerência que Marx aplaudiu de pé a conquista da Índia pelo Império Britânico, pois considerava um bem que a tradicional sociedade indiana fosse suplantada pelo modelo capitalista trazido do Ocidente, de modo a ulteriormente atingir o Comunismo... Os nayrodniya no entanto ousaram perguntar a seus apóstolos do porque seria necessário passar pelo inferno capitalista para chegar ao paraíso comunista?
Os comunistas limitaram-se a classifica-los como retrógrados ou reacionários. Enquanto eles redarguiam dizendo que já estavam em posse do socialismo...
Quanto ao Ocidente no entanto a questão era bem outra. Pois o capitalismo já se havia manifestado e desenvolvido. Diante disto, o que parte dos socialistas queria era paralisa-lo, conte-lo, enjaula-lo, limita-lo... ao invés de permitir que continuasse a desenvolver-se livremente no sentido previamente descrito por Marx. Conceberam portanto uma série de reformas politicas com o objetivo de travar a marcha do capitalismo e de manter a sociedade no nível em que se achava. Outros cogitavam em faze-lo retroceder, igualmente por meio de reformas políticas... Uma e outra solução receberam o nome de reformismo ou de socialismo reformista, em oposição ao socialismo revolucionário ou comunista. Os reformistas, chamados também - pelos marxistas - de socialistas pequeno burgueses despertaram a fúria dos marxistas ortodoxos, que encaravam o máximo desenvolvimento do capitalismo como uma necessidade. Afinal, sem ele, não haveria proletarização, revolução e paraíso comunista.
Cumpre dizer ainda que a social democracia jamais pode furtar-se a este 'desígnio ímpio' de regular o trabalho - até então livre ou ditado pelo 'laissez faire' - por meio de leis e de consequentemente melhorar a condição dos proletários, a qual tornou-se de fato suportável, quando não - ao menos por algum tempo - confortável, o que não podia deixar de atuar sob a marcha do capitalismo, retardando-a ou imprimindo-lhe outro sentido. Afinal ao invés minguar, em certas situações, a classe média - sempre identificada com a pequena burguesia - acabou expandindo-se, ficando o número de descontentes minoritário. Na medida em que o capitalismo foi sendo contido ou limitado - o que nos faz duvidar quanto a continuar sendo capitalismo! - mais e mais trabalhadores foram sendo absorvidos por ele, num movimento contrário ao que fora descrito por Marx. Mesmo o capitalismo não pode furtar-se a pressão feita pelas massas e a ação política dos reformistas tendo de adaptar-se a novas realidades para sobreviver...
Os marxistas ortodoxos perceberam-no de imediato e concluíram que o reformismo, limitando o Capitalismo, conferia-lhe vida e resistência. O reformismo foi que impediu o capitalismo de desagregar-se e perecer, frustrando os vaticínios de Marx. A social democracia, mesmo quando protestava não ser reformista, foi que tornou a Revolução inviável ou desnecessária, ao menos por algum tempo. Pois segundo Engels após suportar limitação após limitação, a burguesia ameaçada acabaria por violar as regras do jogo recorrendo ao que chamamos de golpe. Neste momento os socialistas, recorrendo a 'violência defensiva' passariam do exercício (Leon Blum) a posse do poder. No entanto, ao menos na América latina, os golpes de estado promovidos pela burguesia ameaçada, nem sempre suscitaram a merecida reação...
Lênin, por uma questão de lógica, não via diferenças muito significativas entre o reformismo e a social democracia. Tendo chegado a inferências bastante parecidas com as que acabamos de expor. Todavia, ao contrário dos mencheviques fiéis, como Martov, Plekanov e Axelrod, ele não estava nem um pouco disposto a aguardar pelo máximo desenvolvimento do capitalismo russo. Haja visto que os servos haviam sido emancipados em 1861 e que em 1905 ou 1914 o capitalismo russo ainda se achava num estado incipiente. Era a Rússia de Lênin uma sociedade majoritariamente agrária ou rural e Lênin, como Marx sabia que não era possível esperar qualquer Revolução de uma sociedade agrária e por definição tradicional.
Sendo assim Lênin teve de fazer algumas acomodações, repudiando o materialismo economicista do Mestre e opinando que não era necessário esperar pelo máximo desenvolvimento do capitalismo russo - processo que demandaria mais de um século. Era perfeitamente possível fazer a Revolução na Rússia agrária de então... Perceba o amigo leitor que o esquema ou roteiro de Marx não foi respeitado. Lênin de fato, acreditava ou fingia crer, na possibilidade de furtar-se ao processo Histórico e de alguns homens adiantarem os tempos ou a hora da Revolução. Passando as vistas por alto parece uma aposta inocente... Mas implica admitir uma solução idealista e mesmo romântica em termos de História. Na medida em que se admite que o homem prescinda da oportunidade oferecida pelo processo para ser bem sucedido. O homem pode furtar-se ao processo ou atuar por si só, nada menos materialista ou mesmo realista.
Os 'odiosos' mencheviques expuseram detidamente os erros de Lênin, limitando-se ele a declarar que seus críticos não passavam de fariseus, escravizados pela letra ou pelas palavras de Marx, das quais se serviam contra a Revolução... Foi tudo quanto ele pode dizer na 'Doença infantil do Comunismo', onde acusava os radicais i é os que de fato mantinham-se fiéis ao pensamento Marxista. Efetivamente estes estavam dispostos a permitir que o capitalismo russo se desenvolve-se sob a égide de uma democracia formal, e mesmo dispostos a colaborar com semelhante padrão de Sociedade, por estarem convencidos de que ao cabo de sua evolução ela viria a baixo ou desmoronaria, criando as condições necessárias a Revolução. Para eles esperar a ação das forças econômicas era absolutamente necessário, pois tal e qual Marx eram etapistas ou gradualistas. Lênin aspirava pelo poder e por isso não queria esperar, por crer que o poder era a Revolução ou que poderia substituir a ação das forças econômicas. Posteriormente, após o colapso da URSS, em 1990, os comunistas ortodoxos declararam que a Revolução não dera certo justamente porque furtara-se ao esquema estabelecido por Marx... tornando necessárias uma série de emendas ou adaptações, sem que qualquer uma delas pudesse salvar a obra de Lênin.
Para sermos justos temos que concordar com aqueles que viram na Revolução russa um aborto da natureza em termos de teoria marxista ou como um uma saída tão revisionista quanto o reformismo.
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