terça-feira, 17 de julho de 2018

Dialogando com G Sorel

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Em G Sorel desembocam diversas tradições ou correntes de pensamento, as vezes demasiado afastadas uma da outra. A ponto de Lênin classifica-lo como um pensador embrulhado ou como diríamos confuso. De fato, a impressão que temos ao lê-lo é que sobrepôs um amontoado de ideias sem se preocupar com a coerência e ainda aqui carrega o vezo de Nietzsche e do anarquismo. Era honesto, e apresentava-se como irracionalista, para ele a tônica da vida era o mito. Não a razão, alias, racionalismo, intelectualismo, institucionalismo, pacifismo; e tudo quando temos em conta de civilizado era para ele decadente; e aqui encontra-se com O Spengler.

Há nele uma forte influência Católica ou mesmo agostiniana, que apesar da esperança, faz com que tema um futuro sombrio. Como Rosa Luxemburgo ele não é imune a hipótese da barbárie. Há um forte conteúdo conservador tomado a De Bonald, De Maistre, Tocqueville e outros que lhe infunde um ódio insuperável a democracia burguesa ou meramente formal e ao capitalismo; enfim ao conjunto que costumeiramente chamamos liberalismo, para ele essencialmente corrupto. É um homem, que acima de tudo, abomina a forma democrática vigente. Sera sucessivamente conservador ou melhor reacionário e marxista heterodoxo, flertará com o integralismo da 'Ação francesa' - aproximando-se de Ch Maurras (outro pensador bastante rico quanto perigoso), até namorar com Mussolini e o fascismo jamais renunciando a seu ódio anti liberal. Há nele um conteúdo Marxista, mas heterodoxo, posto que repudia o materialismo dialético, pelo simples fato de conhecer o valor das ideias e o significado do determinismo mecanicista. E nem aqui se esgota, pois há também nele um conteúdo anarquista que o leva a forjar o 'mito' da greve geral e a dissertar sobre o emprego metódico da violência. Pelo conteúdo marcadamente Ético, encontra-se com P Kropotkin e opõem-se já a Maquiavel, já a seus cultores sejam Bakunin ou Lênin, Marx ou Engels.

Como se vê este homem é um caudal de 'varia doctrina'.

Ademais os títulos de suas obras são por si mesmos significativos - "O processo de Sócrates" onde defende a condenação de Sócrates pelo areópago. "As causas da dissolução do comunismo", "A decadência do mundo antigo" e finalmente as "Reflexões sobre a violência" que é seu 'Magnum opus'.

Também escreveu, em 1889, uma obra sobre a Bíblia em que manifestava certa predileção pelo Antigo Testamento devido a seu conteúdo 'heroico' ou seja a seu caráter violento. O próprio Nietzsche em algumas de suas passagens parece ter esboçado o mesmo tipo de sentimento a respeito da excelência do antigo testamento face ao Evangelho e Wulfilas, o primeiro Bispo dos alemães, já havia deduzido por esta similaridade entre os livros dos antigos judeus, especialmente Reis e Crônicas, e o caráter do primitivo povo alemão sob o paganismo.

Assim na 'Decadência' não poupa críticas aos antigos gregos - ou aos romanos helenizados - com seu ideal de civilização racional, político e jurídico ou institucional, que encara como decadente ou degenerado. Para ele, Sorel - e aqui temos de pensar em O Spengler e no Nazismo - as fases mais grandiosas da civilização correspondem justamente aos momentos de crise e tensão, nos quais predomina a violência. Assim o antigo israel, a Germânia ante Cristã, a baixa Idade Média... períodos em que ele enxerga a apoteose do heroísmo, na esteira de Carlyle. Aqui temos a expansão da energia criadora, ali uma contensão ou negação desta energia que equivale a um estado vegetativo ou comatoso.

Há portanto, entre nós ele, uma contradição marcante em torno do progresso - que ele com certa razão, em termos técnicos, encara como utópico ou mitológico (crítica que vale para os positivistas) - pois o que encaramos como o ápice da civilização ele encara como decadência e o que encaramos como crise e decadência, ele encara como apogeu. Com efeito, o ideal deste irracionalista não podia estar na Grécia Clássica ou na Roma dos Antoninos e a Roma que ele glorifica é certamente a Roma imperialista e expansionista da República, a Roma de Scipião Afer e Múmio, a Roma que venceu Cartago e devastou Corinto!
Já dissemos - Com Catão, este homem expulsaria Carnéades e seus companheiros de Roma e subscreveria o Édito de Domiciano, enviando Epicteto e demais filósofos ao exílio. E ele não disfarça seu ódio pelos intelectuais de gabinete, responsáveis por falsear a História.

Apesar deste lamentável exagero, que malbarata a paz e sua consequência, que é o progresso artístico, literário, religioso, científico... Sorel não deixa de ensinar-nos grande e perigosas verdades. Homem de inteligência acurada não deixa de antever que a par da violência física responsável pelo derramamento de sangue há outras formas de violência, e de uma violência dissimulada ou oculta, que trás em si um germe de morte! Refere-se destarte a nosso pacifismo não poucas vezes hipócrita - que oculta covardia e decadência! - e a maldade com que é a institucionalidade manipulada e oprime o homem. O que este homem genial soube captar foi a pior forma de abuso sob a qual tem caído nossas instituições - A jurisprudência e o parlamento - no sentido de (Em nome da paz e da segurança) exercerem uma opressão dissimulada e hipócrita. Face a qual as massas institucionalmente oprimidas ficam completamente indefesas. Assim o fórum, o parlamento e até mesmo o púlpito servindo a dominação econômica ou a plutocracia; sutilmente é claro...

Sem atingir as instituições, cremos nós, Sorel demonstrou que elas não são imunes a um abuso deplorável por parte de muitos, e que o discurso em torno da paz e da civilização, da racionalidade e da institucionalidade, pode comportar uma intencionalidade essencialmente má, ignominiosa... Podemos usar dos conceitos e formas de civilização para dominar, oprimir e explorar mais eficazmente. Portanto temos de, sem condenar as instituições ou a civilização em si mesma - caindo no extremo de Sorel, e chegando aos confins do Nazismo - examinar muito bem o discurso e compara-lo com a realidade. Já Freud dissera com razão que no futuro as pessoas avaliarão a civilização em termos de acesso a ela mesma i é em termos de acesso ao prazer, face aos sacrifícios empenhados. E se nos parece que um ideal de civilização restrito, em que umas poucas pessoas privilegiadas tenha acesso a maior parte dos bens enquanto os demais ficam a chupar os dedos não se manterá para sempre...

Os benefícios da civilização devem ser paulatinamente estendidos a maior parte de seus membros, de modo que ela valha a pena. Por isso como o velho Keynes temos de falar em qualidade de vida ou em bem estar, em justiça social ou no bem comum de Aristóteles. São discursos indispensáveis e metas que temos de buscar atingir. Do contrário a civilização, encarada como mero Slogan, não resistirá as críticas honestas de um Sorel ou aos ataques, nem sempre injustos de um Marx ou de um Engels, de um Tolstoi ou de um Kropotkin, ou até mesmo de um liberal como J S Mill.

Outro aspecto demasiado interessante, que Sorel tomou a Nietzsche, e que precisa ser aprofundado diz respeito a mística no pacifismo ou mesmo da não agressão, a qual sempre pode ocultar fragilidade e covardia, malbaratando-lhe todo valor. Os Católicos mais esclarecidos concordam que a opção pela paz ou pela não agressão só tem valor quando assumida por alguém que é capaz de agredir, de atacar, de exercer a violência, de lutar e de vencer; jamais quando assumida por fracos e covardes a guiza de disfarce, o que amiúde tem ocorrido no terreno do Cristianismo. Massas degeneradas afetando pacifismo.

O martírio de nossos ancestrais, os pioneiros da fé, só teve valor porque em qualquer tempo podiam renunciar livremente a sua fé ou a seus ideais, e salvar suas vidas. Podiam escapar, podiam lutar e vencer, como declara Tertuliano, mas preferiram morrer por e com seus ideais. Aqui a força das ideias ou como quer Sorel, do mito - que ele mesmo tenta restabelecer. Aqui a força mais poderosa, a força interior e espiritual, a força do caráter ou da personalidade, que leva de arrasto a força meramente física. Mais forte é aquele que podendo lutar, combater e vencer se deixa supliciar por uma ideia. Quem mais controlado, disciplinado e vitorioso do que este homem??? Por outro lado o simples ato de deixar-se matar sem poder escapar ou ter forças para lutar, como no caso dos Romanov, não tem valor algum. Só é martírio se existe a opção de salvar-se por meio da abjuração. É a liberdade que mede a força do martírio, o qual implica em sair da vida voluntariamente. Hora quem vence o amor pela vida é capaz de vencer qualquer coisa.

Há aqui, no verdadeiro martírio que mostra-se indiferente face a morte, o adversário mais temido pelo gênero humano, uma força ou um poder que nem Nietzsche nem Sorel puderam aquilatar devidamente. Como há valor no autêntico pacifismo assumido por quem sendo forte poderia lutar e defender-se. E como há valor na não agressão por parte de quem poderia atacar ou lutar. Por outro lado Sorel não deixa de ter razão quando se refere aos degenerados que sendo covardes ou fracos assumem um pacifismo oportunista. É uma situação real e o mínimo que cada um deveria fazer é examinar a si mesmo antes de afetar aparências e profanar o Evangelho. Se é fraco ou covarde que assuma sinceramente suas limitações... É o mínimo que se espera de um Cristão devoto.

Destarte não é o pacifismo um valor absoluto, mas algo que será avaliado a partir de certas condições ou circunstância. E tampouco é absoluto, como já dissemos, face as exigências da justiça. Por isso concordamos com Sorel no sentido de que haja uma violência necessária e desejável, quando posta a serviço da justiça ou da vida humana, que são valores de ordem superior. Apenas acrescentamos, por questão de prudência, a seguinte restrição: O recurso a violência defensiva ou ao que chamam revolução só deve ser aplicado após se esgotarem todos os demais recursos quais sejam: A ação parlamentar, a greve geral, a mobilização, os recursos judiciais, a desobediência civil... Aplicados e esgotados todos os recursos não só podemos como devemos recorrer a violência. Não a violência pela violência, mas tendo em vista um objetivo ético, como a concretização da justiça.

Justiça seja feita, Sorel também condena a violência pela violência e denunciou como absurdas as execuções feitas pelos jacobinos durante a grande Revolução. Como certamente, apoiando Kropotkin e Martov, condenaria o recurso a tortura por parte dos bolcheviques. Não apadrinha psicopatas, inda que seu discurso contenha um entusiasmo imoderado do qual não partilhamos. Pois não nutrimos maiores ilusões a respeito da tal Revolução violenta, não a encaramos como uma panacéia e menos ainda como o ápice da civilização. Com todos os abusos e defeitos que cremos, devam ser eliminados, nós preferimos o ideal grego de civilização. Com olhos críticos, ainda assim optamos pela institucionalidade e pelo modelo racionalista, afinal também a Revolução pode degenerar e a violência sair do controle, resultando em algo tão funesto e monstruoso quando foi o nazismo. Ademais a teocracia, seja protestante ou islâmica, reforça também ela a apologia da violência, escarnecendo do Evangelho e seu ideal de paz relativa ou não violência.

Diante de tudo quando escrevemos vale a pela ler as 'Reflexões' de Sorel, mas da maneira como ele mesmo desejaria que as lessemos ou seja criticamente. Certamente uma leitura crítica de sua obra lhe seria muito mais honrosa do que uma leitura religiosa, tipo de leitura que ele, com travo de amargura, atribuía aos leitores de Marx e Engels... Portanto dialoguemos com Sorel ao invés de concordarmos mecanicamente com ele. E boa leitura!

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