Entre o anarquismo e o comunismo há uma diferença significativa - alias há várias rsrsrsrs - no sentido de que este sempre se mostrou mais sistemático, orgânico e compreensível, desenvolvendo-se numa linha mais ou menos coerente. Marx e Engels, e especialmente este último, foram pensadores do mais alto quilate, ao menos no plano da economia (E sintetizadores no mínimo interessantes quanto no plano da Sociologia). Julgo que a nível de anarquismo apenas Kropotkin aproxime-se deles, apresentando um padrão de coerência e clareza que não encontramos num Proudhon ou num Bakunin.
Ademais, é notória e perceptível a influência venenosa da metafísica anti estatista francófona e do individualismo alemão mesmo sobre um teórico eslavo como Bakunin. Mesmo porque, segundo lemos em diversas publicações, as constatações de Bakunin não parecem ter partido de qualquer fonte russa ou eslava, mas de Proudhon e mesmo de Max Stirner, e os atuais anarquistas ou anarcóides, mesmo quando afetam socialismo, parecem não fugir a esta regra. Max Stirner parece estar nas bocas de muitos deles, o que nos conduziria a Bastiat, Rand, Rothbart e ao que chama de libertarianismo Norte Americano, e aqui já demos a volta ao parafuso, pois nos encontramos face ao adversário número um do socialismo ou da sociedade política.
Seja como for temos que Bakunin foi capaz de corrigir-se numa perspectiva cada vez mais social e de chegar ao velho conceito de democracia direta quiçá por influência da tradição Nairodinik ou populista da Rússia - forte pelos idos de 1860 - quiçá por ter tido contado com qualquer tradição Suíça relativa a democracia direta ou ao 'landsgemeine', conservada em alguns cantões Católicos. O fato é que Bakunin caso não tenha endossado, criou o que mais tarde veio a ser chamado anarquismo eslavo, de que Kropotkin foi o maior teórico. E devemos compreender que este anarquismo esta em oposição ao anarquismo de matriz francesa - derivado de mais de Voltaire do que de Rousseau - que desenvolvendo-se nos EUA e incorporando elementos de origem protestante ou alemã - via Max Stirner - deu origem ao já citado libertarianismo dos Ancap.
De um modo ou de outro os anarquistas jamais souberam manter um saudável equilíbrio em suas afirmações no sentido de apresentar - o mínimo que se esperaria deles - o capital tão opressor quanto o estado, e fazer guerra a ambos. Já em Bakunin, detectamos este discurso segundo o qual a opressão exercida pelo que chamam Estado é mais forte ou tirânica do que a exercida pelo capital ou pelo reino do dinheiro. Aqui a tese contrário, sustentada pelos marxistas, parece ser muito mais consistente e apoiada pelos fatos tomados a História.
Fato é que nossos anarquistas jamais romperam com este padrão de discurso, mais anti estatal do que anti capitalista e que ele só podia desembocar na tragédia Ancap - na qual o Estado continua sendo o vilão e o capital assume o papel de herói...
Queremos salientar antes de tudo qual o fim de tais discursos numa linha de coerência...
O anarquismo ocidental ou franco estado unidense, digamos assim, jamais negou Max Stirner, embora este - não Bakunin e menos Kropotkin - tenha negado, por primeira vez no curso da História, a Sociedade, a qual opõem a estranha noção de indivíduo isolado, quiçá tomada a J J Rousseau - que mais tarde afirmará a noção de contrato, em sua dimensão social - e que o Bakunin mais velho ou refletido, dirá ser tão falsa e inconsistente quanto a ideia de Deus (Bakunin era ateu virulento - a ponto de assustar Marx e Engels).
O anarquismo oriental, russo ou eslavo, quiçá devido, as mesmas fontes culturais que inspiraram a Nairodnaya, teve como ponto de inflexão, sua marcada consciência social, e a elaboração, como já mencionamos, pelo próprio Bakunin, de uma teoria de democracia direta bastante próxima da velha democracia grega - que girando em torno da cidade estado é municipalista - se bem que mais ampla por incluir mulheres e operários, e isto num tempo em que o sufrágio direto não passava de novidade. Isto é o que constatamos apesar das deficiências presentes no vocabulário anarquista, o qual pelas razões acima expostas, não é uniforme ou sistemático, mas sujeito a variações e o que é pior, a interpretações discordantes.
O que nos leva ao problema do significado.
Relativo ao que Bakunin e os militantes de seu tempo teriam querido dizer.
Teriam querido dizer o mesmo que Proudhon ou Stirner? Há quem sustente esta tese...
A pergunta é vital para nossos dias. Dias em que o anarquismo volta a carga ou melhor a propaganda e nos quais assume diversos discursos. Claro que nos Socialistas, que somos igualmente amigos da liberdade, queremos saber até que ponto um Stirner, um Bastiat ou uma Rand estão presentes nesse discurso, uma vez que estamos e queremos continuar distantes de um Mises, de um Fridman ou de um Hayek, com os quais parte considerável deles acaba conciliando-se nos termos finais, devido a ideia segundo a qual o capital é menos insidioso do que o estado e a dominação econômica mais leve do que a estatal.
No terreno de uma social democracia ou de uma inserção parlamentar, temos sempre de ter diante de nós as advertências de Engels, que na verdade remontam a F Lassalle e a 1860 no sentido de que nenhuma aliança ou pacto seja feito com os elementos da burguesia, ou de que levemos a cabo uma política honesta, noutras palavras éticas, sem que nossos princípios sejam sacrificados ou ideais negociados sob quaisquer alegações. Temos de adotar um padrão estrito de coerência ou, caso contrário, como Bakunin, chegaremos aos pés de Maquiavel, o ídolo da política burguesa, e isto será tido em conta de sinceridade, e até mesmo aplaudido...
A política deverá ser suja, e nós nos deveremos sujar ou poluir...
Importa que nós, socialistas honestos, não nos podemos aproximar dos que sustentam um estado mínimo. E de modo algum trabalhar junto com os que pretendem derrubar este estado 'burguês' para estabelecer uma ordem ainda mais burguesa sem a presença do estado. Os socialistas não obteriam vantagem alguma em destruir o estado político e manter a estrutura de produção capitalista, do que resultaria, creem eles uma tipo de opressão ainda mais duro.
Alias não há sequer acordo a respeito do que os anarquistas definem como Estado pelo simples fato de seu modo de se expressar ser confusionista ou inexato, favorecendo um discurso capcioso.
Tomemos o exemplo dos anarquistas brasileiros, daqueles que atuam entre nós no momento presente, i é, em 2018.
Antes de tudo constatamos, apavorados, quão poucos dentre eles estão familiarizados com os escritos de Bakunin e Kropotkin, os quais amiúde, são citados de segunda mão. Muito do que vemos nos círculos anarquistas brasileiros provém da tradição ocidental, franco estado unidense, o que confere um acento demasiado individualista as seus discursos, favorecendo não poucas vezes uma aproximação com minimalistas e Ancaps, aos quais eles, anarquistas, acreditam estar ligados pela mesma causa comum - O fim do estado ou da autoridade. Para qualquer socialista, que demanda antes de tudo por uma relativa igualdade econômica em torno de oportunidades, esta aproximação é inaceitável.
Basta dizer que em tais círculos a presença de Max Stirner não é incomum e a opinião subjacente entre eles - aqui o nó do problema - é que Bakunin e Kropotkin concordam com ele. Ora quem teve a oportunidade de ler um e outro, seja ou não anarquista, sabe que não há acordo e que os russos demandavam por algo muito mais amplo e profundo do que a mera destruição do que chamavam Estado. Afinal tanto Bakunin quanto Kropotkin, ao contrário do individualista alemão, não identificavam o ESTADO com a SOCIEDADE.
"La Sociedade es anterior al individuo y le sobrevive, como la naturaleza. La Sociedade es eterna, como la naturaleza, mas bien, nacida sobre la tierra durará tanto quanto dure nuestra tierra." M Bakunin
Diz ainda mais:
"Al margen de la sociedad, el hombre hubiera sido eternamente un animal salvaje."
O problema dos nossos anarquistas tupiniquins é justamente este: Tendo tomado M Stirner por guia identificam o Estado com a Sociedade, de modo que aniquilando o Estado nada resta além do indivíduo ou de indivíduos isolados, e portanto do caos, daquele caos previsto por Hobbes, em que homens convertem-se em lobos sanguissedentos, pelo simples fato de nada haver além deles...
Concluindo: Eles não leram uma linha de Bakunin ou de Kropotkin e não estão familiarizados com a terminologia conceitual empregada por eles, do contrário saberiam que não há acordo entre ambos e o alemão Max Stirner. Caso esta consciência sempre estivesse viva e presente entre eles jamais teriam se aproximado de alguém como Ayn Rand ou Mises.
Portanto forcejemos para compreender o que Bakunin e Kropotkin, estavam querendo dizer.
Segundo Georges Lefranc 1960 p 164 'Bakunin se pronuncia en favor de la sociedad en contra del estado.' Tornemos a Bakunin:
"Espero que la organizacion de la Sociedad y de la propriedad colectiva o social, se produzca DE ABAJO ARRIBA, por la via de LA LIVRE ASSOCIACION, Y NO DE ARRIBA ABAJO, POR MEDIO DE LA AUTORIDAD, SEA CUAL SEA."Perceba o leitor que Bakunin estabelece algumas relações que não são muito difíceis de entender. Relaciona o movimento de Baixo para Cima e portanto do povo para o 'comando' com a livre associação, a comuna, o município, uma pequena organização social. E da mesma forma relaciona o movimento de Cima para Baixo, i é um comando exercido por UM ou ALGUNS apenas, com a odiada autoridade.
Temos assim que para Bakunin o Estado corresponde ao sistema da autoridade ou do autoritarismo (ele não gaz diferença entre os dois tipos de conceito) ou de um comando exercido por um ou alguns sobre os demais. Claro que tem em mira antes de tudo a monarquia e também das diversas formas de aristocracia e certamente as democracias artificiais... tudo quanto duponha dominação.
Para ele, o inverso de Estado - com seu esquema de autoridade vertical - é a Sociedade. Na comunidade social não há comandantes e comandados ou governantes e governados porque todos os cidadãos são chamados a participar das decisões políticas que digam respeito a vida comum. Aqui o comando é de todos, e portanto horizontal. Importa saber se no esquema de Bakunin o indivíduo pode colocar-se acimada comunidade social ou das decisões comuns? O próprio Bakunin responde, sem qualquer artifício, que não. Que após a discussão e a deliberação comum, aquilo que foi decidido pela maioria converte-se em lei, demandando submissão por parte de todos os membros do grupo ou dos dissidentes, pelo simples fato de que tiveram a oportunidade de argumentar sobre seus pontos de vista e de convencer os demais. A ideia que anima este ponto de vista é bastante clara; e pode ser assim definida: Duas cabeças pensam melhor do que uma... Claro que isto pressupõem todo um trabalho educativo/formativo, Bakunin não o ignora, supõem-no. Ele crê que ao menos quanto as coisas comuns, a deliberação da maioria é sempre mais segura do que a opinião individual. Exceto, é claro quando temos massas incultas, situação que levaria o grupo a oclocracia.
Que temos de novo aqui no esquema de Bakunin - apresentando sob as vestes de Proudhon como anarquia??? Nada além da velha democracia direta ou da policracia - apenas ampliada - posta em prática nas cidades estados da Grécia antiga...
E embora Bakunin repudie o nome, continuamos tendo autoridade, a autoridade comum do grupo, em oposição ao autoritarismo, arbitrário e caprichoso, exercido por monarcas, déspotas, tiranos, senadores, falsos representantes, etc Aqui temos uma autoridade justa porque compartilhada. O que excluí como já dissemos a oposição individual dos dissidentes, o que admitido levaria o grupo a destruição. Os dissidentes, caso se mantenham, inflexíveis - é Bakunin quem o diz - são colocados fora do pacto ou da proteção oferecida pela comunidade, sendo-lhes franqueado o direito de abandona-la, exilando-se a si mesmos e formando uma comunidade a parte, conforme seus pontos de vista. Uma coisa é certa, permanecer na cidade, causado distúrbios não podem. Bakunin sabe qual seria o fim da oposição individual 'assentida' após cada deliberação e por isso desaprova-a. Sua comunidade não pode ser e não é a comunidade de indivíduos isolados porque uma tal comunidade é inexequível. A comunidade se mantém por laços comuns, o que demanda submissão a decisões comuns, as quais são legítimas quando tomadas pelo conjunto dos cidadãos.
Toda argumentação de Bakunin gira em torno disto e então - posta de lado a questão dos meios ou da social democracia - sou tão anarquista quanto ele, por subscrever 'in totum' seu ideal policrático de sociedade.
Kropotkin, como é sabido de todos, levou ainda mais adiante o princípio da legítima autoridade exercida comunitariamente por uma determinada sociedade e nada sabia a respeito da 'autonomia' de indivíduos isolados vivendo no seio da comunidade. Neste sentido político e social Bakunin e Kropotkin são verdadeiros socialistas, mormente quando no ideário de ambos a produção econômica é planejada e controlada pelo grupo social tendo em vista suas necessidades concretas e não a ambição e o lucro. Eles não situam o econômico fora do político ou do social i é como algo independente e não conferem ao mercado uma existência separada da comunidade.
Claro que aqui, os alemães de modo geral, em especial os que haviam estudado Hegel não partilhavam nem podiam partilhar das prevenções franco estado unidenses, a respeito do estado existente. E se os comunistas mostraram alguma hesitação, o Manifesto de 1848, com surpreendente lucidez, refere a busca pelo sufrágio universal como parte da luta comunista. E Engels, retomando este viés em 1895, admite que Lassalle, tomou aquele ideal e levou-o adiante, até chegar-mos a eleição de Bebel e ao programa de Gotha em 1875. E embora Marx tenha demonstrado alguma resistência na 'Crítica...' especialmente quanto ao caráter nacional do partido socialista alemão, do qual desconfiava. Seja como for, segundo sua filha Eleanor, pouco antes de morrer aderiu aquela solução, e mais ainda Engels, até morrer...
Em determinado momento os alemães, ao contrário dos anarquistas, concluíram pela estrutura neutra do estado recém cooptado pela burguesia e pela possibilidade de, através do sufrágio universal, inserir-se no parlamento e tomar posse dela, desmontando-a por dentro e transformando-a, a longo prazo, na própria 'ditadura do proletariado'. Claro que o mesmo tipo de raciocínio impõem-se no sentido de transforma-la numa policracia ampliando-a ou aprofundando-a por dentro, ao invés de buscar destrui-la por meio de golpes ou sedições. Claro que aqui já tocamos ao problema da instrumentalidade ou dos meios.
Os anarquistas mantiveram sua metafísica maniqueísta até mesmo quanto as palavras.
Esta percepção tanto mais realista já não diz respeito ao Estado enquanto forma de organização essencialmente opressora, mas a diferentes formas de organização social. Uma autoritária ou dualista na qual Estado e Sociedade/Comunidade são compreendidos como entidades distintas e sobrepostas - o que supõem um indivíduo, um grupo ou um setor comandando os demais. Nós, com Bakunin e Kropotkin avaliamos este tipo de governo como indesejável e ilegítimo. Mas há uma outra concepção segundo a qual o Estado corresponde a própria Sociedade por meio da participação direta de todos os cidadãos nas decisões comuns ou da policracia. Claro que é uma questão de termos ou nomes e que para Bakunin isto é impossível, pelo simples fato dele identificar arbitrariamente o Estado com o autoritarismo ou o comando arbitrário.
A questão aqui não é o estado mas sua relação com a sociedade.
E um repúdio a metafísica francesa anti estatal bem como a terminologia bakuninista, francamente confusão, colocaria a questão em termos de democracia direta ou policracia ou da identificação do estado com a sociedade. Neste sentido a solução elaborada pelos marxistas alemães no curso de sua História, até o fim do século XIX, parece imensamente mais rico do que a insistência furiosa de parte dos anarquistas a respeito das conjurações sucessivamente fracassadas. Claro que tudo isto conduz fatalmente a solução social democrática e que a social democracia, já advertia Engels, pode poluir a si mesma por meio de falsos acordos, pactos, negociatas, etc tornando-se vulnerável e perigosa. É coisa que se deve analisar com prudência noutro artigo.
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