Surgiu o anarquismo como proposta ou teoria política. Assumiu além disto a defesa da liberdades, seja a de pensamento ou a de expressão.
No entanto, como sucede-se muito frequentemente, transbordou a visão anarquista para outros setores da vida humana, como o setor do pensamento.
Poucos tem tido a sorte de perceber esta distinção crucial: Poder pensar no que se quer não equivale a poder pensar COMO se quer ou deseja. Como se o pensamento não tivesse suas próprias regras ou tais regras nada significassem...
Mas a autêntica liberdade de pesamento em sentido filosófico significa escolher seu objeto de analise e não escolher um método ou modo que fuja aos padrões de raciocínio, lógica, experimentação... não implica ditar normas ou regras artificiais e arbitrárias ao fluxo do pensamento; mas assumir as normas e regras próprias do pensamento e aplica-las a um objeto LIVREMENTE ESCOLHIDO.
Parte dos anarquista no entanto. E refiro-me especificamente aqueles que contaminados pelo individualismo, encaram o anarquismo como uma negação de todas as regras, quando trata-se na verdade de uma construção conjunta, de regras, sem as quais, não se vive. O que o anarco socialismo russo persegue são é a extinção de todas as normas e regras, mas a democracia pura ou direta, isto é, a possibilidade de que todos os membros da sociedade participem do processo que conduz a definição das normas e regras.
Não existe Sociedade sem regras. Por isto Max Stirner nega a existência da própria Sociedade. Quem diz sociedade diz autoridade. Importa que esta autoridade seja limitada (a esfera das coisas comuns no caso da a política) e comum (ou seja exercida por todos os membros do grupo). Tal a opinião de Bakhunin e Kropotkin com os quais estamos de pleno acordo.
Assim não existe pensamento sem regras. O pensamento possui normas e regras muito bem definidas e este conjunto de normas e regras que conduz a aquisição da verdade chamasse lógica. Mesmo as experiências porque buscamos investigar o mundo sensível passam, num segundo momento, pelo crivo da lógica, sendo racionalizadas. É o que nos leva a formulação das leis e a compreensão da natureza. Aqui entra parte de uma parte de percepção e uma parte de reflexão atuando juntas.
De modo geral o conhecimento humano é obtido pela ação ou atuação conjunta dos sentidos que percebem e da mente que compara os dados percebidos.
São estes elementos comuns da experiência e da reflexão que possibilitam aos humanos a felicidade de conhecer ou de saber com 100% de certeza, eliminando não só a ignorância mas a própria dúvida. Assim não tenho dúvida alguma a respeito da composição da água (H2 O) ou da presença de celulose na maior parte dos vegetais. E como ignorar é um mal, só posso definir o conhecimento como um bem e concluir que sua posse produz um bem estar qualquer na consciência daquele que conhece.
Não apenas sabemos ou conhecemos mas sabemos que sabemos porquanto a maior parte de nossas operações cognitivas são conscientes.
Sem tais elementos comuns não poderia existir um grupo de verdades comuns que transcendem os indivíduos e unificam a espécie. A quase totalidade dos anarquistas juntamente com os pós modernos endossam cabalmente esta única e trágica verdade de que não há verdade alguma.
Existem de fato verdades subjetivas relativas ao sujeito e válidas apenas para ele, mas não uma verdade unitária, absoluta e transcendente a ser corroborada por todos os homens. Existem verdadezinhas fragmentárias e dispersas; alias cada individuo tem 'sua verdade' a que pensa, crê ou deseja ser valiosa para si. Aqui verdade é mera questão de vontade e se há tantas vontades quanto cabeças... A verdade não existe. Tal a única verdade fanaticamente sustentada pelo homem contemporâneo.
E a razão? E a percepção? E ciência?
Não passam de imposições externas ditadas pela cultura. Existem apenas nas cabecinhas de alguns indivíduos pretensiosos para os quais são válidas... de modo algum fora delas, no plano da objetividade. Cada qual experimenta ou conhece o objeto de uma maneira, o que leva-os a crer que na verdade o objeto não pode ser conhecido e que a ignorância a respeito dele seja o estado natural da mente ou do ser humano.
Parece que o anarquista metafísico tende a encarar o método ou caminho do conhecimento como uma imposição vinda de fora e consequentemente como uma forma de domínio e opressão nos mesmos termos que o Estado na esfera do poder. Sente, de algum modo, sua natureza profanada por ter de admitir um elemento que não seja apenas seu mas comum a todos e capaz de a todos nivelar. Talvez porque ele mesmo deseje ser único e não um dentre muitos ou um semelhante.
Desde que a anarquia - sob o viés do individualismo - foi transplantada para o plano do conhecimento passou a alimentar os velhos fantasmas do ceticismo absoluto, do relativismo e do subjetivismo. Neste terreno a negação da Sociedade como elemento unificador no plano da ação é substituída pela negação da verdade no plano da reflexão. E como não há elemento unificador no plano da política ou sequer Sociedade mas apenas indivíduos dispersos e isolados, tampouco pode haver elemento unificador no plano do saber ou verdades que transcendam os indivíduos e imponham-se a todos os seres humanos.
Percebam como a situação de isolamento afirmada no plano político é corroborada ou reforçada no plano do pensamento.
É perfeitamente compreensível que tantos quantos desesperaram da Sociedade desesperem igualmente da Verdade. Afirmando juntamente com o individualismo o ceticismo.
Aqui já não há Sociedade, já não há verdade e não havendo verdade não há Ética.
Afinal por que modo ou maneira condenados os juízos de essência - a respeito dos seres, coisas ou objetivos - ficariam inumes os juízos de valor, a respeito da importância que atribuímos a tais objetos? Se sequer podemos conhecer bem as coisas como poderíamos avalia-las bem?
Não podemos.
Assim junto com a Sociedade e a Verdade do Ser ou das essências fica impugnada a Ética e comprometida qualquer distinção mais séria entre o bem e o mal. E se cada indivíduo é capaz de fabricar suas verdades e seus erros, válidos apenas para si, por que não podem os mesmos indivíduos definir que seja bem e que seja mal tornando-se medidas de todas as coisas???
Chegamos aqui ao abismo do relativismo moral, o qual por assim dizer nivela as figuras de um Sócrates, um Buda, um Confúcio, um Platão, um Aristóteles, um Jesus... as figuras de um Átila, um Maomé, um Gengis, um Tamerlão, um Calvino, uma Ayn Rand, um Hilter, um Stalin, um Mussolini, um Bush. E já nem podemos saber qual dos dois grupos representa o bem. Para os relativistas o grupo humanista bem poderia estar equivocado e o militarista, teocrático, nacionalista ou racista 'certo'... melhor dizendo: não haveria grupo certo e grupo errado, e bem poderíamos aderir livremente a qualquer um deles e afirmar o nazismo, o fascismo, o comunismo...
Com que autoridade uma Sociedade cética ou relativista, que nega a verdade objetiva pode condenar qualquer coisa? Com que autoridade uma Sociedade misticamente anarquista atreve-se a julgar e sentenciar o fascismo, o nazismo, o bolchevismo e outros tantos monstros? Em nome de que e do que se não há certeza alguma? A incoerência aqui salta a vista e deve aprecatar-nos contra os perigos desta fé a respeito total incapacidade do ser humano!
Declaram que a Igreja romana, apresentava o homem como um coitadinho ou incapaz e proclamam sua total capacidade em termos de bem e de verdade, de lógica e de ética, de bem e de mal... Estado ainda mais miserável do que aquele que lhe fora atribuído pela igreja romana... Ali um homem fragilizado e combalido, aqui um homem inepto e inapto por natureza, posto para a ignorância e voltado para a incerteza absoluta!
Considerais a condição deste homem como invejável?
Eu não.
Pois ele deseja saber, aspira pelo conhecimento, busca certezas... mesmo sendo incapaz de atingi-las.
Pois ele sente-se incomodado pela ignorância, que é seu estado adequado!
Situação monstruosa!
Como se os peixes se sentissem incomodados em seu elemento natural ou as aves ficassem inquietas por voar!
Devia este homem deleitar-se em sua ignorância...
Mas ele elabora teorias mirabolantes em torno da miragem do conhecimento.
E o que é ainda pior: proclamando a falência ou morte do elemento racional, proclama concomitantemente a morte da Ética ou da moral lançando-as ao oceano agitado das vontades individuais e sancionando todas as taras, vícios e crimes.
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