I - A saga de Aurélio Agostinho
A Encarnação de Deus no homem Jesus Cristo constitui a mensagem central da religião Cristã. É um aproximar-se a transcendência da imanência ou um contato.
Disto segue-se, como corolário necessário, que mesmo não procedendo ou sendo deste mundo, mas do mundo invisível, espiritual, imaterial ou ideal; deve a mensagem Cristã, a semelhança daquele que proclamou-a, encarnar-se nas estruturas do mundo material alterando-as radicalmente. Deixar de ser apenas teoria para ser também prática ou realidade. Nem se pode compreender a mensagem do Evangelho a não ser nos termos duma libertação INTEGRAL.
Não se trata aqui duma libertação platônica ou parcial concedida apenas ao espírito noutro plano; mas duma libertação total concedida também aos corpos e que principia já neste mundo antecipando a realidade do mundo futuro. Trata-se portanto duma proposta completa, posta para o homem todo e não só para a alma do homem.
Implica isto num ideal de cidade, reino ou sociedade: o reino dos céus, a cidade de Deus, o Império do bem... tal a proposta de Jesus Cristo. Precocemente no entanto, foi esta proposta contaminada e desfigurada pelo platonismo. Ficando este Reino restrito ao domínio das almas. Afinal Cesar e os demais potentados deste mundo não desejavam ser molestados... alteraram assim a dinâmica do Reino, para não terem seus costumes alterados.
É bem verdade que o Cristianismo jamais pretendeu exercer um controle direto sobre a sociedade humana ou o poder político. Judaísmo e islamismo apostaram no controle direto do político pelo religioso através da teocracia. O Cristianismo não; admitiu a separação já aventada pelos antigos gregos e deixou o poder político nas mãos do César.
Implica isto abrir de transformar o mundo?
Não caso o César fosse sinceramente Cristão reproduzindo os princípios e valores legitimamente Católicos. Caso o poder secular tivesse assumido a Ética do Evangelho e pautado suas operações políticas na consciência religiosa. Caso estivesse de fato persuadido ou cresse. O fato é que a conversão dos Cesares, dos nobres, dos ricos e dos poderosos fora superficial, visando apoiar a velha política de sempre no fundamento da Igreja.
Para tanto bastava-lhes uma fé meramente externa, formal, aparente, teórica e fetichista. Batismo, recitação de fórmulas, adesão a decretos, observância de certos rituais, etc Obviamente que todas estas coisas são elementos do Cristianismo ou aspectos da fé ortodoxa; mas não bastam, não são suficientes e não prestam para fazer alguém Cristão exceto se forem animadas pela CARIDADE VIVA.
É esta caridade viva que leva o Cristão converso a viver ou por em prática a Ética Cristã ou a lei Evangélica.
Temo que os reis e potentados que em determinado momento abraçaram a doutrina Cristã ignorassem que fosse caridade viva. Foram em sua maior parte conversões políticas ou fingidas. As quais introduziram no corpo da Igreja um viver viciado ou acomodado peculiar as massas pagãs, sequer atingidas pela Filosofia.
Foi toda um cultura pagã em crise ou estado de abatimento, artificialmente assumida pelo Cristianismo.
A vida Cristã por assim dizer foi saindo de cena... o ideal sendo rebaixado e a meta da fé obscurecida.
Em meio a este espetáculo deprimente, em que os césares buscavam domesticar o heroísmo Cristão, heroísmo responsável pela formação de vinte milhões de mártires, foi que Aurélio Agostinho ou Agostinho de Hipona, veio ao mundo na pequena Tagaste, situada no Norte da África.
Aparentemente a paz dos césares e a conversão dos reis e poderosos trouxe mais males a nova fé do que a própria perseguição. Durante a perseguição os Cristãos obstinaram-se em afirmar e em viver sua fé imaculadamente. Após a perseguição foram relaxando... até perderem todo o heroísmo, desesperarem do primitivo ideal (de transformar as estruturas deste mundo) e tornarem-se rancorosos catastrofistas como os antigos judeus.
Neste sentido o papel do Bispo de Hipona foi crucial.
Ninguém antes dele havia anunciado com tanta clareza a impossibilidade deste ideal.
Dissera Jesus: "SEDE PERFEITOS COMO VOSSO PAI CELESTIAL PERFEITO É." No entanto desde Agostinho, Lutero, Calvino... tornou-se tabu falar em perfeição nos meios do Cristianismo Ocidental. O pecado ou a debilidade da natureza foram arvorados como dogmas indiscutíveis. E de escola de virtude que era passou a instituição Cristã a ser encarada como um repositório de derrotados. Era um celeiros de bravos, converteu-se em asilo de frustrados... Desde então inverteu-se por completa a natureza da religião de Cristo.
Agora por que vias afirmou-se e alastrou-se tal infecção no organismo do Cristianismo a ponto de quase mata-lo?
Não é por acaso que Lutero era Agostiniano. Nem é por acaso que Agostinho, antes de sua conversão, fora MANIQUEU. Assim a tradição maniqueista chegou a Lutero e por meio de Lutero consumou-se a transformação.
Basta dizer que o maniqueismo encarava o corpo humano como essencialmente mau e a condição humana como naturalmente pecaminosa...
Por outro lado, ignorando todo o esforço realizado pelos padres gregos no sentido de fundamentar os motivos do Cristianismo no aparelho intelectual da razão e de fomentar uma fé teológica e esclarecida, Agostinho, tendo em vista a glorificação da fé, não exitou em fazer algumas críticas bastante destemperadas a razão, antecipando até certo ponto as impugnações de Gazalli, os anatemas de Lutero, as duvidas de Montaigne e Pascal e as cogitações de Kant... Sendo a frágil a natureza da razão e duvidosas suas constatações, era muito mais sábio e prudente adormecer no berço esplêndido da fé ou melhor do fideísmo intelectual.
Enfraqueceu o elemento unificador da razão para facilitar a aquisição da fé praticamente nos mesmos termos que Kant o filósofo de Lutero e reformador da Filosofia.
Enfraqueceu a vontade humana para enaltecer a graça em termos de ação ou comunhão divina.
A princípio aderiu formalmente a fé da igreja e conformou-se, ao menos externamente com a tradição semi pelagiana (vida Harnack). Inconscientemente no entanto, e por motivos de temperamento, manteve-se maniqueu. Foi apenas no fim da vida, que durante a questão pelagiana, no calor da peleja, forjou e apresentou suas teorias. E como pouco ou nada soubesse em termos de grego e de teologia oriental falseou tanto o significado dos escritos paulinos quanto os caminhos da teologia em construção. Produzindo ou tradição ou uma fé nova. Destinada a triunfar por completo no Ocidente ou na Igreja Latina.
Nos últimos anos de sua vida este Bispo arrogante (é Jerônimo de Stridon que apresenta-o assim) teve por adversário um homem verdadeiramente notável. Um eclesiástico erudito, profundo conhecedor do grego, representante da cultura antiga (ora Cristianizada) e amigo de S João Crisóstomo. Refiro-me a Juliano, Bispo de Aeclanum, na Itália.
O homem era versado nas categorias de Aristóteles e bastante hábil em termos de lógica. Bastou-lhe tomar os livros que Agostinho escrevera contra Pelágio em suas mãos para dar com os mais clamorosos absurdos. Pos-se a tirar conclusões lógicas de tudo quanto o Bispo de Hipona enunciara a respeito da graça com o intuíto de chegar ao absurdo e pulverizou por completo seus argumentos infantis. Obstinado, teimoso e irredutível Agostinho foi deixando-se guiar por seu adversário, e admitindo como dogmas um por um dos absurdos apontados até chegar as proximidades da doutrina da predestinação particular ou da graça soberana.
Juliano divulgou o testemunho de S Crisóstomo. Agostinho replicou dizendo que o Bispo de Constantinopla era um tolo que nada sabia a respeito da graça de Deus... e registrou, num de seus último livros sobre a graça, que era ela mesmo irresistível e soberana. Juliano compôs um último livro em que perguntava ao Bispo de Hipona se o mesmo Deus que convertia irresistivelmente os salvos recusava-se a converter a salvar os réprobos... No entanto quando este livro chegou a Hipona já Agostinho havia falecido. Ficando a obra do Bispo de Aeclanum sem resposta.
De nossa parte estamos firmemente persuadidos de que o Bispo de Hipona fosse incapaz de recuar ou de retratar-se e que pressionado pelo Bispo Juliano teria antecipado em mil anos as teorias de Lutero e Calvino sobre a predestinação absoluta i é a predestinação positiva dos condenados ao inferno. A morte no entanto fez com que parasse a beira do abismo. Contendo, em certa medida, a reversão total da fé por dez séculos.
Forçoso é reconhecer, todavia, que a doutrina de Agostinho sobre a graça e a livre vontade, a natureza e o pecado ancestral, o bem e o mal, contem já embutida ou potencialmente, a doutrina luterano/calvinista e que esta não passa duma conclusão ou inferência lógica feita a partir das premissas teológicas sustentadas pelo teólogo norte africano.
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