Foi o Renascimento - a bem da verdade tivemos uma sucessão de RenascimentoS - um período de descobertas.
Uma delas dizia respeito ao paganismo antigo, ao paganismo greco romano, cujo conteúdo intelectual/doutrinal era mínimo e que por isso mesmo ignorava as controvérsias religiosas e suas consequências, muitas vezes amargas.
Outra a realidade do Cristianismo antigo, mormente após a associação entre a Igreja e o Estado. Fazendo sua aparição - alias necessária - em tão deplorável contesto, controvérsias Cristológicas, não poucas vezes, convulsionaram o Império.
Na medida em que os Imperadores e reis, motivados por razões de ordem política, aspiravam a uma Unidade religiosa forçada, controvérsias, que a princípio eram benéficas a fé degeneraram em conflitos civis, motins ou mesmo guerras.
Foi um triste espetáculo... o das guerras ou embates religiosos.
No entanto Jesus dissera - Amai-vos e não armai-vos... Como buscara promover a tolerância e a paz.
Os humanistas, que eram antes de tudo Cristãos devotos, buscando por esta paz, por esta harmônia e por esta concórdia, deram com elas no paganismo. Pelo simples fato de que o paganismo a um tempo não era revelado e a outro não falava ao intelecto por meio de formulações doutrinárias.
De tal constatação brotou a percepção segundo a qual a preocupação com a Verdade ou a própria formulação doutrinária seria já nociva, já ociosa, e que Jesus preocupara-se exclusivamente com a Ética ou seja com o comportamento humano. Destarte foi a ortodoxia doutrinal substituída pela ortopraxia...
E devemos compreender inclusive que até então a Ortopraxia havia sido sacrificada a Ortodoxia doutrinal e o aspecto marcadamente Ético do Cristianismo obscurecido por questões de ordem teológica. E como os homens amam os extremos, ao tempo da Renascença, o ponteiro virou para o lado oposto... supervalorizando a prática e depreciando o caráter teórico ou credal da instituição Cristã.
Erasmo e seus pares concluíram que ao invés de disputar a respeito de minúcias ociosas, como a cor das asas dos anjos, deviam os Cristãos concentrar-se no que é essencial, assim no amor ao próximo, no cultivo da virtude e na prática das boas obras. Quem ignora por sinal que os Cristãos mais ignorantes, parvos e tontos acusam-se uns aos outros de heresia a pretexto de qualquer discordância tolerável ou opinião inocente - Assim se você não se pronúncia a respeito da querela entre Constantinopla e Moscou, se há ou não anjos da guarda, se as canonizações são ou não infalíveis, etc E estão sempre prontos a berrar: Herege e a intimidar os outros...
Imaginem então os séculos XIV ou XV???
Disto resultou uma espécie de desprezo face aos elementos da fé e seu significado assim a formulações credais ou teológicas.
Erasmo foi um dos que avaliou enfaticamente tais assuntos como ociosos ou perniciosos, insistindo marcadamente na necessidade de buscarmos viver a mensagem do Evangelho com simplicidade e não podemos duvidar de que fosse sincero. Assim as discussões ou polêmicas doutrinais exasperavam-no... Isto a ponto dele desestimular qualquer preocupação mais séria em torno dos elementos da fé, para insistir na vivência.
Assim quando apareceu Martinho Lutero, enunciando doutrinariamente a inutilidade das obras e levantando uma controvérsia doutrinal de importância crucial para a vida Ética; ele, Erasmo, não foi capaz de aquilatar-lhe o valor e de atalhar no momento oportuno, quando ainda era quiçá possível atalhar o movimento protestante. E quando percebeu a importância do momento, cinco anos depois, e optou por interferir já a Reforma estava firmemente consolidada, a ponto dele, Erasmo, ter de abandonar sua querida Basileia (1529).
O aspecto mais interessante desta 'cena' é que Lutero, tendo-se exercitado na doutrina - de Agostinho - tornou-se hábil no sentido de atacar os fundamentos da Ética Cristã, declarando a prática das boas obras ociosa ou desnecessária. E por meio desta falso doutrina influenciou negativamente não milhares mas milhões de pessoas, iniciando-as numa fé puramente teórica, acomodada e descomprometida com o mundo.
O que quero dizer com isto é bastante simples. Pessoas são influenciadas pelas doutrinas ou teorias em que acreditam. Assim uma doutrina que promova as obras ou a ação poderá servir de fundamento a uma vida excelente, enquanto uma crença ou teoria que deprecie a prática poderá produzir as mais funestas consequências no âmbito da vida vivida, tornando as pessoas acomodadas e insensíveis.
Afirmando a doutrina forense da redenção vicária ou da dupla justiça, obtida pela fé somente Lutero excluiu a necessidade de praticar boas obras tanto a priori ou seja antes da justificação, como a posteriori ou seja como fruto da justificação, pois ele sequer acreditava que fomos justificados pela fé para as boas obras, mas que jamais triunfamos do pecado ou podemos cessar de pecar. Com isso desvinculou as obras ou as ações humanas da esfera religiosa e a fé religiosa do mundo material...
Desde então os que nele acreditaram perderam por completo noção de Lei Cristã, enfim de uma Lei promulgada pelo próprio Jesus Cristo, da qual temos exemplo no Sermão do Monte, particularmente nas Bem aventuranças ou no capítulo vigésimo quinto de S João, ou mesmo na narrativa do Jovem rico. Convencido de que não poderia Deus exigir de nós o que não podemos cumprir negou Lutero, resolutamente que Cristo Jesus fosse Legislador e que seu Evangelho corresponde-se a uma Lei. E em que pese nosso homem ter negado o óbvio ou algo que salta a vista, no momento em que ele levantou a controvérsia os poucos homens geniais que poderiam te-lo atalhado, avaliaram também aquela controvérsia - como todas as outras - como frívola.
E o resultado paradoxal foi que fugindo a controvérsia por priorizar a 'vida ética' ou a praxis, Erasmo e seus pares, ao menos a longo prazo acabaram na verdade, desamparando a doutrina sinergista da Ética e em última análise favorecendo a afirmação da doutrina soli fideísta. Por outro lado, caso tivessem entrado de imediato na controvérsia teórica e impugnado Lutero com base na palavra de Cristo, teriam a longo prazo favorecido a prática das obras.
Conclusão: O supremo equívoco de Erasmo foi subestimar o quanto as doutrinas, teorias e crenças são capazes de influenciar as vidas das pessoas.
Devemos assim valorizar tanto a doutrina ou a teoria quanto as obras ou a prática, sabendo que ambas são igualmente impontes. Destarte a teoria sem a prática mostra-se vã. As obras sem a fé vulneráveis. A aliança entre a teoria e as obras absolutamente perfeita.
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