quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Conhecendo o outro lado de Juan Valera - O Pe Francisco Vitória OP


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Há muito que se falar sobre a Espanha e sua literatura ou da Espanha enquanto produtora de conhecimento.

Lamentavelmente a reputação da Espanha tem sido amplamente obscurecida em função da Leyenda negra.

Nada mais falacioso do que a produção historiográfica protestante, fonte de inúmeros mal entendidos ou mesmo de inverdades. Mesmo quando assumida por positivistas apressados não se torna ela neutra. Continua sendo anti romana ou Católica, anti medieval, anti latina, anti hispânica... e por ai vai.

Construíram os ingleses e seus sucessores N americanos suas historiografias em ambientes ideológicos bem definidos em termos de centralização de poder, afirmação do capitalismo, construção do nacionalismo e para eles tudo quanto cheira a descentralização do poder, comunitarismo/solidarismo/socialismo, cosmopolitanismo ou sentido católico lhes é pura e simplesmente incompreensível senão diabólico.

Estão encarcerados na prisão da cultura embora apreciem julgar com tanta afoiteza a Antiguidade, a I Média, o romanismo, o Catolicismo, o latinismo, a hispanidad, etc

Isto é até certo ponto natural.

Exótico é que os latinos, os hispânicos, os Católicos, os humanistas, etc assumam tais vícios, fazendo 'mea culpa'... Estranho é que nós incorporemos tais críticas infundadas, preconceitos, tabus, etc após te-los recoberto com uma camada de verniz positivista - Isto para sermos ainda mais ridículos.

Negamos que o homem seja imparcial em seus juízos de valor. E aplaudimos os juízos de valores protestantes como imparciais...

Os protestantes, para bem ou para mal, construíram outra Sociedade ou Cultura, que é pós medieval. Não podem portanto apreciar a I Média com a dita isenção de juízo acalentada por Ranke... Porque o padrão a que recorrem são seus próprios princípios e valores. O homem antigo ou medieval tinha outros. Julgamos estes homens por seus próprios princípios e valores ou abste-mo-nos de julga-los - fazendo mera crônica... Nem mais nem menos.

No entanto já o véu vem sendo despedaçado - muitas vezes pelos protestantes mais honestos e esclarecidos outras por autores insuspeitos ou descomprometidos com o papismo ou com o Catolicismo a exatos dois séculos ou duzentos anos, desde que Henry Hallan, publicou seu monumental "The view of the state of Europe during the midle ages", obra que ainda hoje merece ser lida com atenção. Após ele tivemos Schrenurer, Denifle, Newman, Ganchoff, Bloch, Duby, Romilly, Le Goff, etc Paulatinamente a querida imagem maniqueísta construída em torno de uma 'Idade de trevas' produzida (quiçá intencionalmente rsrsrsrs) pelo papado (Tese de Maytland por exemplo) se vai mostrando cada vez mais forçada, inconsistente, ideológica ou mesmo panfletária...

O que se é para deplorar é a lentidão com que tais luzes atingem, mesmo o público seleto da Hispanidad e da Lusitanidade; particularmente na América latina e especialmente no Brasil, onde a tradição das trevas medievais e rigorosamente mantida não apenas pelos protestantes que a inventaram mas por Comunistas, Anarquistas e Liberais 'emancipados' ou seja por grupos teoricamente descomprometido. É fato sabido no entanto, que ao menos até o Vaticano II, tais grupos temiam muito mais a Unidade da Igreja Romana, do que a multiplicidade das seitas protestantes...  De algum modo eles optaram por atacar a igreja papa - e os Catolicismos de modo gral - com as armas embotadas produzidas pela reforma na medida em que a substituição da antiga pela nova fé tornava o Cristianismo tanto mais vulnerável. O Pastor com sua Bíblia ou melhor com sua Torá ou antigo testamento jamais foi temido seriamente pelos intelectuais naturalistas... Outro é o caso dos sacerdotes ou mesmo leigos esclarecidos, representantes da alta teologia Católica moderadamente liberal. Mesmo Dawkins é perfeitamente a cônscio quanto o problema, na medida em que classifica os representantes desta alta teologia como incoerentes e em que se recusa a debater publicamente com eles, voltando seus elogios - em torno da coerência - aos fundamentalistas, os quais costuma ridicularizar e esmagar sem misericórdia...

Compreenda-se que a crítica ideológica protestante produtora de historiografia tem sido assumida por diversos grupos 'interessados'.

Julgo no entanto que tais grupos deveriam pautar-se pela honestidade ou pela Ética. Ao invés de repetirem boatos e calúnias contra a igreja papa ou contra os Catolicismos de modo geral. Não é por ser Católico Ortodoxo que vou inventar mentiras e caluniar o papado. Tenho-o, evidentemente, em contra de construção humana ou natural e religiosamente como algo desprovido de significado ou como uma corrupção. No entanto como já dizia o Pe Vieira 'Justiça seja feita até ao Demônio'... Devo julgar o papado e todo fenômeno Histórico, assim a reforma protestante - de modo justo e equânime. Talvez seja impossível ser imparcial em termos de juízos valorativos ou mesmo quanto a escolha do material histórico a ser registrado. Sei apenas que ser ou tentar ser honesto é absolutamente necessário. Digo, não caluniar, não inventar e não repetir boatos acriticamente...

Já vimos que a historiografia medieval tem passado por uma necessária avaliação. Posto que até mesmo seu prosaico nome construído por Keller ou Cellarius - enquanto simples barreira ou espaço vazio entre a brilhante Antiguidade clássica e a formidável Renascença já indicava uma avaliação negativa, quiçá injusta. Não estou querendo negar com isto a patente superioridade da Atenas do século V a C, de Clístenes a Péricles, mesmo da Roma augusteana ou a ainda da Bizâncio do século IV, face a tudo quanto possamos sonhar em termos de I Média Ocidental.

Parte da I Média foi de fato um momento de 'franca' crise. De uma crise sócio, político e econômica que após o fim do Império romano chegou a ser cultural. Devido a inserção do elemento germânico. De fato não podemos exigir um continuidade cultural por parte da Europa Latina a partir do momento em que ocorrem as grandes migrações germânicas. As coisas não podem nem poderiam ficar como eram antes... Nem podemos julgar com equidade a Sociedade do século XIII sem apreciar que eram estes povos germânicos recém chegados ao Império no dealbar do século V. A comparação é absolutamente necessária pois somente a partir dela podemos aquilatar a obra formativa e educativa, da Igreja Católica - pelo menos até o século XI ou XII - e enfim da Igreja romana...

Sem a inserção desse sangue ou dessa força germânica não teríamos resistido a jihad islâmica do século VIII, e Carlos Martel é prova viva do quanto falo. Tampouco sem a incorporação destas culturas, desta força ou deste sangue pela Igreja Católica teria esta operação de resistência a um tempo e salvadora a outra, chamada Cruzadas, existido. E os minaretes se estenderiam de Palos a Berlim ou mesmo Oslo... Podemos devemos criticar os abusos e crueldades que envolvem as Cruzadas, sabendo que somos todos filhos seus e que foram absolutamente necessárias a seu tempo. A antiga Cristandade greco romana teria escrúpulos... Os recém chegados germânicos estavam melhor dispostos e sabiam que a Sociedade enquanto tal precisava defender-se e ser defendida.

Tenho de falar sobre Valera e a Espanha, mas veja por onde vamos em rodeios... Por isso minha falecida Mestra Izamar Alcover Loureiro do Amaral costumava a tratar-me por Domingos, o prolixo e também a profa Eliana...

Quero dizer que nós latinos, ibéricos, hispânicos, lusitanos... Introjetamos a quimera da lenda negra e construímos falsos complexos de culpa e inferioridade face a nossa cultura, que é, e digo-o conscientemente - Soberba. Já o veremos...

Após criticar os mitos e tabus forjados pela crítica protestante e partidarista, levo ao tribunal os místicos da Igreja romana... Sim, a Espanha, produziu e alimentou este tipo de espiritualidade que não hesito classificar como patológica. A ponto dos pobres Cristãos espanhóis se ufanarem duma riqueza aparente, assim de Tereza de Ávila (ademais uma mulher bastante sensata, mas não um gênio), esta nulidade chamada Juan de La cruz, e, a cambada esses Padres - Murillo, Salvany, Fuente de La Peña, Boneta, Sor Patrocínio, Donoso Cortês, etc bando de aleijões teológicos e de anões espirituais que tem deliciado as boas almas dos espanhóis... No entanto, dia após dia, o mal alimento regurgita e sai... E vai o Cristianismo, o romanismo ou mesmo o Catolicismo, sendo vomitado ou expelido por este bom povo... Com grave dano de sua cultura, construída sobre este fundamento Cristão Católico.

A situação se torna dramática pois ou tais pessoas se contentam com o que há de pior no romanismo ou no Catolicismo, assumindo essa mística deplorável ou desamparam sua própria cultura ao lançar fora a fé religiosa. Que na Espanha, já o veremos, produziu gênios de imenso calado...

É uma cruz. Pois mesmo quando os espanhóis - e agora reproduzo juízo de D Menéndez Pidal (cf El Pe Las Casas y Vitória, con otros temas... Austral, Madrid 1958 p 09 sgs) - reconhecem seus gênios nem por isso vão a fundo... Equivoco-me. Pidal é espanhol e tem discernimento. Espero que seus conterrâneos e todo Cristão, e todo Humanista, e todo homem interessado pela cultura, leia o volume de ensaios acima citado.

Longe de mim negar a grandeza do defensor dos Índios americanos, B de Las Casas. Foi homem necessário a seu tempo. E creio eu fiel e honesto, numa época em que não haviam estatísticas... Com razão, no posto em que se achava, tinha de fazer grande bulha ou berreiro. Pois almas vivas estavam sendo destruídas pela febre do ouro ou mesmo pelo fanatismo. E havia quem tomasse os pobres índios por Mouros ou maometanos bravos... B de Las Casas precisa gritar, berrar, apelar a figuras de linguagem poderosas, etc Foi ele como uma tempestade e cumpriu seu propósito.

No entanto aquele mesmo tempo, do outro lado do Oceano, retirado a soledade de seu mosteiro ou convento estava o cérebro ou a mente trabalhando. Seu nome Francisco de Vitória, nome que merece ser colocado ao lado dos grandes nomes que imprimiram certo curso a cultura na medida em que buscaram responder aos problemas de seu tempo.

E com absoluta e plena razão Ballesteros - Gaibrois define o descobrimento da América por Colombo como fenômeno singularíssimo ou melhor único (cf Séjourné; América pré-colombiana - Meridiano ante pag de rosto). Desde de que os gregos, com olhar diverso dos fenícios, exploraram o entorno do Mediterrâneo e mais além, jamais havia se dado tal encontro ou choque de culturas. Las Casas assumiu a defesa da parte fraca ou conquistada... Vitória foi o que primeiramente pensou naquele conflito, construindo uma análise que partia de Aquino, logo de Aristóteles e, consequentemente do conceito de Natureza. No entanto Vitória - como Aquino - tem plena consciência ou sentido de não ser um grego ou um romano mas de ser um Cristão, o que comporta outra escala de valores...

Este sentido ético Cristão corresponde a fé. Vitória aspira encontra-lo quiçá na natureza e, para tanto, por meio do próprio Digesto ou das Institutas, dá com as formulações postas pelos antigos estoicos. Os quais tinha estudado a variedade das culturas após as conquistas empreendidas por Alexandre na Ásia. Os estoicos mesmo sendo gregos, admiraram-se amplamente face a variedade das culturas. Mas, como herdeiros de Aristóteles e mais remotamente de Sócrates, encararam o desafio de encontrar algo de essencial ou comum e é exatamente aqui, que antes de ser descoberto o homem ou o liberalismo político/social é descoberta a HUMANIDADE...

E esta descoberta se vai afirmando no transcorrer do processo Histórico, agora sob o comando dos romanos e seu império. Pois os principais jurista do tempo, como Gaio, eram bastante afinados com o estoicismo. Sendo assim, a par do jus civile ou jus romano (post Caracala) - que era o direito da cidade, atribuído apenas ao cidadão romano - surge, a partir do citado Gaio o 'jux gentium', algo tão importante quando a roda, o arado, a moeda, o automóvel, o avião ou o computador... O jux gentium é encarado como natural e portanto como comum a todos os homens e racional ou dedutível a partir do elemento comum da razão. Pelo que chegamos ao direito natural ou a noção de Lei natural...


Foi deste manancial que Vitória abasteceu-se com o objetivo de refutar aqueles que assumindo um aristotelismo puro ou ortodoxo - como Ginés de Sepulveda, Juan Quevedo, Bernardo Mesa e Palacios Rubios, dentre outros - defendiam a inferioridade natural dos indígenas americanos ou mesmo sua irracionalidade, daí deduzindo a necessidade de escraviza-los e de fazer guerras 'justas' aos que buscassem defender-se... Salta a vista como esta doutrina vinha ao encontro de ambições econômicas, que os marxistas costumam apresentar como infalíveis... E no entanto não foi ela que prevaleceu no seio da Igreja romana ou mesmo entre os intelectuais cristãos espanhóis após o colóquio de Valladolid (1550).

Foi aqui que pela primeira vez se estabeleceu de modo inequívoco os direitos essenciais de toda pessoa humana. Ali que se forjou a alma do liberalismo político pessoal... Não em 1776 na Constituição N Americana... Não em 1789 na Declaração universal de direitos... Nem mesmo pela pena do grande Hugo Grotius simples repetidor dos jus naturalistas hispânicos. Toda esta tradição foi firmada na Espanha - na Espanha da Inquisição, é paradoxal - a partir do Dominicano Francisco de Vitória. É o Renascimento do Humanismo natural timidamente esboçado pelos antigos estoicos, agora levado as últimas consequências, escolasticamente, pois Vitória é um escolástico, e pai, e patrono dos direitos humanos. Mas ele não é e jamais será festejado - como Darwin, Freud, Weber ou mesmo K Marx - pelos cientificistas ou positivistas, pelo simples fato de ser um mestre de Ética, laborando em torno daquilo que eles, classificam irredutivelmente como subjetivismo. Para eles o gênio é Kelsen, teórico do direito puro... Daqueles que como Alf Ross principiam dizendo solenemente que Antígona não diz coisa com coisa, e que Creonte, legítima fonte do poder, esta com a razão... Razão que só pode ser absoluta por ser suprema. E a democracia formal não pode remediar as coisas enquanto mera estrutura a serviço de uma 'vontade geral' (aqui Rousseau) que pode ser tão totalitária e despótica quanto o Leviatã. De fato todos - Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Kelsen, Ross e todos os teóricos do direito positivo ou puro encontram-se na negação de uma Lei natural no acesso da consciência pessoal, enfim na negação de uma justiça que não seja política ou estatal... E sabemos onde esta negação da justiça e da consciência chegará...

Por isso Vitória OP não será universalmente homenageado, embora sua doutrina - em que pesem possíveis abusos ou inversões - seja revolucionária (no quadro social em que veio a luz) e mais ainda profundamente humana e ética. Por incrível que possa parecer Vitória conheceu ou raro privilégio de ter tido colaboradores e continuadores tão dignos e competentes. Citarei alguns: Domingo Bañez, Domingo Soto, Gregório Lopez, Melchior Cano, Las Casas, José de Acosta, Juan de Mariana, Roberto Bellarmino e sobretudo Francisco Suarez ao qual Grotius copia sistematicamente. Verdade seja dito - foi Hugo Grotius (homem virtuoso e bom) um erudito vulgarizador, não um gênio criador, e nada disse que os espanhóis não tenham dito antes, desde Vitória.

Suarez,
autor do De legibus foi quem coroou os esforços do grupo, e enquanto Le Bret, Silhon e tristemente J B Bossuet reproduzem as frioleiras de Maquiavel, Lutero, Erastus, Tiago I - ainda mais amplamente divulgadas por Hobbes e Filmer - deduzia, a lei natural, o direito divino dos povos ou do povo. Havendo alias certa aproximação das formas democráticas inclusive... sem é claro os descalabros totalitários de Rousseau. Houve ensaios, discretos mas fecundos, de naturalismo político - sempre associado a uma inspiração ética Católica... Chegando Suarez a separar muito bem a política da fé e mesmo da moral pessoal, identificando-a com a administração do poder ou com o governo da sociedade tendo em vista o 'Bem comum'. Embora as esferas ainda estivessem ligadas ou articuladas havia um sincero esforço para dar ao político um conteúdo próprio ou seu, e assim uma Ética própria em termos de felicidade geral dos súditos. Maquiavel pode ter querido repudiar a certo moralismo tosco, e com razão... Fato é que ele, destruindo o falso moralismo, nada constrói em termos de ética, permitindo que um poder absoluto ou ilimitado concentre-se nas mãos do governante. Suarez busca por uma ética específica ligada a um conteúdo específico... é um construtor genial.

Lamentavelmente nossos latinos, ibéricos, espanhóis, etc não tiram proveito de nada disto... Ignoram supinamente o contributo de seus ancestrais a uma ordem social, política e ética que pode ser afirmada como universalmente relevante, na mesma perspectiva que a socrática e ainda mais vigorosa que o aristotelismo ortodoxo. Os espanhóis não apenas deram origem a uma Renascença humanista como partindo do jusnaturalismo lançaram os fundamentos do liberalismo político/pessoal e da teoria do poder popular, mais tarde assumida por Rousseau e obscurecida por seu totalitarismo e despotismo jacobinistas.

Que tudo isto tem a ver com Juan Valera?
Na segunda parte deste artigo veremos que ele é o outro homem ou espanhol genial, como - para muitos paradoxalmente - paladino de um Catolicismo tão belo, digno e esclarecido quanto o de seus predecessores Vitória e Suarez. Assim se você - apesar de Lutero, Zwinglio e Calvino terem sido bons assassinos - enche sua boa para dizer Torquemada... encheremos as nossas para dizer Las Casa, Vitória, Suarez... E se disser que a igreja papa produziu apelas entidades desequilibradas como Salvany e Murillo direi que também produziu um Juan Valera...


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