quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Algumas considerações sobre o declínio da República romana e a 'Pax augusteana'

Embora Montesquieau, Gibbon, Sismondi, Ferrero, Villa e tantos outros tenham buscado analisar e compreender a queda do Império romano, compreendida como seu progressivo colapso de Comodo (190) a tomada da cidade por Alarico, os teóricos renascentistas, por identificarem-se com a forma republicana - vigente nas cidades do Regnum Italicum desde 1085 - concentravam suas inteligências buscando compreender o declínio da República e a retomada da forma monárquica sob Júlio César.

Maquiavel, num golpe de gênio, intuiu que para compreender o que estava sucedendo as repúblicas italianas de seu tempo ou a sua idolatrada Florença, devia voltar-se para o passado e estudar o declínio da República romana, buscando suas causas. E no final do 'Discorsi' (1525? - Maquiavel com objetivos oportunistas costumava alterar as datas de suas obras) acaba por abraçar a tese polibiana - ora Spengleriana - em torno dos ciclos de civilização. Segundo a qual, ao modo dos homens, as civilizações nascem, crescem, enfermam e morrem.

Já nos referimos diversas vezes a esta construção. No entanto, como repetir é a um tempo ensinar e fixar ou reaprender: Todas as cidades eram governadas por príncipes, as vezes eletivos ou mesmo provisórios. Num determinado momento tais príncipes fizeram-se hereditários e a hereditariedade, naturalmente, descambou em tirania ou despotismo. Desde então principiaram a conspirar os aristocratas, até que efetivamente tomam o poder. Passadas algumas gerações converte-se a aristocracia numa oligarquia opressora. O povo no entanto, por ter retido na memória a felonia dos nobres ou optimates, derruba a oligarquia e converte-a em democracia ou governo popular, o qual não tarde em degenerar, transformando-se em oclocracia, demagogia ou anarquia... condições em que a monarquia é restaurada. Iniciando-se um novo ciclo.

Antecipando uma possível pergunta sobre a melhor solução possível quanto a retardar este processo degenerativo e prolongar a estabilidade, a sugestão, aprimorada por Aristóteles, encontra-se no Diálogo platônico 'As leis' e consiste no afamado governo misto ou republicanista. O qual o filósofo com suma prudência declara ser o melhor de todos. Implica ele fugir as formas puras e misturar monarquia, aristocracia e democracia. E já se divisa uma espécie de poder moderador inserido numa estrutura bi cameral. O rei, cônsul ou presidente - eleito periódica ou vitaliciamente - encarna o princípio monárquico, o pequeno senado a forma aristocrática e o grande conselho de cidadãos ou o comício a forma democrática e já se vê que temos diante de nós a Constituição da República romana, ainda mais favorecida por instrumentos como o plebiscito e o referendo, além do tribunato.

Satisfeita a possível pergunta devo tornar a desilusão maquiavélica e a petição que faz ele em torno da História para advertir que Guicciardini, seu jovem amigo e antagonista intelectual, antecipa as críticas de um Dilthey, de um Winbeldand, de um Eucken ou de um Marrou em torno de um processo histórico mecanicista, estrutural, rígido, formal, inelutável e absolutamente previsível quando não determinista. Sem negar que haja um ciclo civilizacional inelutável, Guicciardini insiste que certos atos ou fatos, quer repercutem nesse quadro, procedem do acaso ou da ação livre dos homem, não podendo ser compreendidos como resultantes de uma Lei fixa e rígida. Dentro deste quadro há considerável variação ou diversidade.

Em certo sentido Guicciardini - perdoem o anacronismo - parece insinuar o paradigma da compreensibilidade, tendo em vista a ação de elementos estocásticos ou humanos que fogem a rigidez monolítica da Estrutura. E antecipar a noção de tendências predominantes, face a noção de Leis imutáveis.

Agora tornando a república romana, sendo provida duma estrutura tão arrojada e eficaz, por que teria colapsado?

Autores de diversa lavra e separados por séculos uns dos outros - assim Bruneto Latini, Mussato, Salomonio... e mais próximos a nós: Polanyi, Arendt e mesmo Durkheim - referem-se a avareza, a busca pela riqueza privada, o aumento da desigualdade social, enfim, algo em torno das finanças ou da economia.

Para Durkheim as relações financeiras ou econômicas tendem a isolar socialmente os homens ou a afasta-los. Arendt gasta farta quantidade de papel e tinta com o objetivo de demonstrar que a expansão da esfera do econômico ou privado ocorreu as custas da diminuição da esfera do político ou público com a consequente perda de qualidade. Para Polanyi o economicismo contemporâneo destruiu os laços de solidariedade existentes nas culturas antigas e primitivas. John Gray, Roger Scruton e Russell Kirk tiveram de admitir, de bom grado ou a contra gosto que o liberalismo econômico punga contra o sentido comunitária presente nas culturas e civilizações tradicionais, o que por sinal já havia sido demonstrado fartamente por R Guénon.

No que diz respeito a Roma e o eclipse das virtudes republicanas a questão da concentração da riqueza por particulares, do luxo e da suntuosidade já havia sido apontada por mestres clássicos como Salústio e Juvenal, a quem seguiram Latini, Mussato, Salomonio, etc Alias, esta sugestão já havia sido desenvolvida por Agostinho e enfim por Ibn Khaldun num sentido que faz lembrar a Sócrates. Mesmo porque as civilizações antigas eram basicamente militares.

De fato os romanos assomam a História como um povo agro pastoril, cujos hábitos eram frugais, sóbrios ou quase ascéticos, e que por isso mesmo, ameaçados a um lado pelos poderosos e refinados Etruscos - que lhes impuseram a realeza até 509 a C - e a outro por oscos, samnitas, etc tornaram-se belicosos. O ambiente político da Itália, sua instabilidade e insegurança, definiu as qualidades militares dos antigos romanos.  E estes jamais cessaram de expandir-se pela península até domina-la.

E assim correram as coisas até as guerras púnicas ou ao menos até 146. 146 é uma data chave na História da civilização romana. Pois foi neste ano de Cipião, vencendo Anibal em Zama, conquistou e destruiu Cartago. Enquanto L Múmio destruia a soberba Corinto e conquistava a Grécia. Desde então escravos e riquezas inimagináveis afluíram a Roma e ela jamais foi a mesma. Pois como diria o já citado Juvenal, os romanos entrando em contato com outros, povos 'mais avançados' se deixaram conquistar pelos hábitos deles. Abandonando a frugalidade ancestral do mingau e das azeitonas, e tornando-se ainda mais ambiciosos.

No entanto eles ainda aspiravam por lutar e por conquistar as joias da coroa, assim a Síria e o Egito, antigos principados helenísticos e as nações mais ricas da terra, com exceção talvez da longínqua Índia... E de fato vieram a conquistar a Síria em 63 sob Pompeu Magno e o Egito em 31, após Augusto ter vencido Marco Antonio - em Accium - e fechado o circuíto do Mar mediterrâneo, agora 'Mare nostrum' ou lado privado dos latinos.

Agora consideremos as consequências de tudo isto.

Se já era difícil congregar o povo em comícios para decidir a respeito da cidade ou da Península como governar um Império gigantesco recorrendo ao povo e em tese a um povo romano espalhado por todo este Império? Se Salutati, Bruni, Patrizi e muitos outros referiam amiúde ao desafio que era congregar o povo de Florença, que dizer dos cidadãos do Império romano? A estrutura do macro estado associada a precariedade dos meios de transporte e comunicação, tornou o exercício do poder popular impensável. Sartori redefiniu nossa situação nos mesmos termos em meados do século XX. Mas estamos falando do século I a C... Sendo assim temos de admitir que um governo centralizado condizia melhor situação geográfica ou espacial do Império. Mesmo os atenienses do século V a C ou os humanistas italianos do trezentos ou do quatrocentos admitiriam a distinção... Diante disto que sacrificar? O Macro estado ou as formas democráticas?

Outra consequência - a somar-se com a econômica e com a política - é de origem militar. Mais conquistas e escravos demandavam mais guerras e mais guerras demandavam maior efetivo militar. Nos últimos cem anos da República foi Roma uma nação em campanha... E como sabemos o éthos militar - cf Nisbet - nada tem de democrático. Os Filósofos gregos e os primeiros Cristãos sabiam-no muito bem... Uma situação de conflito prolongado numa dimensão democrática não tarda a engendrar duplicidade. Por isso que das Revoluções procedem regimes autoritários (Nisbet). Tal o caso de Roma, desde o momento em que prolongou o comando dos ditadores. A partir de então alguns generais passaram a conviver por anos a fio com as mesmas tropas, a ponto destas converterem-se em clientes, lacaios ou cabos eleitorais seus. Não é por acaso que Caio Mario e Sila tiveram exércitos seus, com fidelidade jurada. E servindo-se deles puderam subverter a república, a este tempo convertida em aristocracia de poltrões senatoriais, com exclusão do povo. Por isto Sila ao penetrar o recinto da cúria com suas tropas acusa os senadores de covardia e declara que o povo nem os amava nem choraria ou lutaria por eles.

Júlio César com seus dedicados veteranos esta apto para colher o fruto maduro i é o poder Imperial, restabelecendo a monarquia.

Pois as elites estavam completamente corrompidas pelo luxo ou amolecidas.

Enquanto o povo, antes aguerrido, temos em Juvenal, passou a ser controlado pela política do 'panem et circenses'. Desde as vésperas da conquista de Cartago, pugnavam os plebeus - a gente comum - por um parte mais significativa no 'butim' ou saque que os romanos levavam aos povos vizinhos. Assim, no ano 123, sob Caio Graco, obtiveram a suprema igualdade e a redução do preço do trigo. E desde 59 pela lei Clódia, passam a ser alimentados pelo Estado, com a distribuição de rações de trigo. Desde então o Senado se sente completamente seguro. Pois o povo se acalma por completo, e abandona a arena da política.

Garantidos alguns diretos básicos e o alimento quotidiano acomodou-se a plebe.

Desde então puderam os líderes militares mais espertos, com a ajuda de suas tropas, exercer o poder sem quaisquer objeções.

Augusto foi um homem esperto, que soube colher os frutos semeados por seu tio, e em comunhão com a elite militar, completar as ansiadas conquistas e exercer um poder discreto. Foi o homem de seu tempo. Pois o declínio da República, iniciado por Mário e Sila, antecipou o caos que haveria de ser o século III d C, o qual teria antecipado o fim do Império. Prolongando-se indefinidamente o conflito entre os generais pelo comando supremo do Império. Os próprios militares do tempo de Augusto devem ter dado conta disto. No entanto nem o povo nem o senado estavam dispostos a lutar pelas antigas liberdades. Como as barrigas e os cofres estavam cheios tudo quanto eles queriam era paz e sossego ou estabilidade para gozar a vida. E como ninguém mais estivesse disposto a combater, os militares, juntamente com Augusto puderam assumir o poder, mantendo, ao menos em princípio as aparências.

A República havia declinado, indubitavelmente, mas não o poder romano. Pois por duzentos anos manteve-se o Império e até conquistou, em que pese a derrota de Teutberga, sob Varus. Ao menos até Cômodo, foi o Império um período de estabilidade e assim de recuperação, após o ocaso vergonhoso da República. Claro que não podemos compara-lo com os tempos dos Mânlios, dos Camilos ou dos Cipiões... No entanto após Mario, Cina, Sila, César, Crasso, Pompeu, Brutus e Cássio foi ele um refrigério.

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