sábado, 17 de novembro de 2018

Lei natural, inatismo, racionalidade, evolucionismo... Buscando decifrar o enigma da Lei Natural

Distinguiam os escolásticos quatro tipos distintos de Lei:


  • Lei eterna - A própria divindade enquanto Lei para si mesma e para o universo, o que engloba a lei natural extra humana.
  • Lei divina - A vontade Ética de Deus revelada através de sua humanidade assumida em Jesus Cristo ou do Santo Evangelho.
  • Lei natural - A instância da consciência que por via da razão informa-nos sobre os fundamentos do bem e do mal.
  • Lei positiva - As leis promulgadas pela autoridade externa ou política.


A lei eterna, no que diz respeito a ordenação do universo conhecemos através da ciência, no que diz respeito a vontade de Deus, conhece-mo-la por meio da Revelação do Evangelho, de modo que a lei divina, no que concerne a vontade de Deus para nós, corresponde a mesma lei eterna.

A respeito da Lei positiva somos informados por meio das Constituições e decretos do poder público.

Agora como conhecemos a lei natural?

A pergunta é de suma importância caso tenhamos em mira ou significado propriamente político da Lei natural.

Pela qual a esfera do político desprende-se da esfera religiosa e ganha autonomia própria além de um estatuto secular e pluralista que serve de base ao liberalismo pessoal.

Para tanto devemos considerar que por si só o judaísmo,, o islã, o xintô e outras tantas formas religiosas jamais levantaram o problema, jamais afastando-se do pensamento teocrático. É verdade que o atual Estado de Israel, assimilou até certo ponto este ideário produzido no 'Ocidente', o qual, sem embargo não foi produzido num contesto judaico ou mesmo muçulmano, mesmo se considerarmos a mutazila. Por isso acho fundamental perquirir a respeito de como tal ideário veio a formar-se e em que contexto religioso.

Onde e como pela primeira vez surgiu a noção de duas esferas distintas: Religiosa e Política? Pois mesmo na antiga Grécia a distinção fez-se problemática.

Quero ressaltar ainda um sério problema que só encontra solução em termos de uma Lei natural.

Para ela convergem a um tempo a opinião, paulinista, de Lutero e a de Maquiavel, para o qual a posse do poder político é um fim em si mesmo.

E já começo dizendo que a Sociedade Política, além de ter seu fim imediato que é o convívio harmonioso ou a solvência do conflito possui fins mediatos e conexos quais sejam a fruição da vida virtuosa neste mundo e o acesso ao Sumo Bem após esta vida.

Seja como for, que tem Lutero e a ver com Maquiavel?

Já o veremos e quando compreendermos saberemos, que as soluções 'políticas' do biblismo - protestante/calvinista/pentecostal/carismático - e do ateísmo/materialismo conduzem ao mesmíssimo lugar comum, ao qual não podemos chegar.

Temos de ser enfáticos - O protestantismo foi em todos os sentidos um retrocesso político. Pelo simples fato de atrelar a política a Bíblia e destarte, favorecer uma noção ou teocrática ou cesaropapista e assim absolutista. E se Maquiavel constrói seu modelo absolutista independente, a partir do relativismo, do subjetivismo e do ceticismo, Lutero constrói o seu a partir de Paulo ou do texto clássico de Romanos 13 ( Cf Skinner 297 e 348) o qual será retomado por todos os reformadores protestantes, a exaustão.

O retorno a uma política Bíblia cujas raízes chegam ao rabinismo e cuja consequência é a mais deletéria das servidões, deu-se e só podería ter-se dado através do protestantismo e por isto Figgis - cf História do absolutismo - poderá declarar que sem Lutero não teria existido um Luis XIV... E se tal afirmação lhe parece abusiva, continue acompanhando-nos amigo leitor.

E compreenda que embora, para qualquer pessoa inteligente e bem formada, Paulo seja Paulo e não Jesus, para a maior parte dos protestantes - (e a parte mais ignorante dos papistas) - que endossam a doutrina da inspiração plenária e linear - tudo quanto Paulo escreveu é Palavra de Deus. Assim as opiniões que ele Paulo emitiu e que tomou aos rabinos, como Gamaliel, são encaradas por eles como sagradas e inquestionáveis e assim o texto de Romanos treze, onde Paulo declara que o governante, seja ele que for, foi designado pelo próprio deus, sendo uma espécie de ministro seu.

Temos aqui não apenas ensaiada, mas claramente expressa a bizarra doutrina do direito divino dos reis. Os reis e governantes, sejam bons ou maus, são lugar tenentes do próprio deus, quiçá não menos que os Bispos sucessores dos apóstolos. Assim o mesmo deus que comissiona Pedro para impugnar as crenças e vícios de Nero, comissiona Nero para crucifica-lo de cabela para baixo. O mesmo deus que convoca os mártires a servi-lo constitui Diocleciano para massacra-los...

E se você perguntar ao querido Lutero porque o 'bom' deus constitui Neros, Domicianos, Dioclecianos e Maomés inclusive - para destruir a Cristandade... Ele te dirá - recorrendo ao 'mimoso' Agostinho é claro - que o bom deus assim procede com o objetivo de punir os pecados do povo ou de castiga-lo e que o mau governante é como uma punição ou penitência imposta por deus...

E ficamos a nos perguntar sobre que terrível pecado teriam cometido os apóstolos e a santa Igreja de Jerusalém para terem sido brindados com um Nero ou o que os piedosos Cristão de Roma, presididos pelo piedoso Clemente, teriam cometido para fazerem jus a um Domiciano... Ou o que fizeram aqueles que eram já mártires há gerações para terem merecido um Diocleciano. Enfim que fizeram os grandes Padres e os Cristãos do século IV para terem merecido a benção de um Maomé??? Nem perguntarei sobre que pecados teriam produzido um Gêngis, um Temerlão, um Hitler ou um Staline...

Uma coisa é absolutamente certa e notória (Releia Figgis) das injunções e opiniões nada evangélicas e tampouco Cristãs de Paulo, conclui Lutero, que o Cristão deve ser antes de tudo um súdito conformado ou um capacho do governante e que jamais lhe é permitido resistir ativamente a um governante, lutar contra ele ou depo-lo sem pecar e merecer o inferno. Todo homem sedicioso ao levantar-se contra o mau governante, revolta-se contra deus que o enviou como penitência ou castigo dos pecados.

O tirano, o déspota, o ditador, o monstro coroado, sempre deve ser obedecido, salvo se determine algo mau. Neste caso é lícito apenas desobedece-lo e consequentemente fugir, ou aceitar pacientemente o castigo imposto, sem jamais rebelar-se. É a doutrina da desobediência passiva mas tarde apresentada por Thoureau como desobediência civil.

Claro que apenas um povo indigno e vil acataria semelhante doutrina. Mas foi acatada, ao mesmos por algum tempo, em nome da Bíblia. E foi a partir dela que Bodin, Erasto, Tiago, Filmer, Hobbes, Maxwell, Bossuet e outros construíram suas doutrinas absolutistas.

Maquiavel chegou as mesmas conclusões por via totalmente distinta. Como não acreditava nem na Revelação nem na Lei natural ele não pode conectar a instituições política a uma finalidade ética que é a promoção da vida virtuosa. Jamais cogitando em qualquer coisa para além da vida política ele encarou a vida política como fim que se esgota por si mesma. Podendo defini-la como a arte de manter-se no poder e de conserva-lo a todo custo.

Chegou assim ao formalismo ou estruturalismo político crasso. Sancionando o comando de um sobre todos ou a tirania.

Maquiavel tomou esta via por descartar a noção de Lei natural enquanto fundamento da vida Ética, sentido destinado a comandar e a articular todos os setores da atividade humana - assim a religião, a política, a economia... Não havendo qualquer tipo de lei natural destinada a regular a vida virtuosa, Maquiavel tomou a Ética - e com mais razão as moralidadezinhas - por pura convenção, atendo-se ao quanto restava de concreto: As estruturas de poder e seus mecanismos.

Os luteranos jamais foram acessíveis a qualquer tipo de argumentação racional nos termos de uma lei natural, a qual sabiam estar - ao menos em parte - na dependência de Aristóteles e do paganismo antigo. Afinal Lutero, como agostiniano, retomou o dogma maniqueu da corrupção total da natureza humana, dando por certo que havia alterado nossas capacidades racionais ou perceptivas - o que nos levará a Kant, que era luterano... Houvesse ou não uma lei natural, seu funcionamento não estava no acesso das criaturas decaídas, as quais só podiam esperar socorro da divina Revelação e da graça.

A bem da verdade esta desconfiança face a capacidade racional ou natural do homem representa uma tradição agostiniana jamais perdida de vista no Ocidente e decididamente retomada e mantida pelos Franciscanos - em oposição aos dominicanos (Aquino fora pioneiro em incorporar o aristotelismo a teologia dando origem ao que chamamos 'via antiqua') - até desembocar na 'Via moderna' com Occan e enfim com Biel. Lutero, como agostiniano, bebeu nestas fontes irracionalistas e tornou-se inimigo implacável da escolástica dominicana.

Excluídas, a razão, a Lei natural e enfim, a tradição apostólica, tudo quanto lhe restou foram as sagradas escrituras as quais ele apelou decididamente, não nos termos calvinistas de um Corão ou com ênfase no Antigo testamento, mas, desastrosamente, com ênfase em Paulo e não no Evangelho. Por meio de Paulo ou do Paulinismo os elementos judaicos ou rabínicos opostos ao Evangelho obtiveram situação de destaque - assim a doutrina fetichista de governo exposta em Romanos treze - e o segundo passo, dado em Genebra, foi mergulhar de cabela no antigo testamento, o que por sinal representaria uma mudança significativa em termos políticos, mesmo quando não fora saudável.

O que quis dizer aqui, e seguindo Ribadaneyra e Possevinus é que Lutero e Maquiavel se bem que partam de princípios ou valores não apenas distintos mas francamente opostos tem seu ponto de encontro na negação ou no desprezo pelo que conceituamos como Lei natural enquanto critério Ético racionalmente deduzível.

Não saímos disto no momento presente. Pois temos a um lado a multidão dos biblistas irracionalistas e fanáticos com seu apelo insistente a uma política Bíblia ou a leis bíblicas ao menos em torno da moralidade senão da fé e a outro os ateus e materialistas afirmando já o conceito problemático de liberdade positiva - como se a liberdade fosse um fim em si mesma - já uma democracia meramente formal ou estrutural, infensa aos princípios e valores essenciais sobre os quais assentam-se os direitos da pessoa humana, e o corolário desta negação face a ética humanista, é um comprometimento servil face as exigências do mercado ou da ordem capitalista.

Colocando as coisas noutros termos, mas claros talvez: Pelo moralismo ou puritanismo de matiz bíblico, insuflado pelos fanáticos podemos chegar a algo pior do que o absolutismo assumido por Lutero. Pois a via calvinista - fundamentada no antigo testamento - do mesmo modo que o islã sempre pode descambar em teocracia, ideal que os calvinistas irredutíveis transportaram de Genebra, a Londres, de Londres aos EUA e enfim ao Brasil, espaço cujas deficiências em matéria de educação são bastante conhecidas... Já o oportunismo da via formalista, representativa ou sem espírito, sempre poderá resultar numa infidelidade que reverta em tirania ou numa opção preferencial pelo liberalismo econômico, sempre que este se veja ameaçado por um liberalismo político nos termos de uma democracia mais popular ou social.

Sem dúvida devemos compreender que não podemos esperar um verdadeiro compromisso com a 'sacralidade' da ordem democrática por parte de pessoas que não assumem os princípios e valores democráticos como essenciais nos termos de uma Lei natural ou de uma ordenação divina. Destarte a única forma capaz de conter já a avalanche teocrática que se avoluma e ao mesmo tempo de insuflar autêntica vida nessa cadáver que é a democracia formal é resgatar o velho porém sadio conceito de Lei natural. Todavia, para tanto, faz-se mister reformula-lo, desvinculando-o de qualquer solução inatista. É o quanto pretendemos fazer na segunda parte deste ensaio - Oferecer uma teoria de Lei Natural não inatista, ao menos em termos de conceito.








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