sábado, 17 de novembro de 2018

A passagem do estado social para o político

Desde que os dominicanos e jesuítas levantaram a questão sobre qual fosse a condição natural dos seres humanos, antes que fossem levados a criar a vida política inúmeras respostas tem sido fornecidas sendo a mais conhecida ou clássica a do contratualismo divulgada pelo pensador suíço J J Rousseau em meados do século décimo oitavo.

A bem da verdade Rousseau, ao contrário dos estoicos e de parte dos humanistas jamais chegou a conceber o homem como uma criatura isolada ou como um ser vagante que em determinado dia optou por associar-se a outros homens formulando um contrato social. O termo é inexato ou enganoso. Rousseau admite que o homem surge já como animal social e portanto que não cria a sociedade por meio de um contrato. Sabe ele no entanto que a convivência produz conflitos, o que o faz avaliar negativamente este convívio social. Socialmente o homem não tem paz e sossego, por isso estabelece um contrato que limita as liberdades individuais e estabelece uma Sociedade Política com senhores, súditos e leis positivas.

É a formulação que ele dá ao contratualismo em 1762 posto que Grotius, Hobbes e Locke já haviam divulgado a tese.

Antes deles os jesuítas empregavam terminologia distinta com que exprimir um conceito similar pois postulavam um 'assentimento geral'.

O problema diz respeito justamente ao que existia antes ou sobre como os homens viviam em estado de sociedade natural.

E não é difícil imaginar que viviam em pequenas comunidades familiares as quais chamamos clãs. A autoridade aqui era biológica ou exercida pelo Pai e/ou pelos familiares mais velhos num contesto familiar, quiçá recorrendo a costumes e tradições. Também não podemos excluir, a priori, algum tipo de autoridade procedente da religião... a qual era certamente arbitrária ou oportunista. Certo é que não havia qualquer instância política em termos de uma autoridade natural que não fosse biológico/paterna ou episodicamente religiosa.

Via de regra eram tais comunidades pequenas porquanto nômades, ao menos até o advento da agricultura. Não tinham a preocupação de transformar o ambiente ou sequer meios para tanto e por isso acompanhavam o movimento da comida ou melhor da caça. E conforme a seca, as chuvas ou as estações se iam transferindo de um lugar para outro.

Desde que a agricultura é inventada tais comunidades estabelecem-se e certamente aumentam de tamanho. Surgem o que poderíamos chamar de aldeias, mas se mantém a estrutura biológico/familiar, a qual inclusive torna-se matriarcal e assume formas sui generis.

Agora qual a condição destes homens?

Desde Suarez, passando por Grotius, Locke, etc muito se tem falado na fruição da liberdade ou da autonomia deste homem primitivo e portanto de sua satisfação. Se bem que Hobbes e Rousseau tenha mencionado o atrito, o conflito, o choque, etc quiçá exagerando um pouco, no caso de Hobbes. Pois já estas sociedades matriarcais e agrícolas não eram caçadoras e guerreiras como as do passado distante. Claro que ainda haviam sociedades nômades, caçadoras, guerreiras e patriarcais espalhadas pelo mundo afora, 'causando' como se diz atualmente...

No entanto a vida política num contesto urbano mais largo, surgirá, é claro em culturas de larga tradição agrícola, sedentária e quiçá matriarcal e nem poderia ter sido diferente.

Então é sobre este homem inserido nas pequenas comunidades agrícolas tradicionais que nos perguntamos. E sobre sua vida, suas condições...

Obtendo quase sempre uma resposta em torno de liberdade.

Esta visão das culturas primitivas ou de tradição familiar é totalmente equivocada. Duas coisas atormentavam aqueles homens - Primeiramente um universo religioso caótico e arbitrário dominado pelo Tabu. O qual é magnificamente descrito por S Freud em Totem e tabu. Outra questão a ser considerada é posta por Nisbet quando declara que as comunidades familiares eram sufocantes, ao menos para os membros mais jovens, devido ao controle das tradições. Havia tabus religiosos e tradições familiares a serem observados. Não era um clima de idílico de liberdade.

Que teria alterado tais condições?

Natural que a fertilidade de certas regiões próximas as margens e deltas dos grandes rios tenham passado a concentrar uma população cada vez maior, somando clãs, aldeias, vilas e criado as primeiras unidades urbanas.

Suponho, e é apenas para dar uma pincelada de romantismo... Que não poucos jovens tenham deixado suas comunidades de origem ou fugido e buscado instalar-se em tais sítios.

Num determinado momento alguém ou alguns tiveram uma percepção altamente revolucionária, isto a nível de ideia e de técnica.

Caso as pessoas se aproximassem umas das outras e trabalhassem juntas podiam transformar o meio numa escala bem maior e assim de aumentar a produção agrícola, alcançando algo além da mera subsistência i é juntando excedentes. Claro que excedentes de alimento, aquele tempo, significava o que para nós dignificam petro dólares ou coisa parecida.

A simples ideia de transformar o meio numa tal escala e de obter suprimentos em abundância foi o que serviu para aglutinar aquela gente toda.

E é exatamente aqui que entram Hobbes, Rousseau e a Política ou o surgimento das primeiras sociedades políticas num ambiente urbano.

Pois esta ampliação do convívio não podia deixar de produzir ou de potencializar o que chamamos de conflito. Assim, o sentido das primeiras sociedades políticas foi gerenciar situações de conflito, agressão, violência... impedindo que se generalizassem e assumissem as proporções pintadas por Hobbes. Provavelmente jamais atingiram, justamente porque nossos ancestrais, prevendo o que poderia acontecer constituíram a Sociedade política, mais para evitar o conflito generalizado do que para soluciona-lo.

Foi apenas neste momento que HOMENS QUE SEMPRE VIVERAM EM SOCIEDADE - e jamais isoladamente - por meio do mútuo assentimento estabeleceram um contrato, a partir do qual abriam mão da autonomia individual para passar a viver sob a tutela da Lei ou seja de um regulamento comum. Já se congregavam em assembleias familiares ou tribais há centenas de milhares de anos... pelo que foram capazes de estabelecer uma assembleia urbana e de acordar.

Assumiu este primeiro Estado político uma forma monárquica constituindo um soberano ao qual delegaram poder?

Difícil responder a esta pergunta.

A antiga figura do decano familiar, o prestígio do sacerdote e a necessidade de especialistas que coordenassem os trabalhos de drenagem e irrigação... Tudo faz supor a quase que imediata afirmação do rei. O qual no entanto - A menos que sua origem tenha sido e onde tenha sido, religiosa - deve ter exercido suas funções juntamente com a sucessora da assembleia tribal e predecessora das cortes e parlamentos. Ademais nem poderia este poder político emergente, deslocar por completo a velha sociedade biológico/familiar, a qual veio apenas a sobrepor-se.

Enfim, dado que nossos ancestrais tenham delegado poder a reis, é extremamente duvidoso que estes - salvo num contexto religioso determinado - tenham açambarcado o poder todo, por completo, fazendo-se absolutos. A menos que afirmado a partir da religião e escorado no poder das divindades, o processo porque surgiram as primeiras monarquias absolutas deve ter sido bastante lento. Assim quando o Egito é unificado por Narmer as cidades existiam já há dois ou três mil anos e o mesmo se pode dizer da Suméria, onde até Sargão e Naram Sin, não gozaram os reis de um poder divino ou mesmo absoluto.

Quanto ao mais, lamentavelmente, nada podemos saber a respeito desses reis, líderes ou chefes primitivos. Mas eu adoraria saber se podiam ou não ser depostos pela comunidade, ao menos em alguns casos... No Egito antigo, mesmo depois de se terem convertidos em deuses vivos ou em filhos do Sol podiam os faraós serem depostos desde que não cumprissem com sua parte no 'contrato' ou seja mantendo a ordem do mundo, assim as cheias e as estações... Desde que este controle não funcionasse bem, sucedendo-se cheias, secas ou calamidades ao menos os senhores feudais - Senão elementos do próprio povo - chegavam a rebelar-se (Nos três períodos intermediários) questionando o poder e a legitimidade do Faraó reinante... E isto pode apontar para tradições mais antigas e consistentes em termos de questionamento da autoridade.

Eis o quanto temos a registrar sobre tão interessante tema.

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