quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Do ritmo das Sociedades no curso da História ou do apogeu 'intelectual' de uma Civilização corresponder a seu declínio




Não me lembro mais onde li a respeito da tese segundo a qual o apogeu intelectual de uma civilização corresponde quase sempre a seu declínio social e político. Noutras palavras, o apogeu intelectual de uma dada sociedade sucede invariavelmente a seu apogeu sócio político. Era demasiado jovem, mas creio ter lido semelhante constatação em Orvácio de S Maria ou em Antonio Piccarollo num dos dois certamente.

De pronto quis compreender o significado da afirmação. E para tanto precisei ler Ibn Khaldun, Maquiavel, Nisbet e outros clássicos... E posso declarar que a tendência predominante é mesmo esta. Que o apogeu intelectual ou mesmo artístico de um povo corresponda a seu declínio, o que envolve um 'atraso' que precisamos deslindar ou compreender.

Observe o amigo leitor que aos grandes faraós guerreiros: Tutmósis III e Amenófis III sucede aquele espírito criador chamado Akhenaton, já no século XIV a C. Akhenaton é um fracasso político. Mas que avanço em termos de arte, com a quebra do convencionalismo tradicional e adoção daquele realismo responsável pela criação do busto de Nefertiti. E que avanço nos termos da religião, a ponto de segundo Freud, estribado e Breasted, ter influenciado a formação do israelitismo/judaísmo ou a mentalidade do misterioso Moisés. Pois os hebreus saem deste meio. Estiveram ali, no Egito faraônico, ao tempo dos Heka Shasut, e dali, certamente, levaram seu henoteísmo ou monoteísmo insipiente.

A respeito dos Babilônicos podemos dizer que Nabonido, outro pensador religioso interessantíssimo, representa a decadência.

Sobre os persas pouco podemos dizer uma vez que seus arquivos foram queimados pelo Macedônio e sua história não é conhecida em seus mínimos detalhes.

Quanto aos gregos no entanto a mesma constatação: O século da 'República' e da 'Política' correspondem ao ocaso, não ao zênite de Atenas, o qual corresponde a 'Era de Péricles' i é a 440 a C, iniciando-se com Clistenes setenta anos antes. A Idade de ouro de Atenas é o século V. Platão e Aristóteles florescem no século IV.

Passando aos romanos, constatamos que Cícero, Salústio,Juvenal, e outros viveram o declínio ou a degeneração da República. Já Virgílio e Tito Lívio viveram viveram sob Augusto, numa fase de estabilidade. Não no apogeu da romanidade. Já Maquiavel identificava o apogeu de Roma com o período anterior a destruição de Cartago e a conquista de Corinto. Assim a maior parte dos analistas, que identificam a aniquilação da metrópole rival como um ponto nevrálgico. Ainda segundo tais autores forneceu Catão, o antigo, péssimo conselho a República, ao aconselhar a destruição de um concorrente que a bem da verdade estimulava as virtudes romanas. Logo, este Catão, que tanto receava da Filosofia grega... Quando na verdade devia recear mais daquele luxo condenado por Sócrates. Deixemos porém os romanos...

E embora Justiniano se tenha celebrizado por determinar a compilação a que chamamos Institutas, a criação da Magnaura e a composição do Mirabiblion por S Fócio correspondem a uma fase de inegável obscurecimento político.

O apogeu do Regnum italicum corresponde ao século XIII. Dante e Petrarca ao século seguinte ou a decadência... Ficcino e outros ao século XV. O apogeu do Império Luso chega a seu termo com a morte de D João III. O apogeu das letras parte mais ou menos desta data e entra pelo século XVII com Amador de Arrais, Heitor Pinto e sobretudo com Antonio Vieira e Bernardes. O próprio Camões editou os Lusíadas em 1572... Isto é bem afastado de Vasco da Gama ou de Pedro Alvares Cabral, assim de D Manoel, dito venturoso. Apenas Gil Vicente, como clássico, foge a esta regra.

A Espanha conheceu seu Zênite de 1492 a 1598 - Cervantes publicou o Quixote em 1605, sendo sucedido. Calderon nasce em 1600. No entanto, para sermos justos, a Espanha conheceu certo brilho intelectual - Vitória, Las Casas, Soto, Banez, Cano, Mariana, Suarez, etc - durante seu apogeu e já adiantamos que isto se deu graças a descoberta do Novo mundo e a problemática por ela criada.

Se bem que Shakespeare tenha iniciado sua atividade literária nos últimos anos de Isabel, escreveu a maior parte delas as vésperas da grande Revolução. Durante cujo transcorrer e até 1600 foi produzido o grosso da literatura clássica inglesa.

Apenas no caso da França e da Inglaterra vitoriana fica problemático estabelecer semelhante distinção já porque na França a produção literária e artística segue ininterruptamente dos 'quinhentos' até as vésperas da Revolução e para além dela. E a França constitui, é claro, uma realidade social a parte neste sentido. Diga-se o mesmo sobre a Inglaterra vitoriana durante o décimo nono século. A imprensa e os meios de transporte e comunicação, vão, paulatinamente alterando este quadro geral ou a dinâmica cultural destas sociedades ocidentais modernas.

Resta-nos pensar uma competente resposta para o fenômeno social em questão.

A qual não foge ao sentido da própria evolução dos seres vivos, assim do homem.

Pois sabemos que os seres vivos todos buscam adaptar-se as mudanças sucedidas no meio ou superar algum incomodo. E superado o incomodo, estabilizam-se.

Temos assim que o incomodativo ou o desagradável estimula a busca dos seres vivos por soluções. E que o progresso biológico, social e cultural parte de situações problema.

Fica portanto bastante fácil compreender porque os momentos de mais favoráveis a felicidade política e a paz social, paradoxalmente, não produzem o máximo em termos de cultura reflexiva. Pois há uma tendência a acomodação...

Já as situações de 'crise' ou decadência social e política suscitam diversos problemas e estimulam o exercício da reflexão. Por isso os momentos em que as civilizações declinam são intelectualmente tão produtivo. Pois os homens buscam por respostas, tentam decifrar e compreender a Sociedade e o 'pôrque' de sua desagregação.

Temos assim que a República de Platão é construída face a degradação das instituições democráticas. Que as Geórgicas de Virgílio - por trás da qual subjaz a glorificação do cesarismo augusteano - correspondem a uma reação face o obscurecimento das virtudes republicanas em Roma. Que a 'Civita Dei' e M Mercator dependem do clamor ou do impacto suscitado pela queda de Roma. Que de Salutati a Maquiavel descortina-se o ocaso das Repúblicas italianas do século XIII. Que Hobbes só podia ter escrito o Leviatã após o advento da reforma protestante e os desastres causados pelo livre exame e pelo fanatismo sectário já na Europa, já na sua Inglaterra, sob a Revolução Puritana. Que Rousseau reage bem mal face aos derradeiros vestígios sociais, desfigurados, do medievalidade, concebendo aquele radical reajuste em torno da 'Vontade geral', Que Marx tinha de escrever o quanto escreveu enquanto com Dickens assistia as peripécias do Capitalismo, promissor ao menos até as primeiras décadas do século XIX... Todas estas críticas são produtos do declínio e da degradação de certos ideais.

Temos aqui uma democracia em colapso, uma república corrompida, uma cidade decadente, outras tantas democracias em colapso, o triunfo do sectarismo religioso, a decomposição da instituições medievais, a frustração das promessas acenadas pelo capital... Projetos sociais degradados ou frustrados desde o princípio. Face aos quais, os observadores, construíram anti projetos. Afinal um ideal de Comunidade qualquer só pode ser concebido partindo de uma realidade indesejável, antípoda seu. Nisbet Toda utopia é uma reação, como a de Morus foi reação a construção do totalitarismo henriquino ou da centralização do poder. Todo e qualquer projeto social é ao mesmo tempo um anti projeto enquanto rejeição ou repúdio a alguma coisa. Nisbet
Exatamente por isto temos de situar tais autores em seu quadro, de crise ou declínio, para julga-los com justeza e não apressadamente. Pois eles não vivenciaram os tempos áureos, de apogeu ou zênite. Não é a boa democracia que Platão crítica, mas a democracia degenerada ou oclocracia de seu tempo, com o espírito de facção, os conflitos, a instabilidade, etc

Já quanto a produção literária ou artística propriamente ditas fica fácil compreender que os elementos mais sensíveis da Sociedade abandonem o cenário político social e retirem-se para o ateliê, buscando refúgio nas habilidades da arte, da poesia, da religião, enfim da abstração ou da fantasia. E isto corresponde muitas vezes a uma fuga. Nem o sábio aceita o mundo 'feio' e degradante em que foi 'lançado' nem percebe qualquer possibilidade de mudança ou de transformação, e assim aliena-se, no bom sentido, recorrendo a produção artística... De modo que mesmo sem o amparo do Estado político ela continua a florescer e a brilhar, como se nada tivesse acontecido. E não poucas vezes observamos o brilho artístico ou exterior de uma dada sociedade e identifica-mo-lo com seu zênite, quando na verdade não se trata de um critério seguro.

CQD

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