segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Conhecendo o outro lado de Juan Valera II - Um liberalismo salutar



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Já abordei exaustivamente o tema dos liberalismoS, cujo S maiúsculo vem a calhar. Assim como jamais houve uma Cruzada, uma Renascença ou uma Revolução Francesa mas diversas CruzadaS, RenascençaS e RevoluçõeS francesaS, tampouco existe algo como LIBERALISMO em singular... E se os autores ingleses insistem doentiamente a respeito de tal espantalho é porque aspiram levar o capitalismo no reboque da democracia ou melhor do liberalismo político e do liberalismo moral/pessoal. E, sem embargo, não há conexão ontológica entre eles!

Como não há conexão ontológica entre aborto e socialismo... em que pese os asnos abortistas... Alias não sou contra a sociedade discutir a discriminalização do aborto em certas situações sociais, como a extrema ou pobreza ou miséria. Questiono apenas o Dogma da liberalização geral, em termos de direito atribuído a mulher e sem relação com as circunstâncias externas. Abortar não constitui direito algum quando os interessados podiam ter evitado a concepção... assim no caso das pessoas instruídas e economicamente bem constituídas.

Mas vamos ao liberal Juan Valera, a respeito do qual ignoro supinamente se assumiu ou não o liberalismo econômico. Pelo simples fato de não ter podido ler todas as suas obras. Valera no entanto apresenta-se como liberal por ter assumido, na Espanha desencontrada do século XIX, o liberalismo religioso. Leia-se liberalismo e não relativismo e menos ainda ceticismo, pois este Valera não cessa de apresentar-se como Católico, em que pesem suas críticas, sempre lúcidas e ponderadas, a respeito de como os iletrados, os fanáticos e as massas pensavam o Catolicismo...

Valera tem qualidade Católica. Por não confundir os mistérios centrais da Religião com bentinhos, medalhas, milagres, aparições, canonizações, tremeliques, etc ou seja, face a toda esta craca ou ganga que onera o Catolicismo seja o romano ou mesmo o Ortodoxo, e que tanto agrada os ignorantes.

Em política não me parece que tenha sido liberal, por ter sido embaixador dos reis, e suponho eu, menos ainda em economia.

É curioso que ainda hoje prolifere este tipo de mau Católico, ignorante ou malicioso, que fazendo guerra aos liberalismos político e pessoal/religioso - e consequentemente sustentando o totalitarismo - bem como a forma democrática, 'pegue leve' face ao liberalismo econômico, primogênito do protestantismo...

Católicos há querendo que a sacrossanta religião assuma o filho que não é dela, e que batize e crisme o bastardinho da reforma, digo o Capitalismo ou liberalismo econômico. Não odeiam apenas ao judeu/alemão barbudo com sua ditadura do proletariado - pois também eles acalentam a ditadura ou a tirania na alma! - mas também ao imortal autor da 'Ética protestante e o espírito do Capitalismo'... pois aspiram demonstrar que mamonolatria ou a idolatria do capital teve berço Católico... Pobre para Leão XIII...

O que eles não sabem ou mal sabem é que Aquino, ao tomar Aristóteles por mestre e guia, desbancou Agostinho há quase oitocentos anos. Agostinho, na Civitas Dei (Que não deixa de ser uma obra memorável - por ter primeiramente aplicado o conceito de Humanidade ou de Humanitas a síntese História) foi quem baralhou ou confundiu as duas esferas - Deus e César - perfeitamente separadas pelo Verbo divino, além de promover o regime monárquico (Vezo de que Aquino não se desprende). Além disto o Bispo de Hipona apresenta a vida política segundo sua visão maniqueísta ou fetichista, como uma espécie de castigo pós pecado.

Para Aristóteles a vida política possui um fim em si mesmo ou seja é autárquica.

Aquino fez opção de seguir Aristóteles. Quanto a igreja romana - e o autor destas linhas, que admira Aquino, não é romano, mas Católico Ortodoxo - foi canonizado e sua teologia apadrinhada pelo Papa Leão XIII. Para nós é um pensador vigoroso e teólogo respeitável.

Aquino formulou a tese dos fins estanques mas articulados. Assim o fim da Igreja ou da piedade é encaminhar-nos a felicidade eterna. Já o fim da Sociedade civil ou política é promover a felicidade humana em termos de natureza.

As consequências aqui são estrondosas: Embora enquanto princípio o poder proceda de Deus, seu objeto primário ou imediato é o povo. E temos já aqui a teoria do poder popular. Muito bem estabelecida por Aquino. No entanto Aquino respeita em demasia a Agostinho e lhe paga tributo - bem como a seu tempo - incensando a monarquia. Pois segundo crê Aquino, o povo não tarda a alienar seu poder, transmitindo-o ao governante.

Em que pese este 'senão' por parte de Aquino ele não deixa - em contraposição a diversos autores de 'Espelhos' dos séculos XVI e XVII - de reconhecer que o povo tem o direito de fiscalizar e de impugnar o exercício do poder. Justificando plenamente a rebelião caso o príncipe ou soberano anteponha quaisquer interesses particulares ou privados ao 'Bem comum'. Permanecendo, ainda aqui, fiel a Aristóteles e a seu critério, por nos exposto num artigo precedente.

Já dissemos que tais princípios não foram apenas reproduzidos mas ampliados pelos neo escolásticos de Salamanca até chegarmos ao liberalismo político/pessoal pleno, aos Direitos humanos e ao Constitucionalismo. Alias antes que os ingleses impusessem sua Magna Carta ao rei João sem terra, já as cortes espanholas haviam imposto uma carta a seu rei. Basta lembrar que durante o Reino Visigótico foi a Espanha governada pelos Sínodos de Toledo, os quais na prática funcionaram como cortes e limitaram o poder do rei. Este sistema foi amplamente exposto por S Isidoro de Sevilha e a par dele florescia o sistema municipalista implantado pelos romanos.

Mas não se havia chegado a qualquer teoria democrática. As cidades Suíças, que adotaram as formas democráticas no decurso dos séculos XIV e XV, jamais conheceram uma teoria democrática.

Quanto a simples forma democrática, Waley (1969) nos informa que a primeira cidade Italiana a adota-la foi Pisa no ano de 1085. Milão assume a dita forma em 1097, Arezzo em 1098, Luca, Bolonha e Siena cerca de 1125. Alastrando-se esta forma 'republicana' como era chamada então por toda Toscana e Lombardia. Curiosamente não temos notícia de que o Papa romano, os bispos ou sínodos a tenham impugnada como herética ou anti Cristã.... Como querem os adeptos do direito divino ou os integralistas.

As populações eram Católicas, as cidades possuíam Bispos, clérigos, monges, teólogos, etc e ninguém deu com a heresia democrática. O quanto temos a dizer é que no século XIII, que corresponde ao apogeu da Civilização Italiana ou mesmo europeia, temos, por parte de diversos autores, todos Católicos, decidida defesa da forma democrática. Assim Ptolomeu de Luca, responsável por completar o 'Governo dos príncipes' de Aquino, Dominicano e Bispo de Torcello além de confessor do papa romano João XXII. Ora este homem religioso identifica a forma monárquica como tirânica e aplica o termo Político apenas a forma democrática, declarando que o sistema eletivo sempre deve contar com a preferência das pessoas.

Seu ponto de vista foi aprovado e desenvolvido por: Brunetto Latini, Dante, Alberto Mussato, Dino Compagni, Bonvesin della Riva, Marsiglio de Padua, Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, P P Vergerio, Poggio Bracciolini, Alberti, Manetti, Matteo Palmieri, Landino, Platina... Temos aqui clérigos franciscanos, secretários papais, etc Temos assim que os primeiros teóricos ou advogados do sistema democrático foram Católicos. Ponto e basta... E as repúblicas democráticas floresceram ali aos pés de Roma e do Vaticano. A menos que Roma fosse completamente cega não teria deixado de condenar semelhante praxis, caso fosse anti Cristã.

Roma não se manifestou. Admitindo a tese tomada ao própria Aquino e aos neo escolásticos: Não cabe a Igreja, de modo algum, julgar as formas ou estruturas políticas... Pois esta função pertence a ciência política. A Igreja cabe julgar os atos do governante tomando por base a Lei natural ou os direitos essenciais da pessoa humana. Destarte seu juízo é ético e válido apenas, em princípio, para o povo de Jesus Cristo Senhor Nosso. Juízos puramente políticos a Igreja não elabora porque não lhe cabem. É o que se deduz da doutrina de Aquino, como fizeram os neo escolásticos.

Destarte quem quiser condenar a divisão, seja honesto, torne a Agostinho e condene não a Aristóteles apenas, mas a Aquino, como corruptor e a seus continuadores como corruptos. Por outro lado, admitidos os princípios admitidos por Aquino, não é possível fugir as deduções lógicas feitas por seus continuadores. Escolasticamente...

Juan Valera podia ignorar quase tudo isto. Não presumo que o soube-se ou que o ignora-se... Limito-me a declarar que conhecia muito bem as origens dos direitos humanos e da liberdade religiosa, vinculando-os a Vitória e a sua escola; e endossando-os numa época em que o sinistro Donoso Cortes tipificava a Ortodoxia... Quando penso Donoso Cortes com seu confusionismo integrista não posso deixar de ter em mente a crítica magistral elaborada por Valera.

E para tanto desejo reproduzir algumas parcas passagens suas. As quais vem a calhar nestes tumultuosos dias em que a infidelidade dos Católicos assoma aos céus:

"Meu antagonista deseja estabelecer que Catolicismo, Liberalismo e Socialismo correspondem a três escolas totalmente opostas e inimigas umas das outras e supõem que não é possível ser liberal sem ser cético ou ser socialista sem se ateu e o que é pior ser Católico sem ser servil..."


"Assim seria como se disséssemos que a escola liberal, inspiram-lhe vivo horror tanto a postura dogmática de Donoso ou Torquemada quanto a negação ousada de Proudhon ou Babeuf - A escola liberal por ter pingo de juízo causam-lhe horror os extremos do Dogma e do Anti dogma, ambos inconsistentes... pobre dela caso de ao porto 'Católico' de S Antonio em Sevilha, com o saque feito em nome de Deus e do rei aos gritos de 'Morte a nação - Viva a Inquisição e aos grilhões!' ou aos escolhos socialistas dos incêndios de Valladolid e Palência. 'A escola liberal só domina quando a civilização desfalece' diz ele, e por isso domina a Inglaterra, a França e a Bélgica... Por isso espero que jamais chegue o dia das negações radicais ou das afirmações soberanas ou seja a festa de Torquemada ou Robespierre, a apoteose de S Bartolomeu ou do terror, a exaltação dos autos de fé ou da guilhotina, dos assassinatos de judeus, indígenas ou frades. Para que tais dias jamais venha a brilhar, a escola liberal, busca distinguir todas as noções POR MEIO DA DISCUSSÃO... E PROPAGA A DOUTRINA FILOŚOFICA QUE NOS ACONSELHA A EXAMINAR DETIDAMENTE ANTES DE CRER NO MARQUÊS DE VALDEGAMAS OU NO CIDADÃO AIGUALS DE IZCO."


"Escrevendo, falando, pensando e até sonhando pode errar o ser humano. O que não queremos de modo algum é que o amarrem, que lhe cortem a lingua, que o façam mudo, que o deixem manco, que o amordacem para que jamais venha a errar... queremos a liberdade de pensar, a liberdade de andar, como queremos a liberdade de viver. Vivendo se erra pois é a vida exposição ao erro, nem por isso aspiramos que se assassine a alguém com o objetivo de evitar que erre."


"Não pode assim esta nossa terra não poderá erguer muralha que impeça a corrente do espírito humano de penetra-la. Todo bem e todo mal que esta corrente trás consigo forçosamente penetrará nossa sociedade, e temos que lançar nossos espíritos nela. Se por receio de nela cair nos retirarmos, esta corrente nos arrastará e nos levará para onde quiser. Caso tenhamos a ousadia de entrar nela, poderemos contribuir para imprimir-lhe uma nova direção, uma direção sã. Assim tomaremos parte numa grande obra, e estaremos situados entre os povos que vão a frente da Civilização. Nós que levamos a fé de nossos pais e a civilização a um Novo Mundo. Nós que tanto contribuímos para o zênite da Civilização, em que pesem as negações dos contrários, não iremos nos converter em fósseis ou em múmias, não iremos nos emparedar ou enfiar a cabeça no chão e nos separar de todo comércio humano e espiritual por receio de que nos seduzam, de que nos enganem, de que nos iludam, de que burlem de nossa inocência. Isto seria uma loucura digna apenas dos paraguaios do doutor Francia."


"Apresentas tu o Estado como uma casa, onde o bom governo faz as vezes de pai de família ou de tutor e o povo de filho ou menino e na qual o governo vela para que o pobre menino jamais fique enfermo ou jamais caia, guiando-o, tomando-o pela mão, afastando de seus lábios qualquer alimento nocivo ou lançando-o entre as grades do chiqueirinho; e ali, preso, eternamente, ficará seguro e jamais se lastimará. Ora este povo jamais crescerá..."


"Boa unidade Católica fechada essa que a Espanha fantasia. Uma Unidade Católica em luta aberta contra a informação e a liberdade opõem-se a dignidade humana e a vontade divina, a qual deseja que a ela nos submetamos não por receio dos poderes terrenos mas por amor. Não apenas quanto ao exterior, a aparência e a forma mas no mais profundo do ser... Por isso não vejo a de extinguir a ciência humana, de fechar a porta ao progresso ou de impedir que se pense e se discuta para que se creia. ANTES ME PARECE MELHOR E MAIS EXCELENTE QUE CREIAMOS MAIS FIRME E PIAMENTE TANTO MAIS PENSEMOS, SAIBAMOS E DISCUTAMOS."

"Assim se a Rebelião de Proudhon vomita blasfêmias contra Deus, a reação encetada por Donoso Cortês vomita outras tantas blasfêmias contra a humanidade e contra os dons naturais que o Senhor Deus chamou a existência. Era dignos um do outro... Proudhon arrenegava Deus e lhe declarava guerra porque não lhe revelava o segredo de fazer os homens felizes. Donoso cortês arrenegava a humanidade inteira porque não admitia a soberania de sua inteligência ou a perícia de suas opiniões. Negava aos demais o apanágio da inteligência porque não o tomavam por árbitro infalível e para que suas opiniões ficassem sendo invulneráveis cuidava de mistura-las ímpia e criminosamente com a sã doutrina da Igreja
." Assim todos os integralistas, jutamos nós...

E para encerrar este artigo selecionamos esta joia literária:






"Apesar das limitações que inquinam minhas obras, quisera por meio delas obter uma fama póstuma; quisera deixar algo que me sobrevivesse. Bem sei que não serei muito popular ou muito lido, porém dentro de cem ou duzentos anos não faltarão aficcionados por livros raros que me tenham em suas bibliotecas. Pode ser que um Salamanca ou um Gayangos de então, adquiram um exemplar desta edição a peso de ouro, pois chegarão a ser raros, provavelmente por ser esta a única edição que dou a público, assim pelo descuido com que manipularão estes exemplares, empregando-os para embrulhar qualquer coisa. Este pensamento do bibliófilo é que me há de salvar da onda do mortal esquecimento. Ele me anima, me conforta, me guia e por isso optei por publicar estes artigos.


Apenas pelo pensar e dar por certo que dentro de um ou dois séculos, se poderá dizer que por um Valera bem conservado haverá quem dê mil ou mesmo dois mil reais, dou por bem empregados os que gasto nesta impressão e o desdem que agora obtenho do grande público. Tudo se poder sofrer e suportar na esperança de que ainda haja um Valera bem conservado daqui a um par de séculos; especialmente se considerarmos que o Valera em carne e osso, ou seja, aquele que vos escreve, se vai lentamente envelhecendo, desfazendo e consumindo. Sobreviva assim meu espírito e reste algo dele neste pobre mundo, tão querido quanto ingrato, mesmo que no fundo empoeirado de uma estante e em raras ocasiões em contato com outros espíritos humanos, salvo é claro com os espíritos daqueles eruditos que folgam ler tudo quanto ninguém jamais quer ler."


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