É do ser humano buscar a paz e evitar o conflito ou a desordem, e, durante muito tempo, foi a pluralidade sinônimo de desordem ou conflito. Tolerância era algo que não se pensava e que não fazia mínimo sentido.
Apenas podemos imaginar aqueles tempos primitivos em que os deuses 'masculinos' e ferozes combatiam uns contra os outros, tal e qual seus devotos ou suas criaturas - Clã contra clã, aldeia contra aldeia, tribo contra tribo...
Hobbes explorou exaustivamente o estado feroz do homem primitivo e a condição belicosa das primitivas sociedades, instigadas pela fúria religiosa e a descoberta da América, ao menos quanto ao México e circuncaribe sugere semelhante configuração.
Caso Gimbutas esteja certa - e em parte ao menos parece estar - foi apenas após o advento da agricultura que certas culturas matriarcais, vinculadas ao culto da deusa mãe i é da mãe terra, idealizaram o que se poderia talvez chamar de primitiva cultura da paz. Ademais não lhes faltavam subsídios alimentares ou reservas... saliento aqui a presença de dois elementos relacionados com a cultura da paz, um ideal e um material: O configuração do culto em torno de uma figura maternal e a suficiência alimentar.
Nem por isto a paz consolidou-se. Posto que os povos nômades das estepes e desertos, machistas e adoradores de deuses belicosos, não tardaram a assaltar as culturas agrícolas e assim os primeiros centros urbanos. Em pouco tempo o conflito entre citadinos e nômades assumiu enormes proporções e em quase todos os lugares, declara Khaldun, os nômades belicosos venceram os povos das cidades, destruiram-nas ou instaram-se nelas. E instalados nelas lançaram cidades contra cidades...
Poucas sociedades, alias afortunadas, conheceram o que ora chamamos paz ou estabilidade, achando-se como que a salvo dos conflitos que assolavam o mundo. Uma delas foi o antigo Egito. Herdeiro de uma remota tradição matriarcal e beneficiado por suas fronteiras naturais, mal fora unificado por Menés, pacificou-se o Egito, conformando-se com as ditas fronteiras, disto resultando um multi secular estado de paz associado ao progresso material e espiritual. cf Kurt Lange
Foi na Mesopotâmia que Sargão I de Acad, após ter conquistado as cidades estado do Sul - Shumer - e unificado o pais, idealizou, por vez primeira um Império multi nacional associado a pirataria. Ele mesmo declarou ter conquistado todas as terras existentes desde o Mar inferior ao Mar superior e é certo que seus exércitos ou hordas chegaram as praias do Mediterrâneo. Tampouco o Egito ignorava a existência de tais terras enquanto edificava suas monumentais pirâmides. Sargão, como disse, não era asiânico ou sumério, vindo do Sul, mas sêmita, vindo do Norte, filho de uma cultura oriunda dos desertos, preponderantemente machista e adoradora de deuses guerreiros. Foi esta cultura que predominou ao Norte, na montanhosa Assíria e que a tornou tão diversa da Babilônia situada mais ao Sul.
Sargão jamais disfarçou sua ideologia - se é que assim podemos chama-la - oportunista ou prática (da pilhagem) e tampouco, creio eu, seu neto Naram Sin, o qual considerava-se deus vivente sobre a terra. Em algum tempo posterior no entanto, o primitivo imperialismo refinou-se, convertendo-se em veículo de uma sonhada unidade, que seria vínculo de uma paz eterna. No entanto para que a dita paz se concretizasse era necessário suportar as guerras de conquista, e sofre-las, o que nos faz lembrar a ditadura do proletariado na teoria marxista, i é o inferno que deve preceder o paraíso... Paradoxalmente o ideal da Unidade ou do Império foi que acendrou os conflitos e alimentou as guerras.
A partir desta perspectiva nacional ou imperialista as cidades estados sempre foram encaradas como um estádio ou fase, jamais como algo definitivo ou perfeito. Para os imperialistas de todas as épocas o sistema das cidades estado sempre foi visto como algo confuso ou caótico tendo em vista seus pequenos conflitos, que de fato eram contínuos. Já nos tempos do citado Sargão não só alguns acadianos, mas até mesmo alguns sumérios, devem ter visto as coisas por este ângulo e acreditado que a unificação imperialista extinguiria as guerras e consolidaria a paz.
Tanto as cidades estado gregas, quanto as da antiga Etrúria e as da Itália medieval, não deixaram de produzir a mesma impressão, não apenas quanto a seus inimigos externos, inseridos noutras culturas, mas certamente entre alguns de seus próprios habitantes. Em todas cidades estado da antiga Grécia e da Itália medieval houve um grupo maior ou menor de Imperialistas, seduzidos pelo ideal de uma unidade política universal, cujo fim último seria a extinção de todas as guerras e a instauração de uma paz perpétua.
Sem que os feudos equivalessem a cidades, não deixavam por isso de - ao menos segundo o costume - de constituírem uma instância social autônoma. Já em Portugal e Espanha damos com os municípios, cujas origens, romanas ou árabes, ainda são exaustivamente discutidas, e que gozavam de larga autonomia. Havia ainda a Igreja representada pelo poder episcopal, fundamento da economia religiosa; as universidades, as corporações, as guildas, as ordens religiosas, etc Uma constelação de coletivos ou comunidades que subsistiam a par do poder político, considerado por muitos como insipiente.
A partir do protestantismo - incapaz de afirmar-se como autoridade religiosa supra pessoal e objetiva - de um capitalismo tolhido em suas ambições e de um unitarismo político centralizador, o quadro acima descrito era, como já dissemos caótico, confuso e até alarmante. Posto que entre tantas comunidades ou grupos sociais era o conflito uma constante e pequenos conflitos estouravam a todo instante entre feudo e feudo, cidade e cidade, diocese e diocese, etc Nem era o ideal da 'comunitas comonitorum' perfeito, nem a todos agradava...
Durante a alta idade Média, quando o militarismo dos senhores e cavaleiros constituía o único ou principal objeto daquelas comunidades, constituiu-se um quadro realmente pavoroso, que resolveu-se apenas por meio das Cruzadas. As Cruzadas no entanto, por diversos fatores, propiciaram outras formas de ser e de existir, através de sucessivos Renascimentos, no quadro da própria Idade Média, deles resultando o que chamamos de baixa Idade Média, momento em que floresceu a constelação acima descrita e em que os conflitos conheceram significativa atenuação. Em que pese os ensaios, incipientes, de unificação e centralização nacional, a partir daqui promotores de outras tantas guerras. Estas no entanto eram justificadas com apelar-se a unidade nacional ou imperial enquanto vínculo da paz.
Enquanto frutos de uma conjuntura específica - a luta entre o Império e o Papado - Maquiavel acreditava que as cidades estado italianas não teriam como manter-se a partir do momento em que uma das partes saísse vitoriosa. E por isso, voltando-se contra a autonomia daquelas repúblicas, endossava uma unificação política em termos de Itália, a qual servisse de contra peso ao Império e ao Papado... Político sagaz, ele não podia crer que meras cidades estados, rivais umas das outras, fossem capaz de resistir as pressões exercidas por um inimigo externo unificado. A partir deste princípio realista, a ser considerado ainda hoje, ele recomendou uma unificação a qualquer preço, sem considerações de postulados éticos.
Quanto ao resto da Europa outro era o fator em fermentação, e estava inserido em cada estado após o Renascimento econômico. Pois as comunidades medievais amparadas pela cultura ou pelo costume não correspondia as expectativas em torno das mudanças a serem implementadas no que concerne a produção. Tampouco facilitavam as operações financeiras... Além disto havia a instância eclesiástica, 'proprietária' da moral ou da ética. Sejamos claros - A coesão comunitária presente na I média e paradoxalmente associada a multiplicidade das formas sociais não facilitava as coisas para o capitalismo emergente... Tinha de ser debelada e não apenas debelada mas satanizada para sempre. Para os que sonhavam com transações econômicas lucrativas, unidade e centralização política e um controle ético fragilizado a Idade Média só podia ser trevas.
Tinha a Idade Média Cristã dois grandes adversários, os quais estão na gênese da modernidade: O ethos econômico ou economicista e a centralização política em torno do estado nação. Mas eles, por si sós, enquanto simples interesses prosaicos, não tinham como legitimar-se. Face ao poder da Igreja e do universo cultural por ela surtido não tinham o economicismo e o estatismo emergentes como abrir quaisquer brechas naquela constelação. Precisavam aquele tempo de uma instância ou poder espiritual que desse início a grande revolução e justificasse suas aspirações. Por isso se diz e afirma, com absoluta exatidão, que ao fim da Idade Média e nos primórdios da Idade moderna a revolução tinha de ser religioso. E foi.
A religião ou um setor adaptado da religião tinha de facilitar as coisas para o estado e o mercado emergentes e por isto, ainda hoje, em 2019, deve o estado centralizado e economicista ser grato a esta forma religiosa e beijar-lhe os pés. Salvo devido a atuação de algumas almas sinceras e honestas o Estado totalitário e a ditadura do Mercado nada temem por parte do protestantismo, justamente por ser ele, uma de suas fontes.
A partir da primeira grande Revolução moderna, inclusive com marcado recurso a força, as coisas deslancharam bastante rapidamente. Pois dirão os dois Weber, o romanismo - em parte continuação do Catolicismo Ortodoxo - sendo tradicional, conferia aquela sociedade um ritmo de transformação bastante lento, o qual jamais viria a ultrapassar o ritmo interno da Grécia, de Roma ou de Bizâncio, a menos que, por intermédio de uma nova religião ou de um novo padrão de Cristianismo - não tradicional - algum princípio dinâmico, fosse injetado naquele corpo social. O protestantismo foi que injetou, primeiramente no organismo religioso - alma daquela sociedade - este elemento dinâmico, caracterizado pelo subjetivismo e pelo individualismo.
Onde quer que o protestantismo tenha sido introduzido a eliminação do poder religioso - representado pela hierarquia papista - culminou numa transferência de poder para o estado secular, o qual, assumindo a esfera daquele, torna-se total, centralizado e absoluto. Na medida em que os Bispos cedem espaço a pastores protestantes, que são funcionários públicos remunerados, a unificação nacional ou regional converte-se num caminho sem volta. Desde que a Igreja Católica fragmentou-se e que - no cenário protestante - as pessoas foram, muito rapidamente, perdendo a fé na religião, o vínculo da unidade - acompanhado por certo misticismo que virá a converter-se numa religiosidade nacionalista - vai sendo mais e mais transferido para o estado político centralizado, e consolidando a centralização.
Este processo de acumulo de poder por parte do Estado foi tão rápido que Henrique VIII - de carona na Reforma - e seu filho Eduardo governaram como senhores absolutos, não menos que Maria, Isabel e Tiago. Mesmo num pais papista quanto a França, onde a oposição feudal, por oportunismo político, congraçou-se com o calvinismo, ao cabo de um século teremos um Luis XIV, o qual segundo a expressão cunhada por De Figgis 'Jamais teria existido sem Lutero.'. Desde que manifestaram-se os estragos sociais advindos da Reforma protestante, os católicos perplexos, metendo os pés pelas mãos, passaram a desconfiar de todos os tipos ou formas de variações, mesmo profanas ou seculares, precipitando-se, da multiplicidade de formas sociais para precipitarem-se no abismo monolítico da unidade. Fortaleceram assim o movimento iniciado pelo protestantismo, como endossam ainda hoje o capitalismo... Sempre buscando contrapesos face ao protestantismo...
Importa saber que esta consolidação de um estado unitário, centralizado e absoluto não foi o fim de tudo. Ora, esta unificação, justificada pelo protestantismo ou desencadeada por ele, foi financiada as expensas da burguesia. Foi ela - apud Huberman 'História da riqueza do homem' - que emprestou ou doou consideráveis somas aos príncipes ou senhores mais poderosos de modo a que unificassem seus domínios suprimindo as aduanas feudais, municipais ou citadinas. Além disto, o poder político central unificava pesos e medidas, estabelecia um padrão monetário e simplesmente declarava nulas as tradições que porventura limitassem a atividade econômica. Por isso, durante algum tempo, o interesse do monarca e da burguesia foi o mesmo, e caminharam juntos.
Durante todo este tempo, em que o capitalismo apenas afirmava-se e ensaiava seus primeiros passos, buscavam os monarcas subordina-lo ou controla-lo por meio do monopólio régios e dos impostos, quiçá imaginando que sempre seria assim. No entanto, já em 1628, a burguesia inglesa, senhora do parlamento, ousou dizer não a seu monarca, disto resultando grave conflito e o envio do soberano ao cadafalso. No momento em que a burguesia em franca expansão prescindiu do apoio do Estado absoluto, passando a encara-lo como um prejuízo, os fisiocratas e seus sucessores, partindo do modelo científico, físico newtoniano, elaboraram uma teoria que dispensava o adjutório do poder político, lançando os fundamentos do liberalismo clássico. Um dos sinceros fautores desta fé ingênua foi Adam Smith... Em momento algum o elemento humano, que envolve as relações econômicas, foi considerado. Tanto o irracionalismo, quanto o voluntarismo e o erro, sempre presentes na ação humana, foram desconsiderados pelos adeptos desta teoria. Sendo aprioristicamente eliminado o tema da indeterminação, posteriormente retomado - numa falsa perspectiva - pelo kantiano Hayek.
Concomitantemente a este movimento rumo ao economicismo liberal - que afirmasse concretamente a partir de 1830 - houve, desde a rebelião dos camponeses em 1528, um clamor por liberdade da parte do povo ou da gente comum... O qual não podia deixar de crescer na mesma proporção desde que os burgueses principiaram a acometer o estado absoluto. Já na Revolução inglesa estes elementos populares constituem uma poderosa facção, assim chamada niveladora. Na Revolução francesa, por vez primeira, uma facção moderadamente popular chega ao poder com Robespierre e, após sua queda,. torna a conspirara com Gracco Babeuff. Até 1800 puderam os revolucionários de segunda classe ou das classes baixas, ser manipulados e burlados pelos burgueses, aos quais se haviam unido com o objetivo de eliminar os senhores absolutos, da mesma forma como estes haviam debelado as comunidades ancestrais. Após 1800 e ao cabo de todo século XIX os deserdados - ao menos quanto ao método filhos da reforma - se esforçarão para levar a Revolução - seja a de 1528, a de 1628 ou a de 1789 - a seus termos finais...
Importa saber que a cabo deste projeto, que era eliminar as comunidades tradicionais postas entre o individuo isolado e o poder político central e todo poderoso, e eliminando-as reduzir as situações de conflito jamais veio a concretizar-se. Eliminou-se a mediação da igreja antiga, eliminaram-se os privilégios das universidades, mosteiros, municípios, corporações, etc mas não os conflitos ou as guerras, as quais de limitadas e concomitantes - como na velha ordem - passaram a ser colossais, duradouras e totais, inda que periódicas. A ponto de abalarem o continente como um todo, como a guerra dos trinta anos, a própria revolução francesa ou as duas grandes guerras mundiais. Jamais os pequenos conflitos, generalizados durante a alta Idade Média, haviam posto em risco a existência da civilização ou mesmo da espécie a exemplo das conflagrações totais dos últimos séculos e se Pinker tem razão quando declara que a modernidade alcançou a redução do número de conflitos, na medida em que os pequenos domínios de outrora converteram-se em macro estados, ignora ou finge ignorar que os conflitos da modernidade foram muito mais amplos desastrosos ou avassaladores.
O fato de que - a partir dos 1700 - as nações europeias passaram a temer umas as outras ou de que a fórmula da Inglaterra como fiel da balança funcionou durante longo tempo não bastou para evitar a guerra Anglo francesa ou as guerras napoleônicas, juntamente com a Revolução francesa, prenuncio de algo muito pior - 1914 e 1939! Por outro lado, desde 1945 não cessaram os EUA de produzir ou de gerenciar outros tantos terríveis conflitos em torno do globo. Por fim nem o Estado absoluto ou o Império e tampouco o deus Mercado bridaram-nos com aquela Era de ouro com que sonhavam já os antigos sumérios... Vangloriam-se capciosamente de terem reduzido o número das guerras - que a religião e as pequenas comunidades conflitantes multiplicavam... Para brindarem-nos com guerras ainda mais desastrosas. Posso dizer enfim que o macro estado e o mercado engaram-nos sordidamente. Temos assim de retornar - criticamente - a nossas tradições sociais, anteriores a grande revolução protestante.
A suprema vergonha é que parte dos intelectuais 'católicos' ainda não tenha feito isto e buscado soluções Católicas na Tradição social da Igreja, mas ido beber nos poços salobros não somente de Marx mas acima de tudo dos liberais economicistas, poluindo-se com suas teorias materialistas e naturalistas. E pouco vale atirar pedras aos marxizantes da parte do erro capitalista. Esta mais do que na hora dos Cristãos Católicos desvincularem-se não apenas do Marxismo mas antes de tudo do Capitalismo, que é uma ideologia alimentada pelo protestantismo a partir de sus rebelião.
Fontes - Robert Nisbet 'Os filósofos sociais' e
Alfred Weber 'História social da cultura'
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