John Gray - na Anatomia - em suas reflexões, insiste repetidamente na incompatibilidade irredutível de certos conceitos ético/valorativos como ponto de partida para a elaboração de sentidos políticos conflitantes. Há por trás disto a pressuposição instrumental segundo a qual as pessoas adotam uma determinada forma política com o objetivo de legitimar os valores que norteiam suas vidas. E não podemos duvidar de que a maior parte das pessoas assim procedam e julguem as teorias ou seus resultados concretos a partir de valores estanques e unívocos.
Diante disto a saída apontada por Gray, se bem o compreendemos, gira em torno de um ceticismo ou relativismo ético a que chama pluralismo. Pois ele julga que as pessoas prendem-se metafisicamente a um determinado valor e a visão política que dele decorre, julgando-as verdadeiras e passando a combater ferozmente as demais. O máximo que ele pode dizer é que essas pessoas devem tolerar as visões contrários ou opostas que procedem de valores divergentes.
Por isso ele condena veementemente não apenas o espírito jacobinista, que busca expandir belicosamente a ordem democrática, mas o simples espírito democrático que encara a ordem democrática como a única aceitável face a aristocracia ou a monarquia. Claro que ele sabe desvincular, com maestria a pura forma ou estrutura democrática dos Liberalismos Político e Pessoal, apontando para a boca do abismo - que é o formalismo vazio, e enfim para o fenômeno monstruoso do totalitarismo democrático, alias já presente em Rousseau, o 'Hobbes' da democracia...
Evidentemente que sua análise recorda, de longe, a análise estrutural, realista e funcional a que Aristóteles submeteu as formas políticas todas, buscando legitima-las teleologicamente através da meta do 'Bem comum'. Todavia não é menos verdadeiro, que o mesmo Aristóteles - aberto a aceitação de qualquer forma política - antecipando Platão, nas leis, e a própria organização da República romana, aponta o sistema misto ou republicanista como sendo o mais adequado a vida social.
Maquiavel no entanto, apelando a experiência faz duas declarações bastante interessantes. A primeira delas diz respeito ao reduzido número de exemplos históricos alusivos a bons monarcas. E se recorrêssemos a Voltaire, ele nos diria que até mesmo as páginas da suposta História sagrada ou da monarquia controlada por deus (de Judá e Israel) não faz exceção a regra... Para cada Pedro II há centos de Hitleres, Timures, Stalines, Ivans, etc O que nos ela a tese do poder absolutamente corruptor...
A outra alegação é até mais filosófica. O povo ou a multidão, correspondendo a diversos cérebros, via de regra, decida melhor e governa melhor, desde que educada é claro. Devemos convir com Aristóteles, Ortega y Gasset, Patrizi e outros em que a Oclocracia ou governo das massas incultas e bárbaras seria pior do que o governo aristocrático ou nobiliárquico. Assim, caso tenhamos de escolher entre "O domínio só da nobreza e o domínio somente da plebe, que o governo fique nas mãos da nobreza e não da plebe.".
A bem da verdade não há mesmo receita de bolo ou bula de remédio para o problema das formas políticas. No entanto a prudência e a razão parecem recomendar ou a policracia de Atenas ou o regime misto - republicanista - da Roma anterior a César.
Sou até levado a concordar com Gray e antes dele com Guicciardini no sentido de que outras culturas e sociedades conservem as antigas formas monárquica ou aristocrática até que a consciência democrática surja a partir delas mesmas. O problema aqui é mostrar-se tolerante com a instalação de regimes tirânicos ou despóticos em sociedades que conheceram ou conhecem as formas democráticas. Claro que as formas democráticas por si só não são perfeitas. Há o problema latente do economicismo, por exemplo. De modo que nossas formas democráticas carecem de uma orientação ética, a qual lhes apure e depure. No entanto a precariedade das mesmas não justifica sua substituição por formas totalitárias ou ditatoriais. A solução deve dar-se no sentido oposto - por mais democracia e menos pressão por parte do poder econômico.
Seria pedir demais aos cidadãos conscientes, herdeiros do pensamento de um Cícero, de um Mussato, de um Latini, de um Marsiglio... que tolerassem o desabrochar e o florescer de principados autoritários no berço das democracias antiga e moderna. Olhar o agonia, a crise e o colapso das formas democráticas ocidentais com indiferença constituiria para muitos de nós uma traição, senão um sacrilégio e é aqui que não podemos acompanhar Gray em seu comodo relativismo, já ético, já político. Mesmo admitindo o papel da consciência social ou pessoal nós encaramos o exercício da liberdade como um valor ôntico ou essencial, mesmo quando assumimos a doutrina da liberdade negativa ou instrumental i é para a verdade. Pois como disse Valera a democracia é justamente isto - Um terreno livre de todas as peias, a partir do qual podemos exercer uma atividade livre, embora toda atividade tenha um fim e o fim da atividade intelectual seja a Verdade e o fim da atividade ética o Bem.
A parte construtiva de Gray - Mesmo admitindo que ele não percebe no bem, na verdade e na beleza, nada mais que convenções - (E ela é atual) diz respeito a nossa visão estanque, compartimentada ou desarticulada de virtude. Erro cabal mas comum a Humanistas e a Cristãos... com a decorrente cristalização do sentido político. O analista conservador, de modo geral, seleciona, argutamente três valores perfeitamente distintos. Assim a Liberdade, a Paz e a Justiça, declarando que nossa civilização não cessa de contrapo-los uns aos outros, construindo sentidos políticos contraditórios que vivem a se chocar...
Deve, creio eu, ter lido a análise penetrante do florentino. Maquiavel - com a sagacidade que lhe é peculiar - já havia relacionado a opção radical ou prioritária pela Paz com o modelo conservador e assim com derivativos em torno da estabilidade, da tranquilidade, da imobilidade social, etc em torno dos quais constroem seu ideário. Do outro lado situa os partidários da Liberdade - Liberais Políticos ou Pessoais - os quais em nome da própria dignidade estão sempre postos a sacrificar os derivativos acima, não recuando mesmo face ao conflito, a violência, a força, ao tumulto, a instabilidade, sempre que necessário for. Não prezam como dizem uma paz de escravos ou a porção do cão acorrentado a parede.
Gray - e nós com ele - acrescentaria, a visão de Maquiavel, um terceiro grupo, os partidários da justiça ou progressistas ou ainda - caso levemos em conta que Platão era justicionista - reacionários/progressistas (parece paradoxal mas não é). Estes concordam com os Liberais no sentido de sacrificar a paz as exigências da justiça, admitindo pagar tributo a insegurança, a instabilidade, a confusão, etc caso seja necessário. Mais, alguns deles - os totalitários e despóticos - admitem inclusive sacrificar a própria liberdade as exigências da justiça. Assim os radicais.
Ambos os grupos em questão concordam que a paz não pode ser encarada como valor supremo. A ponto de abraçarmos com fervor uma paz indigna ou injusta. Claro que a paz deve ser estimada ou prezada, mas apenas até certo ponto. É a paz um valor derivativo ou relativo, que deve sempre estar conectado com a liberdade e com a justiça, os quais estão bem mais próximos do absoluto.
Será este o sentido do Evangelho ou de Jesus Cristo. Muitas vezes apresentado como pacifista radical, a semelhança de Tolstoi, Gandhi ou Thoreau. É indubitável que Jesus amasse a paz e a tivesse em conta de importante valor. A ponto de inclui-la nas bem aventuranças. E quanto a esfera da vida pessoal ou provada de sancionar a não violência ou a não agressão, além de condenar terminantemente a vingança. A questão é se ensinou-nos já na vida pessoal já na vida social a suportar uma paz indigna ou injusta em nome da religião.
Aqui parte das pessoas costumam sair-se com o texto clássico do 'dar a outra face...' e o exagero oposto é toma-lo por metáfora. Dar a outra face é de fato uma ênfase, no sentido de jamais dar vasão a cólera e exercer a vingança. Não esta contra V Ihering, quando declara que buscar a justiça face a uma agressão qualquer faça parte de nossa própria dignidade. O Cristão agredido ou prejudicado na esfera da vida pessoal sempre poderá ou deverá recorrer aos magistrados ou ao tribunal, pois não é isto vingança e sim demanda pela justiça.
Agora em que me baseio para dizer tais coisas? Acaso não estarei fugindo a tradição, livre examinando como Lutero e transtornando, criminosamente, o sentido da palavra de Cristo? Não, não fugimos ao Evangelho, mas recorrendo as ações ou ao exemplo de Nosso Senhor podemos compreender melhor o sentido de suas palavras.
Assim quando é esbofeteado pelo oficial do sumo sacerdote, Jesus não fica calado, mas replica: Se mal falei, demonstra; mas se bem falei porque me bates? Como quem demanda por justiça, mesmo sem saber que não seria atendido. Mas se sabia que não seria atendido porque demandou? Para dar-nos exemplo. Para dar exemplo aos que haveriam de crer e estimula-los a perseguir a justiça!
É como dissesse: Se eu falei algo errado tens razão em bater-me, mas se eu falei a verdade com que direito me bates?
Esta embutido nesta pequenina frase a própria definição de justiça: Dar a cada um o que lhe convém. Assim punir o que mente e premiar o que declara a verdade!
Podemos declarar que a justiça faz parte do Evangelho, e a demanda, e o clamor pela justiça, tal e qual o apreço pela paz. E nem pode ser Jesus a favor de uma paz social que seja injusta. Justiça e paz devem abraçar-se e caminhar juntas.
Assim a liberdade. Posto que Jesus reconhece o direito dos hierosolimitanos que se recusavam a crer nele, além de declarar ter se manifestado para tornar o homem verdadeiramente livre. Não falsamente livre ou livre pela metade apenas. Claro que a liberdade parte antes de tudo do interior do homem e por isso diz Jesus que o ímpio pode tirar-nos a vida mas de modo algum atingir a alma e contamina-la. Fica de algum modo assente que também o ambiente externo, o mais condizente com a condição livre do homem, deve facilitar ou promover esta liberdade externa e por isso o Império romano procedia com dolo ao martirizar os primeiros Cristãos.
Disto se segue que a liberdade também é valor precipuamente evangélico, que acompanha o espírito, e onde há espírito há liberdade e não há espirito sem liberdade.
Temos assim que a proposta do Evangelho não se cristaliza em torno de um destes valores apenas, qual fosse estanque ou unitário, com a exclusão dos demais, mas conecta-os organicamente uns aos outros ou articula-os hierarquicamente. É uma visão harmoniosa, não sectária ou radical.
É a paz qualidade preciosa, mas relativa ou seja sempre que associada a realização da liberdade e da justiça com a exclusão das quais perde seu sentido e se torna indigna. Por isso os Cristãos buscam sempre e antes de tudo resolver os problemas da liberdade e da justiça pela via democrática, legal ou institucional, não deixando inclusive de exercer a desobediência cívil de Thoreau caso necessário seja e em seguida de rebelar-se e de exercer a violência - nos mesmos termos de G Sorel - caso seja necessário. O que deve ser feito sem mínimo constrangimento. Tal a clássica doutrina da guerra justa e a doutrina consequente da justa rebelião e do tiranicídio. Tudo isto é doutrina Católica, Ortodoxa e clássica, assente na nossa tradição e na alta teologia.
Partimos de Marsiglio, Mussato, Latini, Salutati, etc passamos por Tolstoi e Thoreau, mas, se preciso chegamos a Sorel. Pois não admitimos paz de escravos, servil ou indigna.
Após a paz segue a liberdade. Não como fim em si mesmo - a própria atividade não é fim em si mesma - mas como via de acesso a Kalokagathia. Embora não constitua a Liberdade um fim em si mesmo, constitui um precioso valor pelo simples fato de corresponder ao curso natural em que nós, seres humanos, devemos nos desenvolver. A liberdade é nosso caminho e não podemos prescindir dela o negocia-la. Por isso os que costumam isola-la e opo-la a justiça com o objetivo de nega-la cometem um erro terrível. Optar entre liberdade e justiça será sempre um falso dilema. É necessário conserva-las ambas, e onde falta a justiça, combater por ela, sem jamais suprimir a liberdade.
É assim a liberdade necessária. É valor necessário mas não suficiente e não nos podemos satisfazer com ela caso falte a virtude mais excelente em termos qualitativos e propriamente divina, que é a justiça. Deus não é livre. E não pode deixar de ser justo.
Assim a mesma relação da paz com a liberdade se reproduz na relação da paz com a justiça, devendo a paz ceder. E o Cristão amando e cultivando a paz; e repudiando a agressão, não se torna pacifista ou ao menos pacifista crasso. E sendo assim jamais será conservador. Exceto se a sociedade a ser conservada for livre e justa e se os valores da liberdade e da justiça realizarem-se nela, do contrário...
Será o Cristão ou o humanista racional, Liberal e sempre Liberal, especialmente quanto a politica e a ética (religiosidade). Como seja justicionista, solidarista, comunitarista, socialista pelo simples fato de jamais perder a noção do outro e alienar-se dele. Será solidário, jamais egoísta. Assim os termos liberal e social ou socialista, se bem compreendidos não se excluem, se articulam e completam.
Portanto não há este homem de escolher ou de optar entre qualquer dos três valores mas de cultiva-los justos, organicamente. E de construir um sentido misto - Liberal, Social e quanto possível em conexão com a paz ou pacífico. Pacífico sem ser pacifista, social sem ser totalitário ou comunista e liberal sem ser economicista ou capitalista. Situará a comunhão no plano da economia, o liberal no plano da política e a paz como objetivo prático.
Destarte não precisaremos relativizar, com grave risco, tais valores, pelo simples fato de podermos coordena-los.
Relativizar a justiça ou a ética como costumam fazer or teóricos do direito puro, como Kelsen e Ross, equivaleria a negar a lei natural e a solapar os fundamentos do liberalismo pessoal e político, dando-o por meramente convencional. Relativizar a liberdade reforçaria ao máximo a negação acima. E o resultado disto tudo seria fortalecer o Estado, alias e inclusive, totalitário e despótico, até chegar ao absolutismo, ao direito divino, a servidão, ao escravismo, ao nazismo e a outras tantas culturas de morte, venenosíssimas, sempre.
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