segunda-feira, 1 de maio de 2017

O sentido mais íntimo de 'Crime e castigo' ou o problema de Raskolnikoff

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Acho irrelevante ficar discutindo se Capitu traiu ou não o Bentinho. É algo que não me adiciona nada.

Adoro a Trilogia machadiana (Digna de um Dostoevsky, de um Dickens, de um Balzac ou de um Eça - Os mestres supremos!) e por isso digo que há muito mais coisa a explorar-se nela - Digo de relevante - do que as aventuras de Dna Capitu e seo Escobar.

Coisa de maior quilate toca a Raskolnikoff. Poucas personagens tão interessantes ou fascinantes quanto ele. Ocorrem-me apenas o Sinuhe de Mika Watari, o Imperador Claudio de Graves, Dna Lola e mana Rosa da Sra Leandro Dupré...

No entanto Raskolnikoff e mesmo Razoumikhine parecem-me ultrapassar a todas.

Durante quase quinhentas páginas a obra toca aos motivos que levaram Raskolnikoff a fazer 'aquilo'... Quero dizer assassinar a agiota ou o 'verme desprezível', mais sua irmã Isabel, a adela, com um golpe de machado no sinciput, estourando-lhe o crânio.

No entanto a resposta é dada apenas na última parte durante a confissão feita a Sônia.

Após sucessivas tentativas... De modo que podemos imaginar uma cebola tendo suas cascas removidas, uma após a outra, em direção do interior.

Assim Raskonicoff vai analisando a si mesmo a partir da consciência até chegar aos meandros mais sombria da inconsciência e fornecer-nos a resposta mais apropriada.

Já no começo da obra nos deparamos com a afirmação de que ninguém conhece melhor o homem do que ele mesmo.

Eis porque o ponto culminante da obra é a introspecção feita pelo filho de Pulqueria Fedorovna no quarto da prostituta...

Antes que alguém mais afoito suponha que lá foi ter o homem com o propósito de obter uma mera noite de prazer ou para transar, adianto que não.

Em que pese a admiração confessa de Freud por sua obra, o clássico russo não é freudiano na plena acepção da palavra. Svidrigailoff tem via sexual desregrada por assim dizer, sem que por isso sua personalidade deixe ser bastante rica e complexa. Ali a sexualidade não assume proporções 'desmesurada' e tampouco a religiosidade; e a vida ou melhor a tragédia humana jamais se diluí em qualquer uma dessas áreas sendo absorvida por elas. Há sexualidade, há religião, mas a vida ou melhor o drama da vida é muito mais amplo e podemos dizer que Dostoevsky esta muito mais próximo de Adler do que do primeiro Freud, i é, do Freud de 1900.

Nem mesmo o economicismo capitalista/marxista toca ao fundo da questão humana na perspectiva do grande Mestre.

Há algo maior, mais amplo e mais profundo para além da fé, da sexualidade ou da economia.

De um modo ou de outro, de uma forma ou de outra, de qualquer maneira este homem quer Ser ou afirmar-se. E esse desejo de ser, de afirmar-se, de poder, de imortalizar-se é que consome o homem. É existencialismo puro porque o drama do homem é existir. Existo. Mas como prolongar esta existência na memória coletiva da humanidade?

Lembra de algum modo a busca de Aquiles e de Alexandre pela glória.

Tomemos porém as falsas pistas.

Por que mataste a velha Raskolnikoff?
A primeira resposta oferecida é trivial -

Matei porque se tratava de uma agiota sem sensibilidade ou coração, um ser inútil, uma parasita, etc O que suscitou meu ódio.

Mas será?

Por que mataste a velha Raskolnikoff?
A primeira resposta conduz-nos a escola social do direito ou da criminologia, tributária de K Marx:
Matei porque era pobre, porque minha condição era miserável, porque sofria privações, porque não tinha o que comer, impelido pela necessidade enfim. Foram as condições sociais que determinaram fazer o que fiz.

Já antes de ter consumado o crime cogitava que não podia deixar de comete-lo.

Alguns dias depois no entanto confessava que a certeza de que não podia deixar de ter cometido aquele crime seria doce para ele.

Pois se é certo que tendo dado largas aos mais nobres sentimentos empenhou parte do dinheiro enviado regularmente pela pobre mãe com o intuito aliviar o sofrimento alheio, experimentando consequentemente uma situação se penúria, não é menos certo que Razoumikhine experimentava as mesmas dificuldades, recorrendo no entanto a traduções de textos e algumas aulas com o objetivo de angariar subsídios.

Conduzido por uma honestidade inflexível para consigo mesmo o irmão de Dounia conclui que bem poderia ter imitado o exemplo do colega de curso. Sente que não havia esgotado todas as possibilidades viáveis no sentido de ter escapado a penúria.

Ademais obtido o dinheiro ou os recursos desejados, acabou ocultando-os debaixo de uma pedra e abstendo-se de fazer uso dele.

Seja com for há situações de miséria, de penúria ou de indignidade que bastam para conduzir o ser humano a loucura. É constatação científica feita há alguns poucos anos. Claro que há pessoas e pessoas, mentes e mentes, temperamentos e temperamentos... E que os limites variam de pessoa para pessoa. Sem que os efeitos sociais da miséria, sobre uma média de pessoas deixem de ser significativos.

Não é o caso de Raskolnikoff por ele mesmo sente que não chegara ao limite, e que a loucura surgira posteriormente, como consequência do ato praticado. E não antes, como causa. Tal o resultado de sua introspecção.

Então por que mataste a velha Raskolnikoff?
Claro que nosso ex estudante de direito, como todo e qualquer ser humano, tentará racionalizar e em certa medida justificar o crime por si cometido.

E por via alguma conseguia arrepender-se do que havia feito.

Sentia-se mal, constrangido, abalado, etc não por ter partido a cabeça da velha e lhe tirado a vida, mas apenas por ter denunciado a si mesmo num momento de fraqueza (???!!!!???).

De fato não fora pego. Pois a tempo fora notificado sobre a morte de Svidrigalioff... 

Mesmo assim num momento de grandeza ou fragilidade denunciou-se.

Havia portanto ocasiões em que se arrependia não de ter cometido seu crime, julgando-se inocente, mas sim de não ter podido conter-se, de não ter podido vencer a si mesmo, de não ter podido manter a constância da alma, de ter se desestabilizado e ido entregar-se a polícia.

Envergonhava-se quanto ao estado de desordem mental a que chegará após a consumação do crime e cuja gênese sequer sabia explicar.

Julgava-se talvez ou muito provavelmente sabotado pelo próprio medo de vir a ser pego.

Quiçá sua cruz fosse a cruz do medo.

O fato é que não conseguia conviver com esta situação de fraqueza.

A fraqueza ou a sensibilidade face ao crime é que exasperavam-no.

Mas por que?

A resposta temos no artigo que publicará alguns meses antes e que fora usado pelo juiz de instrução criminal, Porfírio com o intuito de conduzir as investigações.

Artigo em que nosso estudante de direito, antecipando Nietzsche, sustentava que o homem superior ou super homem - Fosse um Napoleão, um Cesar, um Maomé ou um Newton; não importa quem! - não só podia como devia cometer quaisquer crimes, e sem o menor constrangimento, pelo simples fato de estar plenamente cônscio a respeito de sua genialidade e de seu desígnio, enquanto benfeitor do gênero humano. Aqui matar, roubar ou mentir, se necessário fosse, não constituía apenas um direito mas um dever daquele homem... Já qualquer laivo de sensibilidade ou de arrependimento face ao 'crime' implicaria fragilidade, e portanto vulgaridade.

Ali a vocação para a riqueza ou a prosperidade, segundo Calvino (cf Weber 'A ética protestante e o espírito do capitalismo') indicaria a predestinação. Aqui o arrependimento ou a sensibilidade indicariam a vulgaridade...

Aquele homem especial, genial ou superior deveria ter suas vistas postas apenas sobre o fim, jamais sobre os meios. Pois os fins justificariam plenamente os meios...

O único crime aqui era ser pego, preso, punido, etc Numa palavra: Falhar e não atingir seu fim.

Pois ninguém (Atente aqui a mente sagaz!) ou quase ninguém, increpa como criminoso aquele que extermina milhares ou milhões de vidas humanas nas guerras. Será que chegamos aqui a Timothy McVeigh? 
E estátuas são erguidas a César, Átila, Maomé, Tamerlão, Henrique VIII, Filipe II, Cromwell, etc E nomes de ruas, praças, escolas, etc são conferidos aqueles que dissiparam tantas vidas humanas.

Enquanto aquele que comete um ou alguns assassinatos, estes são tidos em conta de criminosos, punidos, castigados, suplicados...

Por que raios matar alguns é encarado com horror pelas massas, enquanto exterminar povos inteiros é encarado por elas com a mais absoluta naturalidade?

Porque aqueles milhões, guiados por um gênio ou por um homem superior, lutam por um desígnio... Enquanto os outros, tendo sido pegos, e antes disto aminados por um desígnio vulgar como a fome (???) ou a miséria (???) mostram-se inferiores e vulgares.

Em tese, os crimes do home superior ou genial jamais vem a luz porque ele não foi, não é ou não será pego. Podendo, a custa de crimes perfeitos, realizar sua ascensão até o topo.

Tais as doutrinas expostas por Raskolnikoff  postas em sociologuês...

Toquemos porém a alma...

Porque é evidente que tendo colhido em algum lugar esta 'bela' doutrina do homem sem compaixão e desenvolvido-a o nobre moço não pode deixar de perguntar a si mesmo se é ou não é um destes homens superiores...

Sou ou não sou um deste super homens? Pertenço ou não pertenço a essa casta de homens superiores? Que sou eu??? A que rango pertenço???

Aqui o único teste possível é a execução de um crime, crime feito a sangue frio e perfeito.

Raskolnikoff precisa matar, não para obter dinheiro em primeiro lugar, mas para saber que é? Se é dos homens geniais ou dos vulgares...

Antes do crime vive este dilema e precisa resolve-lo.

E se hesita e não comete o crime já vai tendo a si mesmo em conta de vulgar.

Por isso planeja, por isso apropria-se sorrateiramente do machado, por isso vai a casa da velha e por isso da cabo dela. Sem no entanto contar com a aparição da Isabel... A qual se lhe apresenta a consciência como inocente. E já não sabemos que efeito a morte da pobre adela produziu no íntimo de seu ser.

Então por que Raskolnikoff mata, amigo leitor?

Mata, olhe só, para afirmar-se.

Aqui eliminar a vida do outro é espécie de introdução a vida.

Mata para ser.

E até consumar este ato perverso nosso homem estava firmemente convencido de que passaria pelo teste.

Eis a fé de Raskolnikoff: Que mataria e permaneceria o mesmo, ou seja, indiferente.

Era sua fé e tudo empenhou: A mãe, a irmã...

E no entanto mal comete o crime fragmenta-se em dois. O estado de tensão espiritual aumenta e sua sanidade mental deteriora-se. O homem já não é senhor de si e ao cabe de mil e uma peripécias acaba de entregar-se a polícia.

O fato é que após ter cometido o crime e mesmo sem se julgar arrependido sofria... E como sofria. Talvez sofresse mais pelo medo de ser preso... Mas sofria e não deixa de sofrer.

Julgava-se senhor de si enquanto assistia perder o controle de tudo...

E qual o epílogo de tudo isto?

Sucumbindo a tensão o homem é vencido por si mesmo e constata, necessariamente, a luz de sua doutrina, não ser um super homem mas um fracassado. E acredita nisto e sofre sobretudo por isto. Sofre porque convencido de que não era genial ou predestinado. Sofre porque concluir que não passava de um homem vulgar.

A consequência mais prática aqui fica sendo a morte de sua mãe.

Pois a infeliz Pulqueria Fedorovna não consegue suportar a dor da desventura, e sucumbe miseravelmente após ter perdido o uso das faculdades mentais.

O homem acreditava ter ganho o mundo inteiro ou a oportunidade do mundo, e... no fim das contas perde a criatura que mais amava, a mãe.

E tampouco pode assumir seu grande amor, Sônia, pelo simples fato de ter sido condenado ao degredo por oito longos anos...

Evidente que não pretendo postular a monocausalidade do crime. Toda monocausalidade me parece forçada e suspeita. Há crimes e crimes, motivações e motivações...

Há certamente quem mate por ódio ou vingança, como há quem mate para roubar movido por necessidades materiais... No entanto tais motivações não esgotam as fontes do crime. Há outras.

Assim Raskolnikoff mata para ser, para a afirmar-se e até podemos dizer que mata por uma questão de necessidade psicológica.

Mata apenas para sentir que é capaz de matar, que pode matar ou que tem o direito de matar.

Até aqui 'Crime e castigo', até aqui Dostoevsky, até aqui literatura russa, até aqui ficção.

E no entanto este autor é mestre consumado em matéria de psicologia. E até antecipa Adler.
Neste caso que fazer para que a conquista a auto afirmação não se converta em tragédia?

Penso que a resposta aqui esteja no livro que Raskolnicoff tomou as mãos já nas últimas linhas do romance; no Evangelho.

Na sacralidade com que este livro único nimba a vida humana.

Eis a melhor cartilha com que educar nossos filhos e moderar o instinto vital da afirmação.

De fato o homem deve buscar por sua afirmação, realização, fama e glória; mas sempre numa perspectiva Ética, visando não prejudicar ou causar dano, as beneficiar concretamente o maior número possível de seres humanos sem cometer pecado algum.

Tome não o caminho de Hitler, Bush, Pot, Stalin, Napoleão, Ivan, Tamerlão, Átila, César, etc os quais de fato não passaram de criminosos ou de psicopatas; mas o caminho de Buda, Confúcio, Sócrates, Platão, Jesus... S João de Deus, S Camilo de Lelis, Cotolengo, Abbe L Eppé, Braile, Abbe Pierre, Pe Damien Deveuster, Pe Ibiapina, Pe Bento, Irmã Dulce, A Schweitzer, Madre Tereza... O caminho do amor enfim, que é o melhor de todos os caminhos.

Tomando o caminho de Raskolnikoff tomará certamente o caminho da dor...


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