segunda-feira, 22 de maio de 2017

O sentido da cidade de Deus em Agostinho e Paulo Orósio

O ano: 410




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Jerônimo de Stridon arrasta-se entre lágrimas pelo chão de sua caverna nas proximidades de Belém...

Outros estavam firmemente persuadidos de que o Cristo não tardaria a aparecer no alto dos céus rasgando as nuvens.

Outros ainda alegava que os homens estavam enfrentando a fúria dos deuses tutelares, os quais, desde Constantino e Teodósio, já não eram alimentados com sacrifícios rituais.

Tudo porque o comandante Gôdo Alarico havia invadido e pilhado a antiga capital do Império, Roma, a 'Cidade eterna'...

Afinal a última invasão havia ocorrido oito séculos antes a 18 de Julho de 390 a C.

Desde então Roma jamais fora invadida ou conquistada, nem mesmo pelo grande Anibal.

Tornara-se inexpugnável e convertera-se em mito.

Para as massas a Cidade de Roma, coração do Império e capital do Mare Nostrum era impossível de ser conquistada.

Por isso que as vésperas de sua queda, centenas de milhares de cidadãos, vindos de todos os cantos da Itália, lá se achavam apinhadas e julgando-se protegidas pelas multi seculares muralhas.

Tanto o fantoche imperial Honório, filho de Teodósio, o grande; quanto as famílias senatoriais da mais alta nobreza, haviam sido arrogantes e mais do que isto, imprudentes, por terem dado morte a Estilicão.

Disseram a Alarico que havia muita gente na cidade.

Respondeu o Gôdo, declarando que estando densa e grossa a erva, achava-se pronta para ser cortada.

Solicitou uma montanha em ouro e prata... Foi quando os orgulhosos senadores perguntaram-lhe:

Que nos restará então? E ele respondeu-lhes: Vossas vidas!

Optaram os romanos pro bromar...

Alarico retirou-se em demanda de Ravena, a nova capital, onde se achava Honório. Os pântanos no entanto fizeram-no recuar e tornar a antiga capital do Império.

Após alguns dias de saque, a fome e a peste fizeram com que os próprios cidadãos abrissem a porta Salária.

Era Bispo de Roma Inocente I, o qual impetrou ao godo alguns lugares de refúgio. Alarico concedeu-lhe as duas Basílias dos Apóstolos - S Pedro do Vaticano e S Paulo, fuora muri.

Evidente que não abarcavam a toda população da cidade, alias engrossada pelos refugiados.

Os jardins de Salústio foram incendiados pelo invasor e certo número de patrícios passado a fio de espada. O saque foi feito 'casa a casa' e acompanhado por uma sucessão de estupros e torturas...

De modo geral Roma sofreu bem mais dos vândalos e ostrogodos...

O primeiro saque foi relativamente ameno, porém traumático.

Pois significava o fim de um mundo, e o começo de outro.

Apresentaram-se então uma série de questões:

  • Por que o Império romano havia caído?
  • Por que caiam os impérios?
  • Haviam os romanos sido punidos pelos antigos deuses?
  • Por que havia Deus permitido que os Cristãos fossem molestados de um tal modo?
  • Que pensar sobre as freiras que tinham sido estupradas e ainda sentiam complexos de culpa?
  • Que se sucederia após o fim do Império?
  • Acaso a destruição do império não significava que o mundo estava prestes a acabar?

Agostinho de Hipona na "Civita Dei" (Encerrada em 425) pretende responder a tais questões focalizando a História da própria Roma servindo-se para tanto do que havia de melhor em termos de fontes, as obras de Terêncio Varrão sobre as origens do Império.

A obra demorou longos quinze anos para ser concluída e adotou um viez moralista, refinado a seu tempo pelo maometano Ibn Khaldun nos 'Prologomenos'.

Não é que a análise de ambos seja totalmente falsa ou equivocada, limito-me a classifica-las como superficiais.

A tese geral de Agostinho é que os impérios e civilizações, sendo contingentes, nascem, morrem e sucedem-se uns aos outros.

Havendo vislumbre desta lição já no livro judaico atribuído a Daniel.

Resta saber quais sejam as leis que presidem o nascimento e a morte dos Impérios.

Segundo o hiponenses, os primeiros romanos eram cultivadores da terra - Aqui faz eco a Catão, o antigo - e portanto homens operosos, exercitados, treinados e portanto aptos para serem bons soldados.

Não é ocioso advertir que antes da invenção das armas de fogo, o aparato bélico era bem mais pesado e portanto dificil de ser transportado.

Com certo sabor de Sócrates nos "Ditos memoráveis", Agostinho alega que a parcimônia, a simplicidade, as privações, a sobriedade enfim, imposta pelo ambiente rural transformaram o primitivo romano no soldado por excelência. Assim a precariedade da vida correspondia a uma espécie de ascese ou disciplina natural.

Ainda acompanhando os sucessores do velho Catão e testemunhas do declínio imperial, o Bispo africano conclui que a expansão do Império, a afluência de recursos a Península Itálica e a consequente adoção de hábitos civilizados, refinados ou urbanos pelos antigos romanos acabou por amolece-los. Tendo sido abandonado o trato da terra com sua ascese natural seguiu-se a degeneração dos costumes, definida como a busca pelo prazer, dos banquetes, bebedeiras e orgias...

Obviamente que este homem dado a prazeres requintados, coberto de seda, bem nutrido, perfumado, ostentando anéis e colares de ouro não haveria de ser bom soldado, intrépido, valente, corajoso; pelo simples fato de que a vida havia deixado de ser penosa e se tornará apetecível para ele.

Assim os mártires do Cristianismo antigo, foram o que foram porque eram antes de tudo ascetas, ou seja, jejuadores, abstinentes, sóbrios e morigerados. A ascese seja natural, social ou mística é o que torna a vida humana indesejável. A amarga e destrói as fontes de vida. Eis porque os ascetas são sempre os melhores soldados e os melhores mártires, os melhores matadores e os melhores a serem mortos...

É claro que Agostinho nem poderia pensar em algo assim, como não foi suficientemente profundo para relacionar este amolecimento das massas e da sociedade em geral com o 'Pão e circo', com a inviabilidade das guerras, com a falta de mão de obra escrava e com a produção de bens e a inflação, atingido as causas mais profundas do colapso.

Para além de Roma, Ibn Khaldun é levado as mesmas constatações que Agostinho, embora de modo mais preciso, na medida em que relaciona a ascese natural com o meio e com a mobilidade dos povos.

Refere assim que os locais mais rudes como montanhas e desertos, já devido ao labor que envolve a subsistência, propendem a estimular o deslocamento de suas populações ou seja o nomadismo, que o nomadismo, bem mais do que o sedentarismo, torna o homem exercitado, treinado ou preparado; a ponto deste homem, face a civilizações urbanas e refinadas, tornar-se um predador por excelência.

Vislumbra o conflito ancestral entre as primeiras civilizações urbanas, altamente desenvolvidas, e as culturas nômades porque foram sucessivamente engolidas e destruídas. A apreensão da realidade aqui é bem maior.

Seja como for o escritor africano ressente a limitação de seu trabalho e solicita que seja ampliado por outros. Cerca de 417 o presbítero hispalense Aulus Orósio compõem sua estimada "História contra os pagãos", obra que veio a converter-se em clássico durante a Idade Média. Afinal trata-se da primeira História do mundo escrita por um Cristão ocidental - Sexto Júlio Africano, Hipólito romano e Mar Eusébio de Cesáreia já haviam escrito suas crônicas mundiais nos século III e IV (em grego), sendo a Eusébio (Alias 'Pantodape Historiae' ou História mundial ) traduzida para o latim pouco antes que Orósio completasse a sua.

Orósio segue o esquema limitado do pseudo epígrafe de Daniel - dito livro do Profeta Daniel - com os quatro reinos representados pelos animais míticos. Em Daniel os tais reinos seriam: Neo babilônico, Medo, Persa e Macedônico ou grego, desconsiderando assim, por ignorância os impérios mais antigos: Sumério, Egípcio, Babilônico e Assírio, dentre outros (Pois poderíamos acrescentar o indiano, o chinês, etc). Já noutra parte o autor de Daniel refere quatro reinos distintos: Neo babilônico, Persa, Grego e Romano, entrando em contradição consigo mesmo.

Talvez por isto, tendo observado a variação, Orósio esforça-se por compendiar a História de quatro reinos: Babilônia, Grécia, Cartago e Roma, omitindo o reino dos Persas (Certamente por ignorar a Pérsica de Ctsias de Cnido) e pondo Cartago em seu lugar.

A partir daí o teólogo espanhol vai pintando com as mais negras cores - E no entanto absolutamente reais - a sucessão de atrocidades cometidas por cada um destes Impérios até chegar ao Romano, focalizando com maior interesse as guerras e invasões e salientando a crueldade com que eram levadas a cabo pelos antigos. Então imaginem só que prato cheio teria sido para este cronista o conhecimento do antigo império assírio, cujos reis, a exemplo do grande Assurbanipal deliciavam-se lendo bons livros e cortando as orelhas e narizes de seus prisioneiro de guerra.

O que ele pretende assinalar é que graças ao predomínio do Cristianismo, em meados do século IV d C, as invasões, guerras e saques haviam se tornado bem menos calamitosas. Já Agostinho referia na citada obra que sob a égide do Cristianismo as basílicas e igrejas das cidades invadidas eram tidas em conta de asilos invioláveis pelos próprios inimigos e que as vezes até mesmo a visão dos Bispos, clérigos e monges entoando litanias era suficiente para moderar a ferocidade de conquistadores cruéis. O que nos faz recordar o encontro entre Leão, o grande e Átila, rei dos hunos, ocorrido quase meio século depois...

A bem da verdade a própria Filosofia pagã muito havia contribuído para suavizar o flagelo tremendo das guerras entre os helênicos e mais ainda entre os romanos, devido aos militares influenciados pelo estoicismo.

No entanto sua contribuição mais interessante parece ter sido a naturalidade com que encarou a sucessão dos Impérios, considerando que a partir das ruínas de um surge outro.

É o quanto basta para saltarmos no tempo até o século XVIII com Volney e suas ruínas... E ao século XX com Spengler, Huizinga e Toynbee com suas teorias sobre o nascimento, maturidade, declínio, morte e sucessão das civilizações.

Com Vico temos a ideia de um corso, pautado em três fases - Divina, heroica e humana - (O que nos leva a classificação tripartida de Comte) - e num ricorsi ou numa recorrência cíclica dos corsoS. Terminado um iniciasse outro... Claro que Vico não podia estender este ciclo para sempre, uma vez que sendo Católico devoto, admitia a consumação de todas as coisas e a segunda vinda de Cristo. Hegel estendendo este ciclo infinitamente, tende a encarar este processo histórico e esta sucessão rítmica e hierárquica de impérios, como um enriquecimento ou construção da própria consciência divina. Por fim, após ele, Nietzsche pode reeditar a teoria do 'eterno retorno'...

A Alemanha do século XIX a cidade do homem é que adquire conotação de uma cidade divina.

E como isto esta longe do conceito de 'cidade de Deus' formulado por Agostinho, aqui ao menos, quanto a este ponto, fiel a tradição Católica.

Assim para Agostinho o princípio que regula a cidade de Deus não procede deste mundo.

Não é que ele negue ou repudie a presença de Deus no mundo ou melhor do mundo em Deus.

Não é o caso, pois como Cristão ele bem podia ler no primeiro quarto Evangelho: ESTAVA JÁ NO MUNDO QUE FOI FEITO POR ELE...

Nem poderia a divindade onipresente deixar de estar neste mundo ou este mundo físico de estar nela.

Havia porém aqui, neste mundo, um elemento volitivo e livre que livremente afastara-se Deus de si mesmo. Não estando mais a divindade presente no coração do homem.

Daí a necessidade da presença divina fazer-se ainda mais saliente ou perceptível neste mundo por meio da Encarnação. Mistério por meio do qual a divindade reaproxima-se do homem com o objetivo de recupera-lo ou de reconquista-lo. Manifestando-lhe todo seu amor por meio da presença solidária.

Temos aqui no mistério da Encarnação um novo elemento, um novo princípio, uma nova relação face aos seres humanos, de que resulta a implantação de uma 'Cidade divina' neste mundo.

Claro que é novo e inusitado apenas para nós seres humanos, do ponto de vista da consciência divina estamos diante de um plano anterior a organização deste universo e por assim dizer eterno. Não de um improviso.

Neste sentido a ideia de uma cidade divina implantada neste mundo adquire uma conotação atemporal, que deixa raízes na eternidade.

Já presente nas mais antigas culturas enquanto esperança, promessa e anúncio profético esta cidade tem seus fundamentos concretos lançados lá no monte calvário, quando o Espírito Eterno, em seu corpo de carne, foi suspenso na cruz.

Pois bem essa cruz é semente, como sementes são as palavras daquele que nela foi suspenso e semente é a pregação da Igreja por ele fundada.

No entanto, quando semeada era a Igreja apenas uma cidade ideal e futura, não plenamente encarnada mas vislumbrada apenas pela fé.

Principia como cidade de fé e não enquanto cidade visível.

No entanto consideremos que a igreja deve fazer o mesmo caminho que seu fundador.

O qual sendo imaterial e invisível tornou-se material e visível ao fazer-se homem.

Assim a igreja, enquanto cidade de Deus, deve seguir o mesmo trajeto e encarnar-se no mundo material e visível reformulando-o por completo a luz de Cristo, da Cruz e do Evangelho. Implica destruir as estruturas maléficas e substitui-las pela ética Cristã que é a mesma lei eterna reguladora do universo. Implica estabelecer novos padrões de convivência. Implica dar início a uma nova ordem e por isso a Igreja principia sua trajetória conflitando com o Império romano, cuja 'desordem organizada' ou a falsa ordem, pautada da escravidão e na guerra, deve aniquilar, e com ela o próprio império, o qual não pode subsistir sem suas bases e tampouco, naquele momento da História encontrar outra qualquer.

Fundamentado sobre a injustiça e tendo por base a opressão, deve o Império dos césares desabar fragosamente. Embora não deva ser destruído por completo.

Assim tudo quanto havia nele de útil, bom, nobre, excelente e proveitoso deve ser mantido pela Igreja e incorporado ao novo império em construção que é a cidade de Deus. Entidade através da qual o Cristo vai se encarnando mais e mais neste mundo e transformando-o a sua imagem e semelhança, enfim gestando uma sociedade Cristã, inspirada e guiada por princípios Éticos tomados ao Evangelho. Tal o ideal grandioso e perene do Catolicismo: Ampliar a Encarnação de Cristo, até que toda sociedade humana seja assumida por ele em sua mais absoluta plenitude.

Não imaginemos porém que tal operação será executada a maneira judaica, por meio de uma teocracia nacional ou universal, através da qual a própria Igreja ou seus clérigos, Bispos e Patriarcas passem a controlar diretamente o poder político. Nada mais absurdamente oposto ao pensamento Cristão, segundo o qual a função da Igreja - Enquanto fonte de ensinamentos Éticos destinados a normatizar a convivência humana - restringe-se a inspirar a conduta do fiel Cristão, homem Cristão, do cidadão Cristão...

Não cabe a Igreja, em hipótese alguma, assumir a tutela do governo secular ou dele tomar posse, mas orientar a conduta dos Cristãos e dos cidadãos numa perspectiva democrática, de modo que procedam sempre conforme a Ética tomada aos Evangelhos, tendo o Verbo encarnado por referencial supremo em todas as coisas.

Atingirá a Igreja tão alto escopo?

Se empregamos o tempo futuro é porque, lamentavelmente, tal escopo ainda não foi atingido.

Devido a seríssimos acidentes ocorridos no percurso da História...

Retomará ela tal programa, fugindo ao comodismo idealista/fetichista ou ao veneno solifideista???

Pela fé, somos constrangidos a confessar que sim.

Neste caso o domínio da Igreja prolongar-se-a indefinidamente neste mundo pela eternidade?

Sim e não...

Mas como sim e não.

Não por que haverá um evento cósmico e certa ruptura ou alteração brusca correspondendo ao retorno de Cristo e a ressurreição dos mortos. Cessando a economia temporal marcada pela liberdade e pela mutabilidade.

Sim porque Cristo instalar-se-a visivelmente, em seu corpo glorificado de carne, nesta terra renovada com os santos ressuscitados eternizando a cidade que com ele construímos.

De modo geral podemos dizer que a segunda vinda de Cristo não tem por escopo a destruição de sua cidade, mas apenas uma mudança de estádio. A cidade plantada aos pés do calvário, o ofício da Igreja, o prolongamento de Encarnação de Cristo tendo chegado a sua plenitude é introduzido numa nova realidade, a realidade das coisas eternas, tornando-se estável, fixa e imutável pelos séculos dos séculos.

Não é ciclo que se repete e perdura eternamente enquanto movimento que encontra seu fim em si mesmo, mas ascensão que atinge seu apogeu e atingindo-o entra em repouso, conservando-se assim para todo sempre.

Tal a cidade de Deus delineada pelo Bispo de Hipona, face a sucessão efêmera dos Impérios humanos, os quais nascem, crescem e morrem como os homens que os criaram, apenas para se convertem em pó... Assim todos os Impérios, reinos e civilizações que não forem atingidos, tocados e transmudados pelo Cristo, por seu Evangelho, por sua ética; passarão como estes céus e esta terra, enquanto que as palavras e ensinamentos dele jamais passarão, enquanto a Lei do amor jamais passará!

Ora o amor é o fundamento desta cidade e suas colunas o bem, a verdade e a beleza.

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