terça-feira, 2 de maio de 2017

O 'deus' deste mundo; sua majestade o relógio

               

Resultado de imagem para ditadura do relogio




                                        "De fora do bolsinho direito pendia uma grande corrente de prata, com uma
                                          maravilhosa máquina na extremidade. Pedimos que tirasse do bolso tudo que se
                                          achava preso a corrente, e pareceu-nos ser um globo parte de prata e parte de 
                                          metal transparente. Pelo lado transparente vimos certas figuras esquisitas traça-
                                          das num círculo; julgamos que lhes poderíamos tocar, mas os dedos foram repe-
                                          lidos pela substância luminosa. Aplicamos a dita máquina ao pé dos ouvidos.
                                          Fazia um ruído contínuo, semelhante ao de um moinho d'água e conjecturamos
                                          que, ou é qualquer animal desconhecido, ou, então,  A DIVINDADE QUE ELE  
                                          ADORA; no entanto nós nos inclinamos mais a esta última opinião, porque nos
                                          afirmou (Se nós assim o compreendemos, pois se exprimida muito imperfeita-
                                          mente) QUE RARAMENTE FAZIA QUALQUER COISA SEM CONSULTA-LO
                                          CHAMAVA-LHE OU SEU ORÁCULO, E DIZIA QUE ELE DETERMINAVA
                                          TODAS AS AÇÕES DE SUA VIDA." Swift, Jonathan; 'As Viagens de Gulliver'
                                          trad Henrique Martins Junior. S Paulo, ed Cultura, 1945



Embora literariamente as viagens de Gulliver reportem a 1699, alias a quatro de Maio. A obra foi posta em sua forma definitiva em 1735. Nem tenho acesso a primeira narrativa, editada em 1726. Atenho-me pois a edição padrão de 1735, a qual tem servido como ponto de partida para todas as traduções subsequentes.

Estamos assim a um passo da Revolução industrial seja seu inicio datado de 1760 como querem uns ou de 1740 como querem outros. Ou mesmo em seu desenrolar caso coloquemos seu início em 1710 ou 20. Reportando ao uso do carvão por Abraham Darby.

Importa saber que a Revolução industrial implicava redistribuição do espaço e do tempo.

Pois antes dela a matéria prima era entregue ao artesão para que fosse trabalhada ou transformada - em manufatura i é 'Algo feito a mão' - em sua casa. Mormente famílias inteiras trabalhavam juntas na oficina do lar.

Disto resulta que significativa variação quanto ao ritmo produtivo. Pelo simples fato de que o produtor, no recinto do lar, controlava este ritmo segundo uma hierarquia de necessidades definida por ele mesmo.

Quero dizer que se o filho precisasse estivesse doente e precisasse de cuidados o trabalho era posto de lado. Quero dizer que se a carne estivesse a queimar no fogão o trabalho era momentaneamente interrompido. E que podia ser frequentemente interrompido na medida em que o artesão julgasse necessário interrompe-lo. Inclusive quando julgava ter obtido a quantia necessária para manter-se.

Era ele, o artesão, que administrava o tempo de trabalho e a aquisição do dinheiro, tendo em vista suas necessidades, e não as da produção.

O horário estava sob seu controle e também a vida, porque não era escravo dessa estranha máquina de metal e vidro chamada relógio.

O artesão do século XVII no recinto da sua casa era ainda senhor de seu tempo e de sua vida, conforme o critério de suas necessidades.

No entanto esta tradição imemorial estava com os dias contados.

Pois com o advento das máquinas, propriedade do patrão, surge um novo espaço: As fábricas, tal o 'local de trabalho' separado do lar.

Desde então teve o operário enquanto manipulador de máquinas, de deixar o recinto do lar e dirigir-se a um locar específico em que se encontravam as máquinas para lá trabalhar e consequentemente ter o tempo de trabalho administrado não por si, mas pelo patrão... Cabendo e este determinar o ritmo da produção, servindo-se do relógio.

Evidentemente que o patrão esperava dos operários máximo emprenho na produção.

Deveriam portanto permanecer presor aquele local e trabalhar sem interrupção.

Desde então nada mudou...

Curioso é que toda este gente que vive falando em lar ou família, empenhando todo um discurso idealista e romântico até a exaltação mórbida, não tenha se dado conta que foi a Revolução industrial, promovida pelo liberalismo econômico que sacrificou a família as necessidades econômicas ou ao mercado, na medida em que aprisionou o operário e em seguida a operária no recinto da fábrica - Até a completa exaustão de suas forças - deixando o lar, compreendido como a prole, no maior abandono.

Resultando desta transformação hedionda o fenômeno onipresente dos meninos ou das crianças de rua. Assim quem não tem avós, tio, irmão muito mais velho, etc

Outro problema, não menos grave e alarmante, diz respeito a impossibilidade dos pais, exauridos pelo ritmo de trabalho (Então alucinante pois chegava a dezoito horas diárias) cumprirem com suas obrigações não apenas instrutivas, mas até mesmo educativas. Imagine só o amigo leitor que na Inglaterra protestante do século XVIII não haviam monges ou frades, ou clérigos dispostos a instruir e educar gratuitamente tantas crianças. Que o Estado ainda não havia criado a instrução pública. E que os pioneiros do proletariado sequer tinham recursos suficientes para comprar um quartilho de vinho ou pedaço de pão, quanto mais para contratar professores particulares...

O resultado deste terrível dilema foi a massificação, a par da pauperização.

Os ideólogos liberais, rematados mestres em matéria de hipocrisia, só sabiam arremeter contra a odiada Idade Média papista, enquanto a população urbana inglesa ensaiava entrar na mais abjeta fase porque já havia passado, isto já na Era vitoriana...

Nem precisam ler os odiados Marc Ferro e Eric Hobsbawm e gritar que não passam de comunistas desonestos e mentirosos a manipular sordidamente a História se temos o testemunho insuspeito e substancial do consumado literato Charles Dickens. Leiam Dickens e apenas depois de terem lido suas obras venham discorrer sobre as excelências do liberalismo econômico...

Ainda recorrendo aos testemunhos de Hobasbawm e Karl Polanyi fazemos observar que antes que sucedessem todas estas calamidades, lá nos primórdios desta funesta Revolução, parte dos plebeus pareceram ter intuído ou adivinhado o 'futuro' que lhes estava reservado, a si ou a seus filhos. Até onde eu saiba a crônica desta visão antecipada do seria a escravidão contemporânea ainda não foi escrita ou pintada com todas as cores.

Uma coisa no entanto é absolutamente certa. Não passaram plebeus do recinto familiar ao rígido controle das fábricas, suavemente ou como um bando de carneiros, por uma simples questão de tradição e cultura. Eles bem sabiam que estavam prestes a converterem-se em escravos do relógio e do patrão e a ter suas vidas esvaziadas e empobrecidas.

Daí a resistência feroz e titânica que prolongou-se por quase um século, até os idos de 1820. E o rancor dos ludistas face as máquinas, as quais atribuíam a alienação do homem quanto a seu espaço, o lar. Destruíam as máquinas não porque fossem tolos, mas porque perceberam que a nova ordenação do espaço de trabalho fora determinada pelo advento delas, e portanto que elas haviam sido responsáveis por tirar-lhes ou reduzir-lhes drasticamente o tempo. Isto no entanto correspondeu ao epílogo da cena... Uma vez que após o cancelamento das leis de subsistência e da lei do milho, tiveram os plebeus de precipitarem-se nas fábricas ou morrer de fome juntamente com seus filhos.

As leis tiveram de ser quebradas, como salienta Marx, o assistencialismo humanitário ou cristão desmantelado e a fome manipulada sem misericórdia, para que as massas angustiadas tivessem sua resistência quebrada e se precipitassem nas fábricas concordando em satisfazer todas as aspirações do patrão. Foi toda uma política cruel, insensível, maquiavélica e execrável; sem quaisquer escrúpulos, que manipulando situações da mais extrema indignidade humana, consolidaram a desordem institucionalizada da opressão...

Este foi um aspecto da grande revolução ainda hoje saudade por muitos...

O outro foi formativo ou educativo.

Pois além de aterrorizar economicamente as massas para que se submetessem a nova ordem, da fábrica, da jornada, do controle, etc Era necessário educa-las e forma-las, segundo a dinâmica da cultura, para que se adaptassem ou habituassem. E isto foi feito, mas com que sutileza...

A quem desejar obter mais pormenores sobre esta Revolução cultura, recomendamos o estudo das obras de Michel Foucault, a cuja epistemologia relativista, todavia, nos opomos marcadamente. Quanto a este aspecto da realidade no entanto, reconhecemos os méritos de sua obra, a que nos reportamos.

Estamos diante de nada muito complexo.

Basta dizer que o relógio tornou-se onipresente ou que (Vide texto acima de Swift) converteu-se numa espécie de deus e senhor da vida humana.

Para que a fábrica ou o patrão pudessem estabelecer com sucesso a nova ordem, pautada pela ministração regular do tempo e pela administração das horas e minutos passados na fábrica tendo em vista a consolidação de um ritmo cada vez mais ligeiro foi necessário inserir a máquina em quase todas as instituições sociais, até então mais ou menos marcadas pela irregularidade temporal.

Assim se é verdade que os primeiros relógios foram instalados nas torres das igrejas desde S Eustórgios de Milão em 1309, não é menos verdade que eram destinados mais a regular os exercícios religiosos (As horas canônicas) atinentes a vida monacal, do que a regular por completo as vidas dos Cristãos, em especial dos leigos, os quais sequer tem obrigação de recitar as Trindades ou o Angelus pelas seis, doze ou dezoito horas do dia. Se é certo que os homens piedosos deviam rezar, a exemplo do profeta Daniel três vezes ao dia, ou manhã, tarde e noite, não é menos certo que oficialmente hora alguma havia sido imposta aos Cristãos.

Quanto aos monges no entanto, em função da vida regular que levava, era a situação bem outra. Daí a conveniência de marcar as preces por meio do relógio. Daí a origem curiosa da palavra Relógio, a qual remonta justamente ao Horolongion ou livro de horas da Igreja grega. Del orologio, tal a expressão de a partir do século XIV passou a designar um dos mais hábeis montadores e a partir dele o próprio mecanismo. Não houve todavia qualquer tentativa de 'relogizar' as relações sociais e humanas ao cabo de quatro séculos e como dissemos, em tais sociedades jamais se passou das 'Trindades' ou do 'Angelus' recitados por algumas pessoas piedosas.

O mistério da vida permaneceu temporalmente falando, a fluir irregularmente. Ao menos até a Revolução industrial, quando tempo converte-se em dinheiro e o patrão aspira converter-se em senhor e dispensador do tempo.

A partir de então é necessário, sob os mais variados pretextos, introduzir o relógio nas mais diversas instituições sociais: Assim na escola - desde 1833 - e no Hospital, foi introduzido o relógio. De modo a regular a vida dos estudantes e enfermos e em certo sentido adapta-los a uma administração mais rígida do tempo, tal e qual era imposta pelo ambiente fabril.

Se tempo era verdadeiramente dinheiro e o patrão aspirava obter lucro máximo, era necessário administrar e controlar o tempo que o operário passava na fábrica. Coibindo alias os atrasos, sob quaisquer pretextos e convertendo a pontualidade, até a neurose, em virtude quase divina. Mesmo padres e pastores acabaram embarcando na onda e enfatizando a necessidade de chegar as cerimônias pontualmente... ficando a pontualidade canonizada; até adquirir conotações místicas!

Eis porque o capitalismo consagra o relógio como a máquina mais importante da idade da máquina, a ponto de não só controlar o tempo consagrado pelos escravos a rotina do Mercado, mas de converter-se ele mesmo em produto, especialmente a partir de 1850 (O auge do sistema econômico liberal em Inglaterra), quando passa a ser produzido e comercializado em massa. Desde então converteu-se na primeira máquina a adquirir certa importância social nas vidas dos seres humanos. Bem antes do rádio, da TV e do computador...

Quais as consequência desta relogização da vida, contada desde então não mais em horas mas em minutos e segundos, i é, em cada instante?

O mínimo que se pode dizer é que a precisão da divisão temporal, associada a formação do homem e temperada pela mística da pontualidade, acaba convertendo os homens em relógios em ponteiros, pelo simples fato de abarcar todos os setores da vida humana, tornando-os regulares, rotineiros e previsíveis. Os homens convertem-se em monges profanos e regulam todos os atos da existência tendo em vista o ritmo da produção ou do trabalho.

Todas as ações tornam-se sequenciais, porque uma sucede a outra e um atraso aqui resulta outro acolá, atingindo o horário do trabalho e pondo em risco o emprego. Assim uma das principais preocupações do homem atual é jamais chegar atrasado ao trabalho! Preocupação que alastrando-se pelos demais setores da vida torna-se compulsiva, arrastando nosso homem a neurose ou a alienação mental.

É aqui que a vida perder sua naturalidade e espontaneidade para tornar-se artificial, rotineira, massante e desagradável, convertendo-se num fardo insuportável. O homem se sujeita ao tempo, não é senhor de seu tempo e não mais dispõem dele. E sua vida passa a ser controlada inteiramente por outros tendo em vista objetivos que não são seus e a negação de seus objetivos. Já não restando tempo para si, para a família, para o lar e para tudo quanto ama.

Feito senhor do tempo e do espaço converte-se o patrão, por meio do relógio, num deus... e os proletários em criaturas ou servos sem determinação própria.

Importa gastar o tempo produzindo. Importa alienar-se da família. Importa alijar-se do bem, da verdade e da beleza a cuja contemplação dou destinado; e em bestializar-se. Não podendo administrar seu tempo degrada-se este homem... degenera, corrompe-se.

O dilema é cruel: Ou abdica do tempo e do espaço e portanto da liberdade e da vida; ou morre de fome, experimentando situações de miséria. Premido pela tensão posta entre o ideal e o material este homem enferma, e se desespera, e morre...

Isto porque, como adivinharam os minúsculos liliputianos de Swfit o relógio é o deus dos tempos modernos... Não o Deus amoroso e benevolente dos Santos Evangelhos, mas um deus maléfico e iracundo. Durga ou Jagrenate não chegam a ser tão egoístas e cruéis... E nem seus adoradores enfrentam situações tão aviltantes. Tais os resultados do novo culto...

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