As opiniões do sr Lebeziatnikoff de 'Crime e castigo' (Dostoevsky) fizeram-me recordar S Freud.
Mestre, não se incomoda de que os nazistas estejam a queimar seus livros?
Freud - De modo algum. Certamente progredimos muito pois a cem anos teriam queimado a mim.
E no entanto que palavras ousadas são postas por Dostoevsky na boca de um homem de 1860! (O livro foi editado em 1866).
Tão ousadas que século e meio depois continuam a escandalizar os leitores de 2017!!!
Para quem não sabe Lebeziatnikoff é revolucionário e amigo das ideias novas. Aspira reconstruir a Sociedade noutros termos, em marcada oposição aos valores tradicionais.
Um dos aspectos mais interessantes de seu discurso é o amor livre definido como especie de relacionamento ou casamento aberto em que tanto o homem quanto a mulher mantém (ou melhor adquirem) a liberdade sexual.
Nosso homem lá nos confins da Rússia imagina que tudo isto seja extremamente anti Cristão. Sem saber que do outro lado do Oceano (nos EUA) a tese era defendida justamente nos círculos Cristão liderados por Noyes e Lazarus.
Passemos sem delongas as palavras do jovem revolucionário russo:
"Nós procuramos a liberdade da mulher e o sr cogita apenas em... Pondo de lado a doutrina da castidade e do pudor femininos, como inúteis e absurdas, admito perfeitamente as reservas dela diante de mim, visto que assim usa de sua liberdade e exerce seus direitos. Mas caso me dissesse: Quero que sejas meu. Sentir-me-ia feliz, porque essa moça agrada-me muito... Jamais fizeram justiça as qualidades dela. (Refere-se a prostituta Sonia)" p 372
"O senhor ri porque não tem a força necessária para romper com os preconceitos. Compreendo que no contesto da união monogâmica e legítima constitua afronta ser enganado, é resultado da própria situação que degrada da mesma forma os dois conjuges. No entanto quando a ideia de posse for removida e estabelecido o relacionamento livre o adultério é que deixará de ter significado. Só assim a mulher demonstrará que ama o parceiro no momento mesmo em que ele deixar de por obstáculos da felicidade dela e até poderá prender-se livremente a ele. Julgo as vezes que se casado fosse - Livre ou legitimamente não o importa - e se minha mulher não tomasse amante, eu cogitando em sua maior felicidade, é que haveria de procura-lo, e dizer-lhe: Minha querida, eu te amo e por isso quero que o saibas - Eis o que te ofereço livremente..." p 379
Veja bem o que você acabou de ler, leitor do século XXI, numa obra escrita em 1866...
Se não compreendeu o aspecto revolucionário destas palavras que atravessam os séculos leia mais uma vez ainda.
Porque ainda hoje são afrontosas, escandalosas, revolucionárias, imorais, etc século e meio depois. Ao menos para a imoralidade convencional.
Refiro-me as relações de posse ou monopólio que não sejam - e quão poucas são - produto do amor e da decisão livre. Pois a maioria delas é produto do egoísmo e da fraqueza, alimentados pelos preconceitos. As pessoas se conformam - aparentemente - com a monogamia e com a indissolubilidade tendo em vista a opinião alheia ou a crença da maioria. E adotam, por falta de coragem e dignidade, um modelo de família, que lá no fundo, bem no fundo, aborrecem.
E pela repetição e pelo costume até acabam achando bonita toda essa falta de dignidade.
Claro que não me refiro aqui aos que adotaram esse modelo livremente tendo em vista suas necessidades psicológicas. Mas apenas aos que limitaram-se a aceita-lo externamente, por mera pressão social... Enfim aqueles que sentem ter abdicado de suas liberdades face a imposição alheia e arbitrária. Aqueles que sacrificaram a consciência...
Quantos e quantos ainda hoje não aderem a casamentos ou uniões aparentes apenas para satisfazer a opinião pública ou ludibria-la. Que pode haver de mais abjeto?
Que pode haver de mais indigno e asqueroso do que essa febre de traições e adultérios que prolifera por trás da quase totalidade de casamentos monogâmicos e indissolúveis, nos quais homem e mulher cogitam antes e acima de tudo sobre a melhor maneira de enganar o outro!
Eis o reinado abjeto, asqueroso e imundo da hipocrisia.
Não estou aqui a decantar contra a existência de uniões estáveis desde que verdadeiramente livres. Não, de forma alguma. Até concedo que sejam viáveis senão essenciais a certas estruturas psicológicas.
A questão aqui não é a companhia ou o amor. Mas o próprio sentido do amor com relação ao sexo.
Afinal traição só faz sentido se há posse ou monopólio.
Atraiçoo a alguém caso pertença a alguém.
Agora se pertenço a alguém certamente sou propriedade de alguém e alguém proprietário (a) meu...
Ah mas um pertence ao outro... A relação de posse e propriedade é recíproca.
Mas desde quando uma situação deixa de ser abjeta pelo simples fato de ser compartilhada?
Desde quanto escravidão, assassinato, roubo, etc convertem-se em ações virtuosas desde que compartilhadas?
Desculpem-me os leitores mais susceptíveis mas tenho de dizer: Caso o ser humano possa ser mesmo propriedade de outro ainda estamos lá no tempo do - Não cobiçaras a tenda do teu próximo, o boi do teu próximo, a ovelha do teu próximo, a MULHER do teu próximo... Porque ainda aqui, homem ou mulher já não se distinguem em nada de quaisquer outros objetos de posse, assim da mesa, da cadeira, do sofá, da televisão, do cavalo, do camelo...
Posso compreender que o homem entre na legítima posse pessoal da terra por ele trabalhada e dos objetos que adquiriu a partir do produto de seu trabalho. Pois trata-se daqui de elementos desprovidos de racionalidade e de vontade própria. Uma cadeira não tem consciência de si mesma, uma mesa não pode dispor de si mesma...
Agora como podemos entrar na posse de um ser racional e livre, exceto ele conceda em tal relação sem ser pressionado por qualquer fator de origem externa a si. Ora até hoje os homens e mulheres tem consentido em ser monopólio de outros apenas por força de uma lei externa ou de preconceitos sociais.
Dai a necessidade de desregular o matrimônio e torna-lo absolutamente livre para torna-lo verdadeiro e saber em que medida as pessoas aceitarão livremente ser monopólio de outras. Uma coisa porém é absolutamente certa: Pessoa alguma deveria ser obrigada, por lei alguma, a tornar-se objeto de posse de outra pessoa.
Não somos contra a posse ou o monopólio, desde livre e sem qualquer interferência social ou estatal. Para que o matrimônio monogâmico ou indissolúvel adquira a respeitabilidade revindicada por seus defensores, deverá ser livre. Imposto mostra-se falacioso. Os homens burlam as leis, enganam-se uns aos outros, criam um reinado de hipocrisia, envenenam as fontes da ética e tudo termina em chalaça.
Pessoas há que mesmo aspirando por companhia e amando a pessoa com que vivem não aspiram por essa posse, controle ou monopólio sexual, encarando tal posse como absurdamente ridícula. Tais pessoas não confundem o sexo ou o prazer sexual com o sentimento ou o amor e não misturam uma coisa com a outra. Por isso não se sentem desonradas quando o marido ou a mulher notifica que deseja sair com fulano ou beltrano. Muito pelo contrário mostram-se felizes pelo simples fato da pessoa a que amam ter acesso ao prazer e ser feliz, e chegam ao ponto de se sentirem gratas aquele ou aquele que proporciona prazer ao objeto de seu amor. Pelo simples fato de amarem... Porque amo verdadeiro não conhece limite.
Amar já foi dito não consiste em buscar a própria felicidade mas em buscar a felicidade do outro ou por a própria felicidade na felicidade alheia, como que empenhando-a. O que certamente excluí a posse, o controle, o ciúme, etc Pois tudo isto é opressão e nada disto é amor.
Direi mais: Uma hora a busca pelo prazer sexual chegará ao fim. A multiplicidade de vivências ou experiências sexais trará certamente a saciedade. O amor, a estima, o companheirismo, o vínculo criado, apenas isto permanece para sempre. Nada mais delicioso do que uma pessoa sendo livre oferecer-se exclusivamente a outra... Isto sim é que se chama conquista. O resto não passa de prisão.
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Tais os sentimentos e opiniões de Andrei Semyonovitch Lebeziatnikoff... enunciados em 1866!
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