terça-feira, 2 de maio de 2017

A 'Sonia' de Crime e castigo...

Ao ler ou reler uma obra como 'Crime e castigo' - A qual bem poderia der relida, 'trilida', e lida novamente, ao cabo da vida - se nos apresentam tantas e tantas impressões...









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Quando pergunto a mim mesmo sobre a personagem predita - Não a mais interessante e sim a predileta, pois são perspectivas diferentes - me vejo pensando em Nastasia, a serviçal dedicada e a única que se importava com Raskolnikoff.

Nastasia
certamente salvou-o de morrer a mingua.

Nastasia parece ser a única a preocupar-se com ele.

Nastasia. Sempre a imagino com aquela xícara de chá ou com o prato de caldo.

Agora que moverá esta esquálida rapariga?

Talvez a religiosidade sincera posta para o serviço fraterno, dirão alguns.

Bem pode ser.

Eu no entanto, sem ser nada romântico, pressinto aqui um amor de moça e amor que envolvido pela timidez jamais se declara ou manifesta.

Estou persuadido de que Nastasia ama Raskolnikoff mas guarda seu amor para si. Sem jamais ter coragem de dizer...

Se estou certo e assim o é - Pois é como o caso da Capitu e do Bentinho, e de todas as coisas incertas - temos mais um drama oculto no grande drama. E Dostoevsky é justamente uma sucessão interminável de íntimos dramas vivenciados pelos mortais. A ponto de se poder dizer com o Buda, que tudo é dor...

Todavia se Nastasia ama é Sonia, que sem nada fazer, obtém o coração do mancebo.

E quando dizemos que Sonia nada faz queremos dizer que muito sofre e que também ela vive seu drama, e que drama...

E é por muito sofrer que ganha o coração do jovem.

Mas quem é Sonia?

Filha de Marmelodoff e órfã de mãe, Sônia é uma adolescente miseravelmente pobre ou paupérrima que se vê na contingência de prostituir-se para sustentar uma madrasta tísica e seus três filhos pequeninos.

Sacrifica assim sua virgindade, reputação e honra com o intuito de minorar o sofrimento alheio e com o dinheiro que obtém por meio das relações ilícitas mata a fome dos pequeninos, da pobre mulher e do pai. Chegando inclusive a dar dinheiro para que este se embriagasse.

Não se trata todavia de personagem vulgar ou insensível...

Filha da época, Sônia trás em si os preconceitos do tempo, e portanto um imenso complexo de culpa entesourado no fundo do coração.

Não ela mesma parece não desfrutar do prazer que comercializa ou tirar proveiro sensível do deleite oferecido. Dir-se-ia que não goza ou que não se permite atingir o orgasmo... Justamente por acreditar que comete um terrível pecado.

Culta, sensível, finamente educada, segundo os preconceitos do tempo; mimosa e doce, Sônia pode ser considerada pura quanto a alma porque se nega ao prazer ou melhor dizendo, porque prostituir-se é uma tortura para ela. Imagine uma mulher que se faz tábua e se deixa estuprar a contragosto, apenas para obter dinheiro. Esta é Sonia e sua desventura não é menor do que a de uma mulher estuprada! E no entanto se não se deixa estuprar e não se vende...

O drama terrível desta personagem consiste justamente em deixar-se poluir ou profanar apenas para obter alguns cobres.

Outra qualquer em seu lugar, como sugere Raskolnikoff teria se lançado ao Neva ou feito suspender-se numa corda. Sônia no entanto, sequer pode cogitar em acabar com a própria vida e, quem sabe, fugindo a vergonha obter a tão cobiçada paz... Mesmo a alternativa da solução final lhe é negada. Pois sem ela, eles viriam a morrer de fome...

O amor impede-a de suicidar-se e obriga-a a viver envolvida pelo lodo até o pescoço. A abnegação impele-a a poluir-se e a profanar-se quotidianamente.

E nem pode suportar a ideia de que morta, a 'irmã' mais nova Polenka tenha de esbater a mesma senda e viver o mesmo drama. A simples ideia de morrer e ser 'substituída' pela pequenina é o quanto basta para aterroriza-la.

Impedida de suicidar-se é obrigada a arrastar-se por uma vida tormentosa, a engolir a própria dignidade, a humilhar-se, a baixar a cabeça, a ser insultada, vilipendiada, malbaratada...

E sendo prostituta sem querer ser, toma, a semelhança do Cristo, o caminho de um calvário a cujo topo ou fim jamais chega. Sua existência insuportável por ser definida como um aproximar-se da cruz sem jamais atingi-la... É uma agonia, um suplício sem sim.

O mundo no entanto não esta nem ai para seu drama...

E passa a seus olhos como miserável prostituta, criatura repugnante e odiosa, filha da luxúria e da devassidão. Embora sua alma seja tão casta - Senão mais - quanto a de uma freira...

Mas que é a alma? Que é a mente? Que é a consciência? Que é a intenção? Para a Sociedade...

Tudo quanto a Sociedade vê é o escândalo... E nada, nada mais.

Para aquela Sociedade, como para a atual, o mal ou o pecado supremo esta sempre relacionado com o sexo, não com a miséria, a fome, a guerra, o morticínio...

E aquela Sociedade, como parte desta, apresentava-se como Cristã!!!???!!!

E colocava o sexo acima da convivência humana, da dignidade humana, da vida humana!

Eis um Cristianismo subvertido, pervertido e invertido, que perdeu por completo o verdadeiro sentido do amor.

Ocorrem-me as luminosas palavras de Henry Miller: "Todo mundo diz que sexo é obsceno. A única verdadeira obscenidade é a guerra."  

Tal o diagnóstico daquele triste tempo.

Sonia a vítima.

E no entanto ela é verdadeira discípula do Mestre amado, justamente porque ama, e imola-se, e sofre.

"Nisto saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros."

Sônia bem poderia pensar apenas em si mesma e odiar aquele pai bêbado execrável com seu bafo nauseabundo, aquela madrasta afetada e arrogante e aquelas crianças sujas e ranhentas... Caso quisesse bem poderia odia-los, e até penso que não seria difícil...

Optou pelo amor, assim pelo sofrimento e pela dor.

Quantas moças respeitáveis, a semelhança de Dounia, não se guardavam até encontrar um pretendente rico capaz de pagar pela oferta da virgindade e desposa-las regularmente, com as bençãos da igreja. E no entanto que era aquilo senão vil comércio??? E prostituição reservada a um só...

E quantas não se vendiam por luxo? Por rendas, por jóias, por vestidos, por sapatos... Enquanto ela, embora se vendesse a muitos, vendia-se premida pela fome alheia... Quiçá morresse de fome, fiel aos preconceitos do tempo. Todavia, contemplar aquele pequenos morrendo de fome...

Mesmo quando parte de um pai o juízo de Marmelodoff não deixa de ser justo!

Como Jesus poderia deixar de perdoar aquela que sacrificara seu pudor, sua honra, sua reputação e se converterá em 'pecadora' miserável apenas para salvar a madrasta, os irmãos e o pai beberrão da morte certa?

Reatualizando a pergunta: Que teria Jesus a perdoar em alguém que optou por sofrer moralmente e por imolar-se, movido pelo sentimento mais nobre e elevado de todos, a saber, pelo amor???

Como teria pecado se com o sacrifício sincero e penoso da virgindade tomou a peito saciar a quem tinha fome ou a cobrir quem estava nu?

Como teria ofendido aquele que disse: Vinde a mim as criancinhas... se foi por três criancinhas desamparadas que decidiu subir o calvário?

Deixemos agora, por um instante apenas, a personagem abstrata de Dostoevsky e tornemos a arena da vida vivida, em busca de outras tantas Sonias, feitas de carne, sangue, ossos e nervos de aço.

Observo naquela esquina uma moça vendendo-se para custear o tratamento do velho pai canceroso. O qual lá no seu recanto, outrora feliz, cuida que a filha exerce o respeitoso cargo de secretária em alguma casa de comércio ou repartição pública.

Ouça quem puder a melodia 'Secretária da beira do cais' e compreenderá o que estou a dizer.

Aquela prostitui-se para comprar os remédios do irmão mais moço, sem os quais não pode passar... Aquela outra para impedir que a pobre mãe, já entrada em anos... continue a ralar-se como escrava lavando banheiro de gente rica.

Temos ainda esta outra que expõem-se ao vexame porque tendo perdido o marido, não é capaz de custear a escola ou internato dos filhos...

Não vou dissertar aqui sobre os motivos que podem levar uma moça ou mulher a prostituir-se... Limitar-me-ei a declarar que nem todas aqueles mulheres abraçaram este ofício levadas pelo que a gente 'respeitável' - Que mata, rouba, mente, explora, faz guerra, etc - qualifica como devassidão! Limitar-me-ei a declarar que há ali muito drama... Dar-me-ei por satisfeito em levantar a ponta do véu que oculta muita tragédia... E a solicitar que os virtuosos censores moderem seus julgamento segundo a norma e regra da prudência.

Antes de apontar alguém, de julgar alguém, de condenar alguém, de repudiar alguém... experimente colocar-se no lugar deste alguém ou a imaginar que poderia te-lo feito tomar a decisão que tomou.

Raskolnikoff apesar de te feito 'aquilo' e cometido um erro demasiado grave, conseguiu não só colocar-se no lugar desta moça desprezada - Ou melhor, odiada pelo mundo e pela 'boa sociedade - compreende-la e ama-la... E amando-a veio a ser amado com não menos intensidade. O que veio a ser para ele um princípio de ressurreição após a morte negra da alma... Pois toda ressurreição parte de um amor.

No entanto se tivermos consciência de que tudo quanto parte da miséria - Assim a embriagues, a droga, a prostituição, etc - é pecado social, partilhado por todos nós... Se tivermos a rara percepção de que somos co responsáveis por todos estes males na medida em que não apenas somos insensíveis, mas em que compactuamos com a insensibilidade alheia, ao invés de, como cristãos, indignar-nos... O mínimo que teremos de oferecer as Sonias que cruzam nossas caminhos são palavras de compreensão, conforto e amor; não de juízo, não de condenação. Pois se não sabemos acolher, abstenha-mo-nos de julgar e condenar.

Assim antes de apedrejar as Madalenas que encontra pelo caminho pergunte a si mesmo sobre o que fez ou tem feito para erradicar as situações de fome, miséria, nudez, etc que afligem e angustiam a desgraçada humanidade... Tem alimentado os famintos? Dessedentado os sedentos? Vestido os nus? Caso sua resposta seja negativa não ouse julgar o irmão que caiu por terra esmagado pelo peso da cruz...

Imitemos o gesto aparentemente louco de Raskolnikoff ajoelhado beijando os pés da rapariga... Quem sabe se somos dignos de beijar-lhe o pó dos pés ou a orla do vestido esfarrapado...

Mas porque cometes este ato insensato? Por que beijas os pés de uma devassa ou de uma perdida?

Não, não é os pés de Sonia que eu beijo, não os pés da mulher, não os pés da filha de Marmelodoff o que beijo ali e ali venero 'É o imenso sofrimento humano.' - O mesmo no alto do calvário pregado sobre a cruz, o mesmo na alcova de uma prostituta inconformada, o mesmo no gesto do pai que roubou uma caixa de leite para alimentar o filho pequenino... Em todo lugar a mesma dor e o mesmo drama santificados pelo Cristo.




Ofereço este ensaio ao querido amigo Dr Carlos Seino, o qual como Cristão honesto e sincero não cessa de progredir na luz de Cristo. 


"Assim a senda dos nobres é como a aurora, que vai brilhando, brilhando, até converter-se em dia pleno." ora nosso dia é o Cristo. Jamais cessemos de avançar nele, jamais nos conformemos com o que temos. Porque ele sempre tem mais a oferecermos e nós a tomar de seus tesouros infinitos.

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